Invisíveis entrevistam morador de Trindade que participou da barreira sanitária

Conversamos com Davi, morador de Trindade, em Paraty, que presenciou e participou da mobilização da barreira sanitária que lá ocorria, outrora relatada e debatida nesse site (aqui, aqui e aqui). Tendo a prefeitura “lavado as mãos” da responsabilidade sob a pandemia, os próprios moradores da comunidade começaram a se mobilizar e articular formas de manutenção de suas vidas. A entrevista aconteceu nos dias finais da barreira sanitária, tendo seu fim no dia 15 de agosto.

Invisíveis (I): Como começa a ideia de fazer a barreira sanitária?

Davi (D): Logo quando começa o assunto da pandemia, que ela fica mais evidente, começa a despertar um receio muito grande da comunidade por ser um lugar muito visitado, turisticamente falando, e pela comunidade tradicional caiçara também ter hábitos de ficar mais junto e de famílias grandes com a presença de idosos, normalmente. Isso levantou uma preocupação muito grande e a primeira medida que é feita pela comunidade foi criar um abaixo-assinado virtual lá para meados da segunda quinzena de março, solicitando às autoridades que fechassem imediatamente a comunidade tradicional caiçara. Sabendo que não se poderia esperar atitudes tão rápidas, como deveria ser, [por parte] do poder público, foi uma juventude da comunidade [que] resolveu por conta própria tomar a iniciativa de bloquear os acessos de Trindade para não moradores. Então foi uma atitude de um grupo de jovens inicialmente que resolveu tomar para si a responsabilidade e isolar a comunidade e solicitar apoio da associação de moradores de Trindade e toda a comunidade diante dessa atitude, para reforçar essa necessidade de fechamento.

I: Em meados de junho uma fila enorme de carros tentou entrar em Paraty. Ficou mais evidente a contradição daquela barreira na entrada da cidade, as pessoas já estavam entrando, mesmo a cidade estando fechada. Chegou a acontecer um buzinaço desses veículos pressionando a entrada na cidade. Muita gente começou a reclamar, se agitar para fiscalizar a barreira na entrada da cidade [1]. Circulou um áudio do prefeito, nessa época, tentando acalmar os ânimos e dizendo que dava apoio às barreiras sanitárias. Como se deu essa relação com a prefeitura, para o estabelecimento dessa barreira, uma vez feita?

D: É muito claro aqui em Paraty que todas as vezes que os cidadãos, Organizações Não Governamentais [ONGs] ou outras instituições manifestam críticas ao poder público e solicitam mais participação com relação às responsabilidades da prefeitura, essas críticas e apontamentos são sempre rebatidos como se fossem movimentos políticos de oposição eleitoral. Mas o que a gente percebe é que, graças à movimentação das comunidades e da população de Paraty, em um determinado momento como esse, em que vídeos evidenciaram grande quantidade de fluxo turístico entrando na cidade, a ampliação desse debate, principalmente por meio das redes sociais, fez com que as comunidades entendessem que seria mesmo à sua própria sorte, digamos assim, a tentativa de [fazer] barreiras.

Como o próprio prefeito fala, alguns moradores entraram em confronto entre si por causa da barreira e aí há algumas desistências de voluntários nas comunidades. Sinto que se realmente tivesse tido uma boa participação da prefeitura com relação a todas as barreiras no município, creio que essas barreiras teriam durado mais!

Aqui em Trindade o que houve foi um pedido de apoio da prefeitura, que no tom informal, nas palavras, manifestou apoio à comunidade. O que houve, por exemplo, [foi que] das tendas que foram montadas, nenhuma delas era da prefeitura. Elas foram cedidas pela associação de surfe de Trindade e pela associação dos barqueiros e pescadores tradicionais de Trindade. O que a prefeitura fez foi trazer alguns banheiros químicos que foram deixados no ponto da barreira de Trindade. Fora isso, ocasionalmente a prefeitura concedia alguns materiais de higiene como máscaras, álcool, luvas. Isso foi pontual, ocorreu algumas vezes, mas o apoio da prefeitura foi praticamente nulo, a não ser com relação a manifestações públicas de apoio. Eu posso dizer [que] só o fato da prefeitura não impedir a barreira para nós já foi de grande ajuda, visto que sabemos da dificuldade da prefeitura de realmente manter guardas municipais em todas as barreiras comunitárias, como deveria ter sido de fato. Agora, eu acredito que por conta de Trindade ser um subdistrito de Paraty, praticamente o mais visitado da Costa Verde, a prefeitura deveria ter tido um olhar mais presente e preocupado com essa questão. No entanto, mesmo com a falta de apoio prático, tanto em material quanto em mão de obra, a barreira pôde se manter durante todos esses dias.

I: Temos percebido que as organizações de bairro atualmente são mais construídas dentro da dinâmica dos grupos de WhatsApp do que pelas associações de moradores em si. Dessa forma, como se deu a relação com a associação de moradores de Trindade?

D: Eu sinto que as ferramentas tecnológicas, seja o WhatsApp ou Facebook, por exemplo, acabaram facilitando a auto-organização desse grupo que obteve participação de vários setores e segmentos diferentes da comunidade não diretamente ligados à associação de moradores. O próprio grupo inicial dos jovens iniciou a barreira num tom muito mais informal, imediato e urgente para fazer a contenção do turismo em Trindade. Foi feita essa solicitação à associação de moradores e eles entraram no processo financiando alimentação e outras demandas para que a barreira funcionasse, mas o fato é que ela realmente veio atuando como um suporte de um grupo que foi se formando e crescendo muito por conta de [grupos de] WhatsApp, além do fato de que as pessoas foram passando na barreira e se sensibilizando. Todo mundo ou grande parte da comunidade entendeu que também deveria dar a sua participação nesse trabalho. A associação de moradores prontamente veio trazer uma formalidade institucional ao movimento comunitário e auxiliar na manutenção desse trabalho, muitas vezes cumprindo o papel do poder público, ajudando na alimentação, transporte, materiais de higiene e ficou ali na contenção. Foi muito importante a participação da associação de moradores junto a esse grupo de voluntários que fez esse trabalho de tantas horas.

Vale ressaltar que, a partir do momento da entrada da associação de moradores, tem esse apoio em peso político. Inclusive, lá para meados de maio, quando a prefeitura fez a primeira flexibilização dos comércios na cidade, a associação de moradores iniciou um procedimento de consulta à comunidade que ouviu mais de 400 pessoas, para entender o que a comunidade estava pensando em relação à manutenção da barreira. Mais de 90% dos ouvidos nessa pesquisa manifestaram apoio à barreira e esses documentos foram encaminhados à prefeitura como forma de formalizar o movimento da barreira pela vida, ganhando então respaldo institucional da associação de moradores, da prefeitura e também do Ministério Público Federal, que teve ciência, após essa consulta popular feita pela associação de moradores, que foi fundamental para realizar o enfrentamento dessa situação, principalmente com relação àquelas pessoas que ignoravam o direito das comunidades tradicionais de manter seu isolamento.

I: Já existe a sinalização da Associação de Moradores para abrir [a barreira] no dia 15. Olhando agora, vocês acreditam que atingiram os objetivos que se propuseram na montagem dessa barreira?

D: Eu acho que foram dias muito difíceis, muito intensos. A barreira não foi unanimidade e sofreu diversas ameaças de comerciantes que não compreendiam nem que a cidade estava fechada, e não por conta exclusivamente da barreira de Trindade, era um decreto municipal. Foi a falta de informação e apoio prático, no caso, da prefeitura, de guarda municipal, pouco apoio da polícia militar em questão de ronda. Foi realmente muito difícil levar essa barreira tantos dias e enfrentar tantas adversidades. Pessoas que tinham residências, que queriam entrar e que não puderam; trindadeiros — moradores de Trindade — que moram fora e que foram impedidos de entrar; críticas de que alguns trindadeiros iam para outros lugares, fazer outras atividades e que por isso a nossa barreira não poderia existir, que seria hipocrisia. Mas o fato é que só quem viveu essa experiência sabe o quanto foi difícil. E o resultado, eu acho, está bem explicito nos números de covid-19 confirmados na comunidade, que até o momento, passados mais de 4 meses da pandemia, foram apenas quatro pessoas confirmadas oficialmente. A gente tem até um pouco de dúvida desses números, porque sabemos da questão de subnotificação, não só na cidade como em todo o Brasil, mas o fato é que dessas quatro pessoas a maioria delas frequentava hospital diretamente, seja fazendo algum tipo de tratamento ou trabalhando na área de saúde. Sendo assim, a barreira proporcionou à cidade não apenas essa segurança com relação aos números, que em Paraty são mais de 630. E Trindade, apesar de ser o lugar mais visitado da Costa Verde, ter apenas quatro — eu acho que esses números falam por si. Além disso outros pontos positivos que precisam ser evidenciados: é a questão da reaproximação do morador com o seu território e com a sua força comunitária de retomá-lo com regras, evidenciando esse orgulho que as comunidades tradicionais têm com relação ao seu passado de luta contra a especulação imobiliária. A possibilidade que a comunidade teve de, durante esses quatro meses, por se sentir segura com a barreira, frequentar as praias e as cachoeiras, pessoas de idade que inclusive muitas vezes não saíam mais de casa. Por incrível que pareça, essa contradição existiu, de que o morador se sentiu mais seguro e passou a passear mais, de contemplar mais a natureza do próprio lugar, que com turismo de massa acaba ficando muito prejudicada e muitos moradores se sentem muito incomodados com o turismo de massa e com a invasão de pessoas que desrespeitam as regras locais, que desrespeitam a natureza. Então, o fato de a comunidade ficar fechada só para ela mesma também evidenciou ainda mais o privilégio e a responsabilidade de morar em um lugar tão bonito dentro de duas unidades de conservação, e isso fez com que as pessoas passassem a refletir sobre a importância da comunidade se manter unida para criar as suas regras e seus protocolos e construir uma possibilidade de um turismo mais sustentável e menos agressivo tanto à natureza quanto à cultura caiçara local.

O próprio fato de um vereador ter dado carteirada para entrar na comunidade e depois ter feito manifestações públicas alegando que Trindade não era mais uma comunidade tradicional caiçara, um vereador agredindo morador, desmerecendo aquele trabalho voluntário, esse próprio fato acabou sendo positivo para a comunidade no sentido da sua reafirmação como comunidade tradicional caiçara e detentora de direitos diferenciados. Então a repercussão desse fato acabou trazendo diversas manifestações, inclusive do Ministério Público Federal, e reforçando a tradicionalidade da comunidade de Trindade e a importância de Trindade na luta pela resistência no território, até no cenário nacional.

I: Como vocês organizavam os turnos?

D: A divisão dos turnos foi uma das tarefas bem complexas, por envolver muitas pessoas e por depender da disponibilidade de tempo de cada pessoa. A gente estipulou uma função no grupo, que é de fazer as escalas. Algumas pessoas passaram por essa função através do grupo de WhatsApp e todas as pessoas que estavam disponíveis foram inseridas nesse grupo. Daí essa pessoa responsável pela formação do turno fazia um trabalho bem braçal e [também um bem] detalhista, que era entrar em contato. Cada um no grupo colocava a sua disponibilidade de tempo, os dias e horários, e aí fazia a escala de acordo com isso. Normalmente se fazia a escala da semana e toda semana se apresentava uma nova escala. Alguns grupos acabaram se tornando fixos em determinados horários e outros grupos se alteravam em horário e também pessoas. Nessa função de organizar os turnos, essa pessoa entrava em contato com cada uma delas quando não conseguia resolver simplesmente por meio dessa manifestação de grupo, fazendo as adaptações necessárias para que sempre tivesse em média quatro pessoas por turno, nos quatro existentes durante as 24 horas. Naturalmente, muitas vezes haviam falhas e aí também tinha algumas pessoas que sempre acabavam ficando em standby no caso de alguns furos de emergências, para cobrirem o turno que viesse a sofrer alguma perda em razão de alguma coisa extraordinária.

Importante evidenciar inclusive essa rotatividade. Nem todas as pessoas que iniciaram a barreira foram até o fim. Algumas pessoas entraram no fim, outras entraram no meio, algumas pessoas ficaram um pouco, saíram e depois voltaram, outras participaram algumas vezes só e depois não voltaram mais. Houve realmente uma grande rotatividade de pessoas nesse auxílio à barreira.

I: E como era o fluxo para entrar no bairro? Chegou a ter fila? Qual era o critério para passar pela barreira?

D: Julho, principalmente por ser mês de férias escolares, normalmente tem um fluxo razoável de turistas em Trindade. Como ressaltei, a comunidade está inserida no Parque Nacional da Serra da Bocaina, que através de pesquisas já comprovou que o lugar é um dos pontos turísticos mais visitados no litoral de São Paulo e Rio de Janeiro. Em julho a gente ainda está fechando os números, porque não bastava só impedir o turismo, a gente tem uma planilha que anota as pessoas que passam, os motivos da vinda dessas pessoas e também, dentro do possível, todos os turistas do fluxo que foram barrados. A gente está fazendo ainda a apuração de todos esses números, mas em julho a gente barrou cerca de 2 mil turistas que iriam entrar em Trindade. É um número bem representativo. Seriam 2 mil possibilidades de infecção andando pela comunidade de Trindade. O critério inicial estabelecido pela comunidade foi de restrição total e abertura somente para moradores de Trindade. Então veranistas e moradores de Paraty não puderam entrar. Foi bem rigoroso esse critério, o que também tornou o trabalho mais exaustivo no enfrentamento com relação a pessoas que tinham parentes morando aqui ou pessoas dos bairros vizinhos, veranistas, etc. A gente enfrentou até vereador que tentou furar a barreira, advogados e outras autoridades que de alguma forma tentaram usar os seus cargos para poder furar esse bloqueio, e com a união da comunidade acabámos impedindo 99,9% dessas pessoas de entrar aqui.

I: No início da barreira vocês já conversavam sobre qual era o momento de encerrar a ação?

D: A barreira nunca teve exatamente uma data para ser finalizada. A gente avalia que as barreiras sanitárias deveriam existir enquanto os números estivessem em crescimento na cidade e, pelo que temos acompanhado, a cidade ainda não está numa situação de declínio com relação às médias de infectados. Então não existiu uma data para a barreira deixar de acontecer. Por outro lado, a gente avalia que, devido à falta de políticas públicas sociais, às dificuldades econômicas e financeiras que a maioria dos brasileiros vivem hoje, fica muito complicado manter uma barreira impedindo o turismo, sendo que por lei ele já está permitido, e levando em consideração as dificuldades econômicas que praticamente todas as pessoas estão vivendo nesse momento, e também por conta de Trindade ter no turismo sua principal fonte de renda. Então a gente avaliou e avalia que por conta dessa falta de políticas públicas, por conta do abandono da sociedade de uma maneira geral à sua própria sorte, fica complicado impedir o acesso de turistas sem proporcionar a essas pessoas que vivem do turismo uma condição de vida.

Então, acredito que essa complexidade de manter o isolamento sem uma contrapartida para as pessoas, de dar a elas condições para que se mantenham em segurança, isso aliado ao desgaste de um trabalho voluntário de muitos meses sem a estrutura necessária ou apoio necessário das autoridades, chega-se numa situação de inviabilizar a continuidade desse trabalho porque nem mesmo existe um respaldo institucional de gerar condições para as pessoas manterem o isolamento.

I: E que outros cuidados vocês tomavam em meio à pandemia, além da iniciativa da barreira?

D: Com relação aos cuidados, a associação de moradores vem por meio das redes sociais fazendo um trabalho de conscientização desde o início, solicitando que as pessoas sigam os protocolos recomendados de saúde, de uso de máscara, de álcool em gel, de sair da comunidade apenas quando for essencial. A associação de moradores também conseguiu viabilizar a vinda de profissionais devidamente qualificados para ministrar cursos, tanto aos estabelecimentos de alimentação quanto aos de hospedagem, como deveriam se comportar quando o turismo abrir, fechar os locais públicos da comunidade, o acesso, para evitar aglomerações, estar em contato direto com o setor de posturas da prefeitura denunciando todo e qualquer tipo de atitude que for contra as regras estabelecidas no município de proteção à comunidade. Todo um conjunto de medidas, junto da barreira.

E também houve todo um trabalho de bastidores da comunidade em contato com o Ministério Público Federal, que logo no primeiro decreto, por exemplo, onde o prefeito publicou um decreto para flexibilizar os comércios na cidade, essa articulação trouxe uma recomendação do Ministério Público para que o prefeito voltasse atrás. Agora, recentemente, essa articulação também ocasionou mais uma manifestação do Ministério Público Federal no sentido de recomendar à prefeitura que obedecesse aos direitos das comunidades tradicionais com relação às suas regras e à manutenção ou não do isolamento social. Foi conquistado também, graças à mobilização, o próprio reconhecimento da prefeitura através do decreto municipal sobre autonomia das comunidades tradicionais para criar os protocolos e as suas regras. Então, também aliado a esse trabalho prático de barreira houve uma grande mobilização de bastidores, um grande diálogo político com essas instituições para que houvesse as condições necessárias externas para a manutenção da barreira diante de tantas pressões de flexibilização.

I: E em relação a outras barreiras no município? Há a barreira da Praia do Sono. A Ilha do Araújo também decretou que estava fechada. Houve alguma troca de experiência entre essas barreiras?

D: A gente sabe que desde o início da pandemia houve outras barreiras em outras localidades, mas até então o que tivemos conhecimento é que a grande maioria não teve uma durabilidade adequada ou durou muito pouco diante de todos esses problemas que eu relatei de enfrentamento. A gente trocou muitas experiências com a barreira do Sono, por também se tratar de uma comunidade tradicional e por ser vizinha aqui da nossa comunidade, a gente com certeza serviu de exemplo e também trocámos muitas experiências de como articular a barreira e de como buscar respaldo legal. As comunidades da Praia do Sono e Trindade tiveram um papel importante, na prática, de fazer o isolamento por meio das suas barreiras. Elas também foram comunidades importantes no sentido de cobrar o poder público e, também, até o Fórum de Comunidades Tradicionais, para que a gente conseguisse esse respaldo que houve no último decreto municipal, de autonomia delas. Então, de uma maneira geral, não houve uma articulação das barreiras comunitárias, mas pontualmente houve, sim, uma troca de experiências da barreira de Trindade com a do Sono, em que uma acabou fortalecendo a outra, servindo de exemplo, de modo que as duas passaram por situações muito semelhantes, apesar de o acesso à Praia do Sono ser bem mais precário. Então, a gente acredita que a barreira sofreu menos, assim como as tentativas de furo. Aqui em Trindade eu acho que a situação foi mais difícil pelo acesso ser mais facilitado, e pela grande quantidade de turistas que sempre tenta entrar aqui.

Eu não sei se pelo histórico de luta de Trindade, e também da Praia do Sono, isso tornou essas duas comunidades mais efetivas nessa busca por esses direitos. Não sei se isso tem a ver. Mas o fato é que em Trindade eu recebi muitas mensagens de várias comunidades de que ela serviu de exemplo, tanto com relação às outras barreiras quanto por essa luta em defesa do território tradicional e essa preocupação com os anciões das comunidades.

I: Trindade tem um histórico de luta contra os avanços empresariais, mais focados na luta contra a especulação imobiliária. Nesse sentido, você identifica conflitos visíveis entre os avanços dos empreendimentos na comunidade e a cultura caiçara local em relação ao trato da barreira sanitária?

D: Eu acho que ficaram muito evidentes algumas contradições internas da comunidade; e eu não sei ao certo, aliás, eu diria que a questão não é nem com relação a empreendimentos comerciais versus tradicionalidade. Eu acho que na verdade [o que se] evidenciou muito mesmo é que há pessoas que de alguma forma não se identificam, não conhecem ou não reconhecem o diferencial da comunidade tradicional caiçara, pessoas que tratam Trindade simplesmente como um local onde é possível explorar o turismo e ganhar dinheiro, sendo de fora ou de dentro, sendo nativos ou pessoas que vieram de fora.

Por exemplo, Trindade é um lugar onde o nativo e originário, além de ter suas atividades tradicionais, de exercê-las, como a pesca e agricultura, que ainda são presentes em Trindade, mas muitos tradicionais também viraram empresários do ramo de turismo. E mesmo sendo empresários do ramo de turismo, a grande maioria dos originários que têm no sangue mesmo e se identificam com essa luta contra a especulação imobiliária, essas pessoas estiveram no front, seja na barreira ou seja fortalecendo a barreira de alguma forma. Já as pessoas que não têm essa identificação com a comunidade de fato, como disse, pessoas que de alguma forma só estão aqui para ganhar recursos sem se preocupar muito com o depois… pessoas que amanhã podem não estar aqui, mas estão passando o tempo, não têm familiares, arrendaram um comércio e a sua preocupação maior é simplesmente gerar renda… ficou muito evidente essa divisão de mentalidades, que eu diria que não é nem de pobre contra rico e nem de originário contra pessoas de fora, mas sim pessoas que têm visões diferentes. Umas, que eu acredito que sejam a grande maioria, preocupadas com a questão da saúde pública em primeiro lugar, que em sua maioria é realmente de originários e nativos. E outro grupo de pessoas, que colocaram em primeiro lugar a questão dos seus lucros, que em sua maioria são pessoas de fora da comunidade. Mas eu não segregaria assim como simplesmente quem é de dentro foi a favor do isolamento e quem é de fora não. Eu acho que a complexidade é mesmo de visão de mundo. E realmente, na verdade, a falta de uma identificação de algumas pessoas de fora, de conhecimento da história, eles acabam tratando Trindade simplesmente como um lugar onde se vem e se tira o seu dinheiro sem se preocupar de fato com o que isso ocasiona coletivamente na comunidade, seja com a perda da cultura de alguma forma, seja com os outros problemas que o crescimento desordenado, que o turismo de massa e que os empreendimentos imobiliários causam na comunidade.

I: E depois de experimentar essa retomada territorial e com a abertura em vista agora para o dia 15, o que fazer?

D: Interessante a sua última pergunta. Ontem não estaria tão claro para mim [2]. O fato é que grande parte da comunidade tem muito receio do que vai suceder nos próximos dias. Por outro lado, existe uma pressão muito grande de uma parte [da comunidade] de abrirem os seus comércios e retomar o que eles chamam de ‘novo normal’. Eu, particularmente, não acredito numa nova normalidade enquanto mais de 1.000 pessoas morrem por dia já há várias semanas e até meses, se eu não estou enganado. Então, um grupo de pessoas preocupadas com essa questão se reuniu e criou um protocolo de regras para reabertura. A gente passou essa última madrugada construindo um documento de propostas para que a reabertura pudesse ser de uma forma mais amena e também mais organizada. Entre as propostas que esse grupo colocou é de limitar o número de veículos em Trindade e também deixar o acesso livre somente para quem fizer reservas nas pousadas da Trindade, como forma de diminuir. Então, quem tivesse reservas entraria, e todas as pousadas seguindo o limite de 50%, que é o que diz o decreto municipal de Paraty, e nos restaurantes cada um funcionando dentro dos seus protocolos, do que já é a regra do município, e a criação de comissões locais comunitárias que pudessem denunciar tudo aquilo que estiver fora de concordância com esse protocolo e com várias outras regras. Mas esse documento foi apresentado para a associação de moradores e a gente vai ver se também encaminha ao Ministério Público Federal como documento sugestivo para associação de moradores dar encaminhamento e protocolar na prefeitura e tentar transformar isso numa lei, como se fosse uma regra bem específica para a comunidade.

Naturalmente, essa é uma sugestão, uma tentativa de amenizar os possíveis problemas que virão com a abertura do turismo, levando em consideração que a gente sabe que tem muitas pessoas que estão sim loucas para ir para Trindade, que a gente mais recebe de todos os donos de pousadas e de comércios de uma maneira geral, que relatam a grande procura por Trindade nesse momento complexo. Então, me parece que as pessoas, principalmente quem tem condição financeira, vêm esse momento como uma oportunidade de viajar, talvez porque suas atividades profissionais estejam mais devagar. Então é muito preocupante.

Sabendo da realidade dos fatos, do histórico das coisas, de todas as situações que envolvem essas narrativas, tanto com relação à defesa do isolamento social quanto com relação a esse novo normal, levando em consideração os governos federais, o governo estadual e municipal, a gente sabe que não dá para esperar muito. Não acredito que haja uma fiscalização efetiva mesmo se a comunidade conseguir oficializar protocolos e regras internas. Então, a minha observação é que realmente cada família ou cada cidadão terá de tomar suas devidas precauções para que não sejam infectados, diante do fato de que o Brasil está lidando com essa pandemia de uma forma totalmente irresponsável, e os especialistas todos apontam que a situação vai de mal a pior e que há sempre uma oscilação da linha de óbitos, de infectados, num patamar muito alto e que é imprevisível o que pode vir acontecer no nosso país e, consequentemente, é imprevisível também o que pode vir a acontecer com a nossa comunidade diante de ser um lugar tão procurado pelo turismo.

Notas

[1] Dentro dessa agitação ocorrendo, com um congestionamento enorme da Estrada Rio-Santos, alguns moradores tentaram efetuar uma ação de fiscalização da barreira na entrada da cidade (não confundir com a barreira sanitária de Trindade), outros tiveram a ideia de fincar cruzes na entrada da cidade, sinalizando os mortos pela covid-19. Essas poucas pessoas foram impedidas pela guarda e ameaçadas de prisão. É dentro desse contexto caótico que é lançado o minimanual “Como organizar uma barreira sanitária no seu bairro” pelo coletivo Assombroso.

[2] A resposta foi dada um dia depois da pergunta, exatamente no dia final da barreira sanitária.

Histórico dos acontecimentos

1) A proibição das atividades turísticas foi definida através de decreto municipal 024/2020 de 19/03/2020, valendo para todo o município de Paraty. Isso quer dizer que não era uma regra exclusiva para Trindade.

2) A decisão de criar a barreira de restrição surgiu após abaixo-assinado virtual com 1.223 assinaturas.

3) Desde 20/03 a AMOT (Associação de Moradores de Trindade) vem apoiando a barreira sanitária de Trindade, com fornecimento de alimentação e itens de higiene.

4) A barreira é formada por voluntários, moradores de Trindade, que se preocupam com o avanço da doença na comunidade. Já passaram pela barreira mais de 150 moradores voluntários, durante mais de 4 meses (131 dias, 24h por dia) que a barreira está funcionando. O protocolo da barreira sanitária foi definido levando em consideração o decreto municipal 048/2020, que retomou as medidas restritivas de combate à covid-19 e que através de disposição do MPF garantiu a proteção das comunidades tradicionais e manutenção das barreiras.

5) Diante da decisão do município de flexibilizar as regras de isolamento social na cidade por meio da abertura de comércios não essenciais, pelo decreto 055/2020 de 29 de maio de 2020, a comunidade solicitou à prefeitura via ofício 084/2020, o direito de manutenção do isolamento social e da barreira de restrição de acesso à comunidade tradicional caiçara de Trindade.

6) A decisão foi embasada em pesquisa presencial, de casa em casa, realizada de 16/06 a 24/06, em que foram consultados 376 moradores, dos quais 93% votaram a favor da continuidade da barreira de restrição de acesso.

7) Em 25/06 ocorreu a 1ª reunião com a comunidade sobre o combate à covid-19, em que foi informado o resultado da pesquisa e que a barreira continuaria sem flexibilização até reabertura do turismo.

8) Em 02/07 aconteceu a 2ª reunião com a comunidade sobre o combate à covid-19, em que foi definida a liberação da entrada de materiais de construção e informado sobre o sistema das bandeiras da prefeitura para retomada das atividades econômicas no município.

9) Em 03/07 ocorreu reunião com a Secretaria de Turismo, para conhecimento de como seria feita a retomada do turismo e como a prefeitura iria controlar a entrada de turistas em Trindade.

10) Em 10/07 a prefeitura publica comunicado sobre a possibilidade de reabertura ao turismo em 15/08.

11) Em 13/07 ocorre a 3ª reunião com a comunidade sobre o combate à covid-19, considerando a informação de previsão de reabertura ao turismo para o dia 15/08 e o debate sobre liberação de funcionários, com comerciantes e moradores. Também foi definido o procedimento para liberação de entrada desses funcionários 2 dias por semana.

12) Em vista à possibilidade de abertura ao turismo dia 15/08, a AMOT, preocupada em preparar a comunidade para o recebimento seguro dos turistas, lançou em 22/07 o Plano de Reabertura Segura, prevendo cursos preparatórios sobre os protocolos de reabertura dos comércios.

13) O primeiro curso disponibilizado pela AMOT foi sobre os protocolos para reabertura do ramo alimentício, realizado dia 29/07.

14) O segundo curso disponibilizado pela AMOT foi sobre os protocolos para reabertura do ramo de hospedagem, realizado dia 05/08.

15) A AMOT encaminha um ofício à prefeitura e realiza um abaixo-assinado solicitando apoio à barreira sanitária e alteração para o dia 15 de agosto da retomada das atividades turísticas em Trindade.

16) Em 15/08 a barreira de Trindade chega ao seu fim.

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