Por Raquel Azevedo
É possível definir o auxílio emergencial – pago pelo governo federal desde abril – a partir das demais formas de transferência de renda existentes, o que faria do auxílio uma renda sem contrapartida. Nelson Barbosa lembra, em sua coluna na Folha, algumas modalidades de transferência de renda com contrapartida: os benefícios do INSS por incapacidade de trabalho, o seguro desemprego pela perda de emprego, o abono salarial para baixos salários, o Bolsa Família pela condição de pobreza, o seguro defeso pela impossibilidade de pescar etc. Se o auxílio emergencial é uma transferência de renda sem contrapartida, é natural que parte de sua força recaia sobre aquele que paga. Em lugar de uma discussão sobre o benefício político que Bolsonaro pode obter com o pagamento do auxílio, talvez valesse a pena nos demorarmos um pouco mais na investigação sobre quem, de fato, paga uma renda sem contrapartida. Não se trata de uma pergunta qualquer. Os estudos a respeito das fontes dos rendimentos estão na origem do pensamento econômico na modernidade. Mas no nosso caso não se trata de desvendar de onde provêm o juro, a renda da terra e o salário, mas qual a origem de uma renda sem contrapartida.
É famosa a tese de Karl Polanyi no livro A grande transformação, publicado em 1944, de que o mercado de trabalho não se constitui plenamente na Inglaterra antes do fim da Speenhamland Law em 1834. Somente com o fim dos abonos (criados em 1795) que asseguravam ao pobre uma renda mínima que variava de acordo com o preço do pão, a regulação dos salários passou a depender exclusivamente do movimento dos capitais, por um lado, e da atuação dos sindicatos, de outro. No entanto, enquanto o auxílio estatal vigorou, Polanyi conta que os salários se reduziram a níveis de indigência, visto que os capitalistas sabiam que o Estado complementaria a renda dos miseráveis. Antes da Speenhamland Law, a formação plena de um mercado de trabalho na Inglaterra estava impedida pelo chamado Decreto de Domicílio, de 1662, em que o trabalhador tinha sua mobilidade reduzida à paróquia em que trabalhava. Se, de um lado, a mobilidade restrita e os abonos salariais represavam a plena sujeição dos trabalhadores às leis do mercado, a transformação do regime de propriedade da terra (ou a formação de um mercado da terra) avançava, de outro, e a manufatura inglesa nascente não conseguia absorver com a rapidez adequada a quantidade de trabalhadores que era expulsa de suas terras. Muitos se transformaram em ladrões, mendigos, vagabundos. Daí ter surgido em toda a Europa ocidental no fim do século XV e início do século XVI uma legislação sanguinária contra a vadiagem.
Embora ingênua aos nossos olhos, a Utopia de Thomas More, publicada em 1516, é um testemunho curioso da formação dos mercados da terra e do trabalho. O texto da Utopia está dividido internamente em dois livros: o Livro I identifica o processo histórico de transformação das terras comuns em pastagens na Inglaterra do século XVI, em que “os carneiros devoravam os homens”, e condena o tipo de punição em vigor aos ladrões e vagabundos em geral gestados nessa expulsão dos trabalhadores do campo; e o Livro II apresenta uma sociedade cujo princípio ordenador é a redução da propriedade e do dinheiro à quase insignificância. Relembro aqui a tradição utópica não pelas soluções precárias que encontramos em seus textos, mas pelo gesto lógico em jogo: diante do processo de formação dos mercados da terra e do trabalho, a tradição utópica imagina o caso limite, no espaço ou no tempo, da forma de dominação presente (a Utopia de More é um deslocamento no espaço, enquanto O ano de 2440 de Louis-Sébastien Mercier, publicado em 1770, nas vésperas da Revolução Francesa, pode ser considerado o primeiro exemplar de uma imaginação utópica no tempo).
Voltemos à renda sem contrapartida. Talvez fosse preciso ser mais específico e definir a renda básica como renda sem contrapartida no trabalho. Se Polanyi associa os abonos da Speenhamland Law a um represamento da formação do mercado de trabalho, em que estado de desenvolvimento desse mesmo mercado a renda básica surge novamente como uma força política? Ora, em um momento em que o desenvolvimento tecnológico que torna supérfluo o trabalho convive com a criação acelerada de trabalhos de merda, os bullshit jobs de que falava David Graeber. Uma das maneiras de pensar o estado atual do mercado de trabalho é que a tradição utópica, que está de alguma maneira associada à formação desse mercado, não exerce sobre nós qualquer apelo. Parece que há uma correlação entre o esvaziamento da ideia de que a história caminha para os ideais da Revolução Francesa e o desenvolvimento disso que chamamos de mercado de trabalho. Talvez essa seja uma hipótese ampla demais, talvez o mais importante agora fosse discutir o aspecto operacional da implementação da renda básica através de um imposto de renda negativo, por exemplo. Mas está na própria origem do pensamento econômico a pergunta sobre a origem das rendas. No caso, de uma renda que o Bolsonaro, tonto que é, demorou alguns meses para entender o poder que lhe dava.