Em meio aos debates sobre a implementação do ensino remoto emergencial nas universidades púbicas, um jovem professor se manifestou a respeito das críticas, objeções e exigências formuladas pelos colegas: “Obstruem o máximo que podem. Se fossem trabalhadores de instituições privadas, já teriam sido demitidos há muito tempo. Não dá para levar algo assim a sério, sinceramente. Se não querem trabalhar, escrevam: ‘não queremos trabalhar’.”

Vinícius de Rezende

13 COMENTÁRIOS

  1. Eu tenho um amigo que é repositor de supermercado de dia e estuda comigo numa faculdade particular à noite. Nas horas vagas durante o dia, ele estuda no chão de um depósito empoeirado. Depois vai às pressas para casa para conectar-se à internet e assistir aulas remotas. Não fosse o ensino remoto, ele – que é um aluno exemplar – seria muito prejudicado. Por outro lado, todos os professores da nossa faculdade estão trabalhando – dando aulas – desde o início da pandemia e do distanciamento social. Mas é uma instituição privada, não são servidores públicos, não têm estabilidade, podem ser demitidos… Pois bem, minha outra experiência – mais recente – com o ensino remoto é entre servidores de um município que fica na região metropolitana de uma das capitais brasileiras, que são agora meus colegas de trabalho. Juntei-me a eles recentemente, depois de ter sido aprovado num concurso público para trabalhar no… ensino remoto, pelo menos enquanto as aulas presenciais estão suspensas. Na capital – onde moro – não há ensino remoto nas escolas municipais e, em vez de estarem trabalhando remotamente como eu e meus colegas, alguns professores postam fotos de férias prolongadas numa chácara ou na beira de um rio, etc. Outros ficam em casa. Os mais engajados podem aproveitar para usar a internet para participar de lives organizadas por um dos sindicatos de professores, em defesa da educação e contra o ensino remoto.

  2. A paralisação das atividades de ensino acarretarão agravamento das desigualdades sociais. Isso é ponto passivo.
    Não obstante, a posição dos comentadores parece sugerir que os trabalhadores do ensino, os docentes, são responsáveis por isso.
    Então, gostaria de formular algumas perguntas:
    – a suspensão das atividades de ensino resultou da decisão dos docentes ou dos gestores públicos?
    – a não implementação do ensino remoto em vários municípios e em diversas instituições – do ensino fundamental ao superior – resultou da decisão de docentes ou dos gestores?
    – a atividade docente reflete uma missão, ou uma vocação, que obriga os trabalhadores do ensino a aderirem acriticamente a qualquer forma de ensino?
    – o trabalho docente se resume a dar aulas?
    – os comentadores têm conhecimento de que os docentes das universidades públicas continuaram a exercer suas atividades de pesquisa, orientação, extensão e, não raro, administrativas e que não estão gozando longas férias em chácaras, rios etc.?
    – a estabilidade é o pai de todos os males do serviço público?
    – o “jovem professor” legitima o poder disciplinar que os capitalistas exercem sobre os trabalhadores por meio da ameaça e uso da demissão como elemento punitivo?
    – os comentadores, caso o segundo também seja professor, seguiram o exemplo de tantos professores e professoras que têm caminhado, pedalado ou dirigido até regiões mais remotas para levar atividades aos alunos?
    – o EAD e o ensino domiciliar compunham o modesto plano de governo de Jair Bolsonaro. É coisa de “quem não quer trabalhar” preocupar-se com a possibilidade de a pandemia servir como laboratório ou mesmo acelerar a transformação da atividade docente por meio da difusão dessas modalidades de ensino?
    – reivindicar que o poder público forneça condições de acesso à internet aos estudantes carentes também é coisa de “quem não quer trabalhar”?
    – preocupar-se com as questões políticas, trabalhistas e com os impactos no cotidiano doméstico decorrentes do ensino remoto também é coisa de “quem não quer trabalhar”?

  3. Respondendo a algumas questões:
    1. A suspensão das atividades presenciais resultou e continua a resultar da orientação de cientistas, profissionais e autoridades da área da saúde.
    2. É evidente a resistência de professores, principalmente de instituições públicas de ensino superior, à implementação de técnicas mais modernas na área da educação, que se por um lado intensificam a exploração, a vigilância e o controle sobre o processo de trabalho, por outro permitem educar e lutar sob novas condições e apropriar-se crítica e combativamente das novas técnicas. É por isso que ensinar não é uma missão ou vocação impondo uma adesão acrítica às novas formas de ensino: é perfeitamente viável ensinar e lutar na nova situação; negá-lo é negar a sua própria capacidade de adaptar-se crítica e combativamente a novas realidades. O ensino remoto – e aqui me refiro especialmente às aulas remotas ao vivo – possibilita que o professor ensine de forma muito mais dinâmica, na medida em que muitas das plataformas virtuais à nossa disposição têm muito mais recursos que uma sala de aula tradicional.
    3. Na educação básica, sinto muito, a prática pedagógica mais efetiva é comprovadamente – por exemplo num relatório da McKinsey de 2017 que analisou dados do PISA – aquela baseada numa “instrução expositiva orientada pelo professor” – ele explica e demonstra conceitos e ideias, tira dúvidas e conduz discussões em sala de aula – , o que só pode ocorrer numa aula presencial ou remota; por outro lado, uma “instrução investigativa”, onde os alunos conduzem suas próprias investigações a partir de suas próprias ideias, contando com o professor enquanto orientador, tem “resultados ambíguos”. O relatório mencionado acima pode ser conferido – e inclusive a parte que se refere à América Latina está traduzida para o português – aqui: https://www.mckinsey.com/industries/public-and-social-sector/our-insights/how-to-improve-student-educational-outcomes-new-insights-from-data-analytics. Seja como for, o próprio fato de professores de instituições públicas de ensino superior continuarem trabalhando à distância, conduzindo pesquisas e projetos, dirigindo laboratórios e revistas acadêmicas ou fazendo orientações, bem como assumindo funções administrativas, demonstra o contrassenso de opor-se à inserção das técnicas mais modernas na sala de aula, ou melhor, à inserção da sala de aula num quadro técnico mais moderno.
    4. A estabilidade tanto não é a raiz de todos os males que eu fiz questão de pontuar que a estabilidade não implica na recusa a inserir-se no novo quadro, pois parte dos servidores públicos tem feito precisamente isso, hoje sobretudo trabalhando, em breve possivelmente desenvolvendo novas formas de luta. O nome disso é História: sim, as coisas mudam ao longo do tempo, e quando as mudanças contêm aspectos positivos e potencialidades revolucionárias o nome disso é Progresso.
    5. O professor, um proletário como qualquer outro, está sujeito a ter de se enquadrar nessa nova realidade tendo de fornecer ele mesmo as condições da sua própria exploração: ora, ele não é o único a passar por isso, afinal vivemos justamente a era da uberização, que atinge toda a classe trabalhadora (este site já publicou um texto sobre o assunto muito antes da pandemia: https://passapalavra.info/2017/05/111722/). Aliás, temos visto recentemente o desenvolvimento de diversas formas de luta entre os trabalhadores de aplicativos, acostumados todos os dias a ter de fornecer as condições da sua própria exploração. O professor é melhor do que eles (para não ter de sujeitar-se a isso) ou é pior (incapaz de se adaptar)? O professor deve combater a sua própria inserção nessa nova etapa do capitalismo e da luta anticapitalista somente enquanto trabalhador, continuando a participar dela como consumidor (desfrutando dos serviços da Uber, da IFood)? Deve também recusar-se a fornecer serviços educacionais de que outros trabalhadores necessitam – sobretudo agora – por intermédio de plataformas virtuais, porque isso prejudica suas condições de trabalho, etc.?

  4. Acredito que sim, todo trabalhador deve “recusar-se a oferecer serviços educacionais [ou quaisquer serviços]
    … porque isso prejudica suas condições de trabalho”.

  5. Primeiramente, eu gostaria de retomar a fala original que deu origem a este Flagrante Delito. Caso eu ouvisse um dos meus familiares bolsonaristas afirmar que as demandas, críticas e objeções ao ERE formuladas por professores não deveriam ser levadas a sério por serem obstruções de quem não quer trabalhar e se esconde atrás da estabilidade, não ficaria nem um pouco surpreso.
    Todavia, tais assertivas foram formuladas por um professor militante de esquerda, o que me causou grande surpresa.
    Cogitei que o colega poderia ter se expressado mal, mas não. São suas convicções. A primeira resposta acaba por reafirmá-las. Não fosse assim, qual seria o sentido de tomar o caso de meia dúzia de professores que postam fotos em chácaras, rios etc. como exemplo de quem não quer trabalhar e finge defender a educação?
    Vindas de alguém que acredito ser de extrema esquerda, demandariam no mínimo uma autocrítica. Ao menos essa seria a minha postura (fazer uma autocrítica) se uma determinada posição política assumida por mim fizesse coro com posições da extrema direita, como aqueles que tratam os servidores públicos como privilegiados que se aproveitam da estabilidade para não trabalhar ou para se dedicarem exclusivamente à agitação política. Mas enfim…
    As emendas ao soneto demonstraram diversas confusões. A rede municipal de ensino da capital onde o colega reside e trabalha está sem aulas por conta da recusa dos professores que obstruem o ERE para gozarem férias prolongadas em chácaras, rios etc.? Particularmente, desconheço casos em que o ERE deixou de ser implementado devido à resistência dos professores que não querem trabalhar para curtir férias prolongadas. Mas enfim… pode ser total desconhecimento da minha parte.
    Há ainda outro ponto que me chama a atenção. O colega demonstra um visão teleológica da História. Sim, o que se tem chamado de uberização do trabalho desponta como uma das principais tendências das transformações das relações sociais de produção e circulação de mercadorias. Porém, nem todas as técnicas e tecnologias se difundem da mesma maneira nos diversos segmentos produtivos. Mesmo técnicas e tecnologias hegemônicas se mesclaram com outras, pois a História é dialética, há resistências as mais diversas e os rumos do desenvolvimento se transformam.
    Nesse sentido, ainda que já esteja ocorrendo a uberização da atividade docente, isso não significa que é uma tendência necessariamente inevitável, à qual resta abaixar a cabeça, se adaptar e esperar que um novo ciclo de lutas ecloda.
    Para não me alongar, retomo propositalmente a fala original deste Flagrante Delito, pois o colega pode considerar que a uberização do ensino é inevitável, pode considerar que as resistências a esse processo são manifestações de formas de lutas arcaicas e fadadas ao fracasso, pode ver na uberização potenciais revolucionários, pode considerar que o proletariado deve primeiro se enquadrar às transformações para depois se rebelar, pode considerar que o EAD é o futuro da educação e à serviço da classe trabalhadora e assim por diante. Mas para alguém de esquerda, quiça de extrema esquerda, sugerir que as posições políticas distintas das suas são apenas obstruções de quem não quer trabalhar e se esconde atrás da estabilidade é algo, no mínimo, dispensável.

  6. Meu caro professor não tão jovem, nunca na minha vida me importei de ser acusado de fazer coro com a direita, aliás acusação corriqueira na esquerda contra quem faça comentários ou críticas inconvenientes; não será hoje que começarei a me importar com isso, nem muito menos que farei uma mea culpa para receber o perdão ou as bênçãos de algum camarada – se a finalidade da provocação e dos ataques é obter uma autocrítica à maneira das velhas burocracias stalinistas, o debate atual carece de sentido. De todo modo, a minha posição é a de que em vez de negar o novo quadro técnico, que tem vários inconvenientes, mas tem também vários potenciais e pode ser apropriado crítica e combativamente, cabe aos trabalhadores inserir-se nesse quadro e nele aprender a lutar (gostaria de saber onde estão os bolsonaristas que defendem as lutas anticapitalistas independentemente do quadro técnico estabelecido, seja mais arcaico ou mais moderno). Parte dos professores, entretanto, tem preferido obstruir a todo custo a implementação do ensino remoto, imposta por uma crise de saúde pública sem precedentes, em defesa de uma certa imunidade perante as transformações em curso nas relações de trabalho que lhes garante uma posição privilegiada. Isso para mim é intolerável, principalmente porque essas mesmas pessoas participam dessa nova realidade enquanto consumidores: até onde sei, duas denominações adequadas para isso são elitismo e corporativismo. Usufruem do trabalho precarizado de diversas categorias de trabalhadores – por vezes dividem os mesmos espaços com alguns desses trabalhadores – , mas não podem ser eles a prestar sob novas formas um serviço do qual esses outros trabalhadores necessitam para obter melhores condições de existência no capitalismo e para o desenvolvimento de suas capacidades intelectuais. Mas, enfim, não sei quando foi que a defesa de posições privilegiadas prejudiciais a outros trabalhadores começou a se passar por algo de esquerda, mas se é isto o que significa ser de esquerda, então eu não sou nem quero ser de esquerda.

  7. Caro jovem professor,
    A meu ver, afirmar que teu posicionamento original faz coro com afirmações típicas de pessoas de extrema direita que atacam o funcionalismo público e a estabilidade não é uma acusação, mas uma constatação. Como suas afirmações expressam algumas de suas convicções, não me surpreende que você não se incomode com tal associação.
    Fossem apenas comentários ou críticas inconvenientes, não me teriam causado o impacto e a surpresa iniciais que causaram. Mas veja, você não precisa do meu perdão, da minha benção e tampouco espero uma autocrítica nos moldes stalinistas. Como eu havia constatado desde o início, temos divergências políticas de fundo, pois o debate originado dos posicionamentos antagônicos a respeito do EAD e do ERE serviu para escancarar e publicizar nossas divergências mais profundas.
    Nesse sentido, interpreto seu último comentário como um esforço de malabarismo teórico e político para tentar combinar ataques a uma categoria profissional originados de afirmações genuinamente reacionárias (privilegiados, elitistas, corporativistas, não querem trabalhar – faltou pouco para chamar os obstrucionistas de vagabundos) com um suposto anticapitalismo.
    Se num primeiro momento o debate sobre a temática do EAD e do ERE me fizeram pensar na defesa que Lenin fez da adoção da organização científica do trabalho pela República Soviética, este infrutífero debate entre nós dois (aqui temos acordo) tem me feito pensar em Alexey Stakhanov.

  8. Pouco tenho a acrescentar ao que o colega não tão jovem já pontuou. Ainda assim, tenho que reconhecer que a ideia de que devo “uberizar-me” como forma de solidariedade aos “uberizados” tirou-me o sono.

  9. 1. O jovem usa o apelo à emoção, a generalização precipitada e a amostra limitada quado usa como argumento a favor do ensino remoto o amigo dele que só consegue estudar por causa do EAD (que é diferente de ERE). Depois, trata o extremo como regra com o exemplo dos tiradores de selfies (enquanto o velho apaga essas exceções para nivelar todo mundo pela regra boa). Na sequência, o jovem pega um estudo que diz uma coisa para tentar embasar outra coisa bastante diferente. Em seguida, o jovem apresenta uma concepção teleológica ultrapassada do processo histórico. Por último, o jovem aplica ao velho uma redução ao stalinismo que está na moda nas redes sociais: “quem me critica é porque quer que eu faça autocrítica, e portanto é stalinista”. Não acho que seja a melhor forma de dialogar, nem de um nem de outro, mas o jovem é livre para passar vergonha em público, e por mais que eu concorde com muita coisa que o velho disse, ele também parece mais preocupado em saber quem é de esquerda e de direita que em dialogar, parece mais preocupado em constranger que em aproximar. Isso não é bom.

    2. O jovem diz: “O ensino remoto – e aqui me refiro especialmente às aulas remotas ao vivo – possibilita que o professor ensine de forma muito mais dinâmica, na medida em que muitas das plataformas virtuais à nossa disposição têm muito mais recursos que uma sala de aula tradicional.” Concordo que o ensino remoto pode ser mais dinâmico que o presencial, mas o jovem não diz o que são esses “recursos” que fazem ele ficar mais dinâmico, e esse é o centro da questão. Os “recursos” são as coisas que a gente tem em casa e usa nas aulas? São as possibilidades abertas pela nova tecnologia? O jovem não diz. É petição de princípio, é argumento Tostines, “é mais dinâmico porque tem mais recursos, tem mais recursos e portanto é mais dinâmico”. Que “recursos” são esses? Não são poucas as escolas particulares do fundamental e médio que empurram para os professores os custos das novas tecnologias nas escolas particulares com o ensino remoto: aparelhos, planos de dados, licenças de alguns aplicativos, sai tudo do bolso da gente. Como a experiência pessoa nesse debate já está valendo como argumento, conto a minha. Ensino no fundamental em duas escolas pequenas e no médio em uma escola grande, é assim mesmo que funciona. Numa das pequenas dou aula pelo Whatsapp, não tenho mais hora de parar para descansar, a coordenação enche meu saco às 11 da noite querendo coisa que já estava até pronta. Deixo passar porque a diretora é quase pro forma, a escola é bem democrática mesmo, mas a grande bota uma pilha para a gente atender playboyzinho na hora que quiser, aí eu ligo o foda-se e desligo o aparelho. Já ensinei no EAD de universidade, existem regras, existe uma infra da própria instituição, é bom porque a gente tem apoio, mas no fundamental e médio na pandemia é salve-se quem puder, é cada um por si e Deus contra todos. A pandemia pegou todo mundo de surpresa, mas os donos das escolas estão fazendo o que podem para dividir os prejuízos com os professores e não pagar as horas extras que nos devem. Se a escola pagar pela transição tecnológica, mesmo na emergência, tudo bem, mas transferir o custo para os professores é explorá-los ainda mais. Se com “recursos” o jovem quer dizer as coisas que a gente tem em casa, é essa transferência de custos que está acontecendo, se os “recursos” forem o uso dos celulares, dos aplicativos com vídeo, filmes pelos estudantes tem mais coisa aí.

    3. O jovem apresenta um estudo para justificar sua defesa do ensino remoto com aulas interativas. Diz ele: “a prática pedagógica mais efetiva é comprovadamente – por exemplo num relatório da McKinsey de 2017 que analisou dados do PISA – aquela baseada numa “instrução expositiva orientada pelo professor” – ele explica e demonstra conceitos e ideias, tira dúvidas e conduz discussões em sala de aula – , o que só pode ocorrer numa aula presencial ou remota”. Eu li o estudo, ele tem como base o PISA 2012, não trata em momento algum do ensino remoto. O jovem quer fazer com que o estudo diga o que nem foi projetado para dizer, porque as condições de acesso ao ensino remoto são bem diferentes daquelas do ensino comum, já tem muita notícia tratando disso, vou copiar algumas. 5,7 milhões de estudantes ainda precisam pagar internet para ter aula na rede pública durante a pandemia, sendo que só Espírito Santo, Maranhão, Paraíba, Minas Gerais e São Paulo financiam o acesso à internet para os alunos (https://oglobo.globo.com/sociedade/pelo-menos-57-milhoes-de-estudantes-ainda-precisam-pagar-internet-para-ter-aula-na-rede-publica-durante-pandemia-24580861). Sem internet, sem aula remota. Entre outros problemas apontados na reportagem: “Eu colocava créditos em um chip, mas não duravam uma semana. Então, lá pelo fim de maio, eu combinei com a minha vizinha, que é professora, de dividir o wi-fi dela, e estou pagando uma parte da conta. Para a gente, que é da periferia, é pesada uma conta de internet”. Em outra reportagem (https://www.terra.com.br/noticias/educacao/adolescentes-e-jovens-abandonam-estudos-na-pandemia,c343ecaddfeb7d870c3de833359ccfeb27uslss3.html), dados da UNICEF que indicam que, dos que estavam matriculados antes da pandemia, 4 milhões não conseguiram continuar as atividades em casa, ficando excluídos da escola; pelo menos 4,8 milhões de crianças e adolescentes em todo o Brasil não têm acesso à internet em casa, enquanto outros milhões têm acesso precário ou falta de equipamento. A mesma reportagem cita dados de uma pesquisa Datafolha que diz que o percentual de alunos desmotivados, de acordo com a percepção de pais ou responsáveis, passou de 46% em maio para 51% em julho; mais estudantes passaram a ter dificuldades na rotina estudantil, passando de 58% para 67% no mesmo período; aumentou de 31% para 38% o percentual estudantes cujos pais e responsáveis temem que os estudantes desistam da escola. Outra reportagem (https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/pandemia-aumenta-os-riscos-do-abandono-escolar-no-ceara-1.2977971) mostra enorme preocupação no Ceará com a evasão escolar, porque mesmo que ainda não seja possível mensurar corretamente a evasão durante a pandemia, esta tem sido uma reclamação comum entre pais estudantes. Uma quarta reportagem (https://noticias.r7.com/educacao/para-53-dos-universitarios-qualidade-caiu-aponta-estudo-28072020), desta vez sobre o ensino universitário, aponta que 53% dos estudantes entrevistados numa pesquisa encomendada por uma instituição de financiamento estudantil afirmaram que a qualidade do ensino caiu com o ensino remoto; e que uma pesquisa da Associação Brasileira das Mantenedoras do Ensino Superior mostra que 3,5 milhões de estudantes podem ficar longe das universidades privadas no próximo ano por conta da mudança de data do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). A mesma pesquisa diz que para a maioria, 75% essa foi a primeira experiência com ensino remoto, 42% sentiram a ausência do professor e do contato com os colegas e 32% reclamaram não ter um local adequado para estudar; a maioria, 53%, afirmou que a qualidade do ensino caiu e houve uma queda expressiva no tempo dedicado aos estudos — de 8 horas diminuindo para 2 horas semanais; 72% respondeu que prefere aula presencial e 22% aceita modelo híbrido, desde que com uma metodologia mais dinâmica. Com tudo isso, que não é dedução com base em estudo antigo mas pesquisas e notícias recentes, dá para ver que o ensino remoto vai mal, está prejudicando a vida de professores e estudantes, e isso ainda vai causar muito problema nas próximas décadas. Não sou contra ensino remoto, mas da forma como está não dá, não está certo. Quando analiso o ensino remoto, eu parto daqui, eu parto disso, não do que eu quero ou gosto.

    4. O jovem quer tratar do mesmo jeito entregadores e professores, porque os dois estão sendo forçados ao teletrabalho: “O professor é melhor do que eles (para não ter de sujeitar-se a isso) ou é pior (incapaz de se adaptar)? O professor deve combater a sua própria inserção nessa nova etapa do capitalismo e da luta anticapitalista somente enquanto trabalhador, continuando a participar dela como consumidor (desfrutando dos serviços da Uber, da IFood)?”. O jovem pensa igual aos outros jovens que inventaram o “burguesômetro” do Twitter, onde você é burguês se tem Netflix, iPhone e wifi em casa, você é burguês se tem um padrão de consumo que garanta um mínimo de dignidade. Nem uma palavra sobre propriedade dos meios de produção, nada sobre controle do tempo de trabalho dos outros. É a burguesia de Seu Jorge, não a burguesia de verdade. O “burguesômetro” é só brincadeira de rede social, mas quando alguém leva a sério que alguém deixa de ser trabalhador porque pede comida no aplicativo, porque está “desfrutando dos serviços da Uber, da IFood”, a brincadeira passou do limite. A separação entre “trabalhador” e “consumidor” é ilusão, qualquer trabalhador precisa consumir para reproduzir a própria força de trabalho. Para ficar claro: não, eu não deixo de ser trabalhador porque peço comida no aplicativo. É a comida que o parça trouxe que faz eu continuar a ser trabalhador e não morrer de fome. Inclusive é porque ele traz comida que eu não preciso cozinhar, e posso estar mais à disposição da escola para responder alunos no SAE, planejar aula, preencher caderneta, me estressar com a coordenação pentelhando no Whatsapp… Eu não exploro ele, ele não me explora, eu não sou melhor que ele, ele não é melhor que eu, todos somos explorados de formas diferentes, e todos devemos lutar contra quem nos explora, cada qual a nosso modo, um apoiando o outro.

    5. O jovem acha que a divisão social do trabalho resulta em “privilegiados” e “desprivilegiados”: “Parte dos professores, entretanto, tem preferido obstruir a todo custo a implementação do ensino remoto, imposta por uma crise de saúde pública sem precedentes, em defesa de uma certa imunidade perante as transformações em curso nas relações de trabalho que lhes garante uma posição privilegiada. Isso para mim é intolerável, principalmente porque essas mesmas pessoas participam dessa nova realidade enquanto consumidores: até onde sei, duas denominações adequadas para isso são elitismo e corporativismo. Usufruem do trabalho precarizado de diversas categorias de trabalhadores – por vezes dividem os mesmos espaços com alguns desses trabalhadores – , mas não podem ser eles a prestar sob novas formas um serviço do qual esses outros trabalhadores necessitam para obter melhores condições de existência no capitalismo e para o desenvolvimento de suas capacidades intelectuais. Mas, enfim, não sei quando foi que a defesa de posições privilegiadas prejudiciais a outros trabalhadores começou a se passar por algo de esquerda, mas se é isto o que significa ser de esquerda, então eu não sou nem quero ser de esquerda.” É tudo consequência do erro anterior. É uma versão modificada da teoria dos privilégios (https://passapalavra.info/2014/12/101505/). O jovem quer resolver a divisão social do trabalho empurrando para baixo as reivindicações dos professores e apagando qualquer diferença entre categorias diferentes, como se uberizar todo mundo fosse solução para um problema que só pode ser resolvido por meio de lutas de categorias diferentes, com formas diferentes, por pautas diferentes, em solidariedade contra patrões diferentes, porque quando fazemos isso somos todos trabalhadores lutando contra capitalistas. Não importa os anos de estudo dos professores e dos entregadores, não importa as diferenças de salário, é tudo igual para o jovem. É o mesmo que dizer que um católico e um huguenote, um anglicano e um dissidente, são iguais porque são cristãos. Quem defende a valorização desses anos de estudo, desse investimento na força de trabalho, para o jovem não está lutando contra a desvalorização de sua força de trabalho pelos capitalistas, está sendo “elitista” e “corporativista”. Eu não estou sendo nem um pouco “elitista” nem “corporativista” quando quero receber o que é justo depois de onze anos de fundamental, quatro anos de médio, seis anos de faculdade, três de mestrado e dois de um doutorado que ainda não acabei. Não sou “corporativista” quando não quero jogar tudo isso pela janela e aceitar aumentar minha carga de trabalho sem aumentar meu salário. Isso é o básico dos direitos trabalhistas, conquista dos trabalhadores, não é bobagem. O jovem está confundido com autoflagelação a solidariedade necessária com as lutas dos entregadores, não é esse pensamento masoquista que vai resolver a divisão social do trabalho. Mesmo depois das revoluções a divisão social do trabalho ainda existiu, não é a uberização quem vai nivelar todo mundo. Devemos ser iguais nas lutas, mas no trabalho não temos como ser iguais. Mesmo porque quanto mais qualificado é o trabalho, mais produtivo ele é, maior a intensidade da exploração, se olharmos por esse lado a exploração dos entregadores é brutal, corta na carne, mas pelo lado da economia e da pura extração de mais-valia eu sou explorado de formas muito mais intensas e sofisticadas no meu trabalho de professor que um entregador rodando doze horas por dia e vivendo no limite da fome. Não existe “privilégio” de mim para o entregador, existem formas diferentes de exploração que nós dois somos vítimas.

    6. O jovem pergunta: “Deve também recusar-se a fornecer serviços educacionais de que outros trabalhadores necessitam – sobretudo agora – por intermédio de plataformas virtuais, porque isso prejudica suas condições de trabalho, etc.?” Deve sim. O ensino à distância, do jeito que está, é ruim porque piora a exploração dos trabalhadores da educação, é ruim porque há um número enorme de estudantes que não tem a menor condição de infraestrutura para acompanhar o ritmo das aulas, e tudo isso piora a qualidade da educação. É verdade, a OCDE já falou dos prejuízos da suspensão das aulas, mas também é verdade que o ensino remoto, como está, não resolve, pelo contrário, pode até aumentar a evasão escolar. Estou falando do fundamental e médio, onde está a maioria dos estudantes brasileiros. Nas faculdades, mesmo onde já tem EAD o ERE está péssimo. Eu continuo dando aulas à distância no fundamental e no médio porque não tem jeito (patrão mandou, está mandado, porque no fim do mês o boleto continua chegando), porque acredito no ensino à distância e também porque não vejo nenhum movimento forte dos professores do fundamental e médio se organizando. Mas do jeito que a coisa está, se fosse preciso parar, eu parava sem problema nenhum. E dou total apoio a qualquer sabotagem no sistema. Está ruim, todo mundo sabe disso, mas ninguém quer parar porque está todo mundo querendo fingir que está tudo bem. Professor finge que sabe usar ferramentas que nunca usou, estudante finge que consegue aprender dividindo o único celular da casa com os pais e os irmãos, os governantes fingem que vai ser um ano normal (já tem estado e prefeitura que orientou as escolas a não reprovar ninguém), os pais fingem que não estão enlouquecendo com os filhos confinados em casa, os donos de escola fingem que têm prejuízo quando na verdade as escolas fechadas são uma puta economia com energia, água, material de consumo corrente… É uma grande ilusão coletiva.

    7. Tudo seria melhor se, em vez de ficar se insultando (coisa do Olavo de Carvalho) a gente se mobilizasse para reivindicar que as escolas particulares paguem por essa transição para o ensino remoto (aparelhos, licenças de aplicativos), que as prefeituras, governos estaduais e federal garantam aparelhos e conexão para quem precisa no fundamental, no médio e nas faculdades, e que tenha maior investimento nesse modelo à distância para que ele seja ensinado também nas licenciaturas, que vamos falar a verdade, estão ensinando ainda a didática do tempo de minha bisavó. Eu acredito no potencial do ensino à distância, desde que exista acesso igualitário à infraestrutura para todos os estudantes, e que os professores não tenham nem que tirar do bolso para trabalhar, nem que trabalhar mais sem ganhar proporcionalmente mais. Eu acho que é isso o que o jovem quer dizer por trás dos insultos. Quero acreditar que é isso o que o velho também quer dizer, em vez de enquadrar quem é e quem não é de esquerda. Essa pauta já existe, já tem professor mobilizando para conseguir aparelhos para quem precisa, é tudo mobilização de trabalhadores para garantir a educação de jovens trabalhadores. O que não tem é movimento forte e organizado para pressionar governos para assumir essa responsabilidade, que os próprios trabalhadores vão suprindo na base da caridade.

  10. Matusalém,

    Responderei parcialmente à sua mensagem, aquilo que acho que vale a pena. O farei a partir da sua própria numeração em tópicos.

    1.
    – quando mencionei o meu amigo e colega de classe, eu não falava da EaD, e sim do ERE mesmo. Eu sou professor e aluno, tanto uma coisa quanto outra – atualmente – no ERE.
    – nada do que afirmei no primeiro comentário foi tratado como regra. Leia novamente e veja que a palavra “alguns” foi colocada ali cuidadosamente; minha escrita foi cuidadosa, sua leitura nem tanto.
    – discordo do argumento referente a uma suposta concepção teleológica da História: esta é feita de muitas possibilidades (práticas sociais), que abrem interminavelmente novas possibilidades formando uma trama complexa; e ao mesmo tempo de possibilidades perdidas, derrotadas, etc. Simplesmente quis dizer que o ERE, bem como a inserção do ensino num quadro técnico mais moderno, abre potencialidades positivas, tanto para o ensino quanto para a luta; e nem referi apenas potencialidades positivas, reconhecendo também as negativas.

    2.
    – os recursos que referi estão evidentemente relacionados às possibilidades técnicas das plataformas virtuais: isso está explícito no meu comentário; novamente, a leitura precisa ser cuidadosa em qualquer debate.
    – quanto à transferência de custos referida por você, jamais neguei que exista. É um problema que precisa ser enfrentado.

    3.
    – o estudo da McKinsey não trata do ensino remoto. O citei como resposta ao seguinte questionamento: “o trabalho docente se resume a dar aulas?”. E o fiz para argumentar que sim, na educação básica ensinar é sobretudo dar aulas. Você está, portanto, atribuindo ao meu comentário uma associação que eu não fiz.
    – quanto ao restante do seu tópico 3, tenho a dizer o seguinte: existe uma parcela considerável da população brasileira parcial ou totalmente excluída do acesso à internet. Apesar disso, e sobretudo no contexto excepcional da pandemia, penso que o correto seja lutar pela implementação do ERE e ao mesmo tempo pela universalização do acesso à internet. Uma coisa não exclui a outra. Novamente darei o exemplo da cidade onde moro, em que os alunos das escolas municipais estão privados de qualquer instrução, pois não há aulas remotas: eles não têm qualquer acompanhamento por parte de um professor, o que levou à suspensão dos salários dos professores, mas apenas dos temporários, isto é, os já precarizados. Ora, em vez de uma parte deles estar excluída da educação por não ter acesso à internet, estão todos, inclusive aqueles que têm: o resultado é um agravamento das desigualdades, pois há uma maior quantidade de pessoas privadas de qualquer ensino – não apenas de um ensino ruim, mas de qualquer ensino. Enquanto isso, uma minoria, os alunos das escolas particulares, estão estudando remotamente. E olha que você me acusou de querer nivelar as coisas por baixo…

    4.
    – esse comentário é talvez o mais desonesto de todos, pois não chamei ninguém de burguês, nem pretendi que os professores fossem burgueses por fazerem uso de aplicativos de entrega ou coisas do tipo. Mencionei, isto sim, um elitismo e um corporativismo característicos da categoria de que faço parte, que conheço por dentro. O professor – que é um trabalhador, um proletário – não pode defender para si privilégios corporativos enquanto a generalidade dos trabalhadores que o cercam estão sendo privados progressivamente de qualquer direito, muito menos quando ele se beneficia dos serviços desses trabalhadores. Se a situação requer o ERE, ele não pode se negar a ensinar nessas novas condições sob o argumento de estar sendo precarizado; e se se impõe um novo quadro técnico, o melhor é que o professor tente o quanto antes desenvolver formas de resistência no interior desse novo quadro técnico. Essa é a minha posição.

    5.
    – seu comentário me fez rir, porque quem me conhece sabe o quanto eu critico – e na militância, enfrento – a “teoria dos privilégios” e o identitarismo em geral. Os privilégios que referi não resultam de uma invenção do racismo identitário. Pelo contrário, são muito concretos: no quesito reforma da previdência, por exemplo, há sempre um lobby e uma resistência muito forte para livrar os professores das piores mudanças. Sempre que uma proposta de reforma envolvendo o funcionalismo é apresentada, os professores postam-se ao lado de outras corporações tão corporativas quanto eles.
    – curiosamente, embora eu tenha sido acusado de aderir a uma posição típica do identitarismo, seu comentário parte de um raciocínio que contribui para exacerbar as divisões internas entre os trabalhadores e fragmentá-los. Mas, enfim, para alguns, defender a própria posição – o elitismo da frase “no trabalho não temos como ser iguais” é notável – é sempre o mais importante, muito embora a classe trabalhadora seja una. É uma pena para as lutas dos trabalhadores, que precisam ser iguais não apenas no trabalho como também na luta. Mas as divisões impostas pelo capitalismo já estão muito internalizadas em algumas pessoas.

    7.
    – sou completamente favorável à lista de reivindicações que você apresentou. Apenas acho que a urgência da pandemia impõe que essas reivindicações sejam feitas em meio ao ERE, em seu interior, não fora dele: é perfeitamente possível, como já afirmei, trabalhar sob novas condições técnicas – cheias de aspectos negativos, claro – e lutar. Por isso mencionei os trabalhadores de aplicativos. No futuro talvez seja a vez dos professores, resistindo nos marcos de uma educação mais moderna.

    Enfim, o que valia a pena responder – em benefício do debate – foi respondido.

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