Por Plateforme d’enquêtes militantes

Este artigo é parte do livro Lutas na pandemia, publicado em inglês pelo coletivo Notes from below e cuja Introdução foi publicada em português aqui. Fizeram parte da publicação os artigos A chamada da morte: pânico no atendimento, Atento: resistindo à chamada da morte e Odisseia da morte: persiste a luta pela vida na Atento. A tradução é de Marco Túlio Vieira.

A pandemia de Covid-19 na França, assim como em outros países ao redor do mundo marcados pela sequência de revoltas populares em 2019, está envolvida em um contexto de conflitos sociais exacerbados, no qual as tensões e contradições que cruzam nossas sociedades diariamente estão aumentando rapidamente e de forma imprevisível. No momento, após mais de um mês de lockdown e de uma grave crise econômica, os dezoito meses do movimento dos Coletes Amarelos – com momentos próximos da insurgência, grande criatividade democrática e quase três meses de greve geral contra a “reforma da aposentadoria” – não aparecem mais como simples reinvenções da luta das classes no mundo contemporâneo, mas como mensagens do futuro – as epifanias subjetivas e conflitantes do colapso do velho mundo e a abertura de um espaço para novas experimentações radicais.

Os efeitos da epidemia de Covid-19 no antagonismo entre capital e trabalho não podem ser entendidos sem perceber como um poderoso terreno de conflitos foi aberto e está estruturando a situação atual. A “excepcionalidade” das medidas tomadas para lidar com a epidemia não se situa em um espaço vazio, mas em uma rede viva de formas de auto-organização e contra-poderes sociais, democráticos e ecológicos que foram se consolidando ao longo do tempo. Ainda assim, pelo lado do governo francês, a situação e a oportunidade política aberta no início da pandemia – uma crise tanto de saúde quanto social – parecem muito claras: armado com uma retórica marcial e sob a bandeira da unidade nacional (foi Macron quem introduziu a palavra “guerra” no debate internacional sobre a atual crise), seria uma questão de se aproveitar da situação para rearticular a relação capital-Estado e as formas de governança neoliberais que se formaram após a crise global de 2008. Ao invés de ir em direção a um “estado global de exceção” sem precedentes, a virada se deu para uma gestão diferenciada da crise reprodutiva que a pandemia iniciou – uma situação que pede uma análise materialista das relações sociais dentro do quadro de uma reconfiguração dos poderes administrativos e de governança a nível nacional e europeu.

Na França, isto se manifestou de várias formas, em particular através do papel de liderança de antigos responsáveis pelo desmonte do sistema de saúde nas respostas a crise, como Jérôme Salomon, o Diretor Geral de Saúde responsável pela gestão da crise da epidemia, ou através da “Lei de Emergência Sanitária” (Loi d’Urgence Sanitaire). Esta lei é altamente ambígua em relação a seus propósitos: eles buscam tanto combater a disseminação do vírus quanto “lidar com as consequências econômicas” da epidemia. Na verdade, isto significa em grande parte a suspensão da legislação trabalhista existente (Code du travail). No entanto, a entrada da França em uma recessão este trimestre claramente indica que as consequências da epidemia não vão parar por aí. As medidas anunciadas anteriormente proibindo demissões foram eventualmente sendo substituídas por um sistema de “assistência às empresas” (uma forma de isentá-las das contribuições que financiam a previdência social), baseado na ideia de que um limite para as demissões vai ser atingido através da garantia de mais subsídios aos patrões.

Nós estamos, portanto, frente a uma contradição óbvia do programa do governo francês. Por um lado, frente a séria crise de legitimidade que o atingiu, Macron insiste na “refundação” do seu projeto político, seu modelo de desenvolvimento e políticas sociais, ao aumentar o gasto público e “revalorizar” certos serviços públicos, começando pelo setor de saúde. Por outro lado, essa re-fundação é feita mantendo os elementos centrais do seu projeto: desafiar a “rigidez” da lei trabalhista, rejeição a uma real reconversão ecológica da economia, desonerações fiscais para grandes fortunas e consequente redistribuição de riqueza em direção ao topo da sociedade (questões contra as quais os Coletes Amarelos lutaram com toda sua determinação).

Neste contexto em rápida mudança, um dos primeiros efeitos das medidas sociais e sanitárias do governo foi o aumento da jornada de trabalho para 60 horas semanais nos assim chamados setores “essenciais”, que frequentemente coincidem com o estrato sobre-explorado do trabalho assalariado contemporâneo, como logística ou a indústria agro-alimentícia. Além disso, medidas de licença obrigatória foram impostas como parte da lei, enquanto alguns membros do governo estão começando a considerar a possibilidade de fazer com que pessoas trabalhem durante o verão para recuperar o tempo de produção perdido durante a pandemia, como se o lockdown fosse um feliz recesso de primavera.

Logo, a questão política central é quais setores são essenciais e quais não o são em tempos como este. E deste ponto de vista, o ministro do Trabalho Pénicaud não hesitou em chamar de “derrotistas” os trabalhadores da construção civil que se recusaram a trabalhar na primeira semana do lockdown. Nesta situação, a nossa reivindicação foi a paralisação de toda produção não-essencial, ou em outras palavras: ter a produção apenas para reproduzir a espécie e salvar vidas. Esta “consciência de espécie”, quando combinada com os conflitos no trabalho, assume ao mesmo tempo a conotação de “classe”, assumindo que hoje “classe” é apresentada em múltiplos termos e como um processo de contínua recomposição e transformação. Fatores “sociais”, “de gênero” e “raciais” cruzam estes novos conflitos no trabalho – conflitos que ao mesmo tempo são inseparáveis das lutas ecológicas e de bem-estar social (que é o que entendemos como reprodução social).

Esta crise revela então a divisão social do trabalho contemporânea e as novas lógicas de exploração. Por um lado, nós temos o reino do teletrabalho (veja as múltiplas articulações entre trabalho cognitivo, conhecimento, trabalho linguístico e comunicacional, etc.), que representa cerca de 8 milhões de trabalhadores em uma população ativa de 19 milhões de pessoas, sem negligenciar o que é chamado de “trabalho digital gratuito”, i.e. a enorme massa de dados sociais (em termos de informação, conteúdo e efeitos) produzida por cada um de nós, extraída pelas plataformas e integradas no ciclo de acumulação de capital. Por outro lado, nós temos o trabalho em serviços, públicos ou privados, e o trabalho manual neo-taylorista. Os trabalhadores neste último setor, que também são os mais afetados pela perda salarial daqueles que não podem mais trabalhar, são especialmente suscetíveis ao contágio (especialmente trabalhadores da saúde) devido a circulação de bens e pessoas em seus locais de trabalho. Finalmente, os trabalhadores autônomos, os desempregados excluídos do novo critério para alocação dos benefícios sociais da aposentadoria e seguro desemprego, ou aqueles que, em situações muito precárias, completam sua renda com formas de trabalho secundárias, informais ou não declaradas. Negligenciar os trabalhadores não declarados legalmente é extremamente sério do ponto de vista sanitário.

Por fim, deve ser destacado que são os trabalhadores reprodutivos – no sentido mais amplo do termo – que estão em um nexo estratégico desta crise. É baseado nessa observação que duas perspectivas para a luta podem ser avistadas no horizonte. Por um lado, mais e mais vozes estão se levantando para demandar a imediata reconversão de cadeias de produção, por exemplo, de carros, para objetivos que requerem que a vida comum seja baseada na reprodução e não na valorização monetária: “Vamos produzir respiradores, e não carros!” Neste sentido, nós devemos reiterar que, apesar do governo francês afirmar que companhias como a Michelin “concordaram” em mudar a organização da sua produção, foram as lutas dos militantes de base dos sindicatos e a previsão de intensificação dos antagonismos sociais existentes que levaram a tal decisão.

Dada esta situação, pelo lado dos trabalhadores a questão do controle democrático da produção levanta dois aspectos: por um lado, como mencionamos, pela restruturação das cadeias de produção para atender as necessidades de reprodução da espécie e para assumir a tarefa reprodutiva que os governos neoliberais largamente abandonaram depois de quarenta anos de “racionalização” do sistema de saúde; por outro lado, a autogestão da higiene em armazéns e galpões, enquanto os patrões, quando tentam dar conta desta tarefa, afundam no irracionalismo e em uma terrível superficialidade.

Nas últimas semanas os movimentos grevistas têm se intensificado ou estão sendo preparados com base na recusa óbvia daqueles que ainda estão trabalhando em arriscar suas vidas para, por exemplo, entregar mercadorias: após quase um mês de lockdown, a maioria das empresas apenas mudou marginalmente suas condições sanitárias. Além disso, ainda há a dificuldade dos trabalhadores em garantir o “direito de recusa” (Droit de retrait – o direito de parar o trabalho quando as condições de segurança não estão garantidas). Muitos postos dos Correios, por exemplo, já entraram em greve, e a fiscalização trabalhista está descobrindo cada vez mais que não há respeito de fato ao “distanciamento social” de 1,5 metros defendido pelo governo, que é impossível de ser alcançada na maioria dos locais de trabalho que ainda estão ativos. Neste contexto, a reposta dos sindicatos está se tornando mais e mais crítica à medida em que as semanas passam, apesar das dificuldades para as próprias organizações poderem operar normalmente devido ao confinamento, já que os representantes sindicais estão atualmente impedidos de se locomover livremente. Um aviso de greve no serviço público permite a qualquer trabalhador, sindicalizado ou não, entrar em greve e, em empresas onde as medidas sanitárias e de segurança estão sendo pouco seguidas, como a Amazon, mesmo os sindicatos mais moderados puxaram greves já que o número de contaminações claramente explodiu, apesar da falta de transparência por parte dos gestores em relação ao número preciso de casos.

O recente anúncio de um “plano gradual de saída do confinamento” a partir de 11 de maio é entendido agora como uma determinação judicial para que uma série de trabalhadores retome as atividades produtivas.

Está claro que, no contexto da necessidade de Macron, assim como de muitos outros representantes do neoliberalismo, de reativar a máquina econômica, a necessidade de defender e organizar a reprodução da vida coletiva abrirá ainda mais espaços para a construção da autonomia e auto-organização social.

Parece que a reabertura das escolas anunciada para o início de maio é uma maneira de permitir aos pais retornar ao trabalho, expondo os trabalhadores da educação ao risco massivo de contaminação. Mesmo que ainda seja muito cedo para comentar a questão do que promete ser um retorno ao trabalho, nós já podemos dizer que é inconcebível que os trabalhadores precários no sistema nacional de educação e em outros setores não venham a se mobilizar, prolongando assim a determinação que demonstraram durante o movimento contra a reforma previdenciária. Uma forma inovadora de greve nacional da educação poderia ser experimentada no futuro.

Na verdade, a conjunção de movimentos de massa que agora sabem ser sustentáveis, como testemunhado pelas Assembleias dos Coletes Amarelos e a miríade de contra poderes locais e populares que as constituíam, com uma greve generalizada parece fazer com que a burguesia tema a cada dia mais a longa primavera de lutas que ela vem tentando deter há anos. Neste quadro, é impossível para a burguesia não fazer grandes concessões: a decisão judicial tomada em 14 de abril para reduzir as instalações da Amazon a 10% da sua capacidade, como reivindicado pelo sindicato SUD-solidaire, ilustra perfeitamente esta situação, assim como o rápido abandono por parte da Medef (principal organização dos patrões) da sua reivindicação por maiores jornadas de trabalho. Além disso, a demanda pelo reconhecimento do trabalho reprodutivo, que tantas vezes resulta em empregos precários ou invisíveis, também vai nesta direção: antecipar a crise econômica que vai acompanhar o final do confinamento também significa pensar e construir lutas que visem a restruturação dos impostos na França (retorno do imposto sobre riqueza, abolição da CICE [crédito tributário para empregos e competitividade]) e que requerem massivos investimentos do setor público, uma melhor distribuição de riquezas e uma rejeição geral de políticas de austeridade. Todas estas lutas serão para assegurar que nada retorne ao normal, especialmente na França, e que a máquina política do macronismo, com suas reformas e planos para o desmonte do setor público, não entre de novo em funcionamento.

Neste contexto, e para aumentar a pressão, a maior questão de intervenção e investigação que parece estar em jogo hoje é claramente a auto-organização de formas alternativas de reprodução social em um momento em que a questão do espaço doméstico está no centro da nossa vida cotidiana: a questão dos aluguéis, do trabalho doméstico e da violência contra as mulheres devem ser absolutamente levantadas e articuladas com práticas básicas, como as brigadas de solidariedade popular (brigades de solidarité populaire) e tantos outros grupos já estão fazendo.

A outra perspectiva de investigação que se abre a partir do nosso ponto de vista é a contrapartida ecológica desta crise: a atual crise ecológica está duplamente na origem da situação na qual nos encontramos, claramente colocando questões centrais para os movimentos ecológicos como a redução global do tempo de trabalho e intervenções com uma perspectiva ecológica nas lutas no setor de cuidados. O trabalho da Assembleia Parisiense Ecologias em Luta vai amplamente nesta direção, tentando politizar a questão ecológica em um momento em que a destruição dos ecossistemas torna esta crise global reproduzível.

O artigo foi ilustrado com obras de Eileen Holzman.

Referências adicionais:

Plateforme d’enquêtes militantes:
http://www.platenqmil.com/

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