Por Isadora de Andrade Guerreiro

A prática de tomada de terras pode ser considerada um ato fundador do país. Como prática de re-fundação permanente, acompanhar seus desdobramentos históricos — as formas que foi adquirindo ao longo do tempo por meio não apenas dos processos econômicos, mas também das disputas políticas nas quais está inserida — diz muito sobre as particularidades da nossa formação, mas, também, do contexto atual. No mesmo mês em que a Lei de Terras completa 170 anos, o governo federal, ao lançar o Programa Casa Verde e Amarela (PCVA), dá escala à Lei de REURB 13.465/2017 que, na prática, atualiza a primeira lei para nosso contexto social e político atual. Como mais uma re-fundação, o que isso significa?

A Lei de Terras, em 1850, foi fundamental para a formação do país moderno: aprovada duas semanas depois da Lei Eusébio de Queirós — primeira das leis abolicionistas, que proibia o tráfico de escravos para o Brasil —, ela permitia a passagem da riqueza acumulada na mão de obra cativa para a terra, que a partir de então viraria mercadoria [1]. Na prática, a Lei de Terras promoveu a primeira “grande anistia” sobre a posse da terra no país, que era generalizada entre pequenos e grandes produtores que a tomavam livremente. No entanto, tal anistia se deu por meio da cobrança de taxas, o que fez com que aqueles que não tinham recursos para pagar tenham perdido as suas terras; ou então, as tenham vendido em seguida por bom preço. Além disso, a compra de terra era proibida aos escravos e libertos. Com isso, ficou assegurada tanto a grande concentração de terras no país, quanto a formação da mão de obra “livre” necessária para o novo período de acumulação que se iniciava. Foi só a partir da Lei de Terras que as leis abolicionistas puderam ser paulatinamente aceitas pela nossa elite agrária.

A Lei de REURB e a nova fase da mercantilização das tomadas de terra

Estamos, 170 anos depois, em um novo momento de transformação das relações de trabalho no mundo. Acredito que as adaptações a este contexto sejam diferentes em cada país, seja por sua função no mercado mundial, seja pela sua estrutura econômica e social interna. No caso do Brasil, mais uma vez renovam-se as relações entre terra e trabalho, mediadas pelo Estado. A Lei de REURB, de 2017, é um importante marco destas mudanças estruturais. Na prática, ela reedita, a seu modo, a “grande anistia”, cuidando das especificidades das áreas rural [2] e urbana [3].

No caso da regularização fundiária urbana, gostaria de falar sobre a regularização das áreas de moradia das classes populares, largamente produzidas por meio de tomadas de terra, seja por seus próprios futuros moradores, seja por loteadores populares, clandestinos, grileiros, intermediários, lideranças ou políticos locais, crime organizado ou, também, os movimentos populares por meio das ocupações — uma mudança de nome que também é uma mudança, historicamente determinada, do sentido político destes processos. A lista das formas destes processos de tomadas de terras, no entanto, permanece variada, bem como seus graus de legalidade ou legitimidade política. E, na última década, essa dinâmica está extremamente acentuada pelo crescimento do mercado popular imobiliário — cujas causas e dados merecem outro texto.

Quero chamar a atenção para o fato de que, justamente, a Lei de REURB, como a Lei de Terras, “passa o sarrafo” — como se diz no jargão da construção civil — por cima dessas diferentes formas de produção do espaço, homogeneizando-as por meio da forma da mercadoria devidamente formalizada, ou seja, criada pelo Estado. Na prática, tal lei dá enorme facilidade de regularização fundiária, objetivando muito mais a formação de ativos imobiliários por meio da propriedade do que a preocupação com as condições e formas de seu uso ou mesmo a legitimidade política de seu processo de ocupação ou mesmo a condenação de práticas criminosas contra o meio ambiente ou os ocupantes. Faz isso por meio da flexibilização da legislação ambiental, da não obrigatoriedade da presença de infraestrutura urbana ou adequação à legislação urbanística das áreas e, também, da diminuição da participação do Município no processo, permitindo que ele se dê de maneira quase que absolutamente privada.

Não se trata de uma invenção da roda: a regularização fundiária permaneceu atuando no país desde a Lei de Terras. Há, no entanto, mudanças importantes com a nova Lei de REURB. A integração à formalidade das terras tomadas, no último período, estava a serviço do projeto de integração econômica e social — muitas vezes mediada pela organização política popular — de parcelas da população ao direito social, base do processo de tentativa de estabilização da força de trabalho assalariada. Com a nova lei, as precariedades — do trabalho e da posse de terra — que, no entanto, nunca deixaram de existir, parecem que, ao invés de serem combatidas em nome da integração, passam a ser mantidas e funcionalizadas em nome da formação de novas relações de trabalho.

O novo modelo de integração: a “milicialização”

Para tentar demonstrar esta hipótese, vou descrever aqui uma experiência que exemplifica estas questões na prática. Em 2016, eu acompanhei por um tempo, como parte da assessoria técnica urbanística [4], uma das maiores ocupações de terra para moradia do Estado de São Paulo, a ocupação Vila Soma, com cerca de 2.500 lotes, localizada na região central de Sumaré, município da Região Metropolitana de Campinas. Não havia exatamente um movimento de moradia à frente da ocupação, mas uma rede de articuladores técnicos e políticos que procuravam defender sua permanência na área, bastante cobiçada. Mas sua formação inicial não foi essa.

Ela foi formada originalmente, em 2012, por loteadores clandestinos, que venderam de maneira ilegal os primeiros lotes de um terreno industrial abandonado, vinculado a uma massa falida. Tais loteadores deixaram a área e seus ocupantes no primeiro mandato de reintegração de posse. Neste momento, parte dos moradores, agora abandonados e tendo perdido seu investimento nos lotes irregulares, buscou construir uma organização política na tentativa de permanência no local. A partir de então, as novas lideranças buscaram apoio de assessoria jurídica e urbanística, além de outras organizações locais, como alguns membros da ocupação Zumbi dos Palmares (MTST), da Fábrica Ocupada Flaskô e da Defensoria Pública do Estado de São Paulo — conjunção de forças que, aliada à resistência da organização direta das famílias, resultaria numa interferência histórica de conteúdo inédito do STF que os manteve no local suspendendo temporariamente a reintegração de posse.

Cabe dizer que, neste processo de consolidação como ocupação, a imensa tomada de terra teve sua gestão e domínio se tornando centrais para o contexto político da cidade: por um lado, a antiga prefeita, autodeclarada opositora da ocupação, não conseguiria sua (antes provável) reeleição, muito em decorrência do desgaste político relacionado ao sucesso de permanência da Vila Soma na cidade; por outro, o candidato a vereador apoiado pela ocupação foi eleito com a segunda maior votação da cidade, mais tarde se tornando presidente da Câmara de Vereadores e aliado direto do novo prefeito da cidade, pertencente a uma tradicional família da política local.

Esta situação de consolidação e importância política alterou os rumos do processo. A ocupação passou a ter sua gestão muito mais centralizada a partir dos ritmos dados pelos expedientes burocráticos de negociação da administração pública — o que por um lado pacificou os confrontos na escala municipal, mas por outro comprometeu a autonomia da ocupação. No momento seguinte, com a transformação política federal e a promulgação da Lei de REURB, foi então iniciada a solução que a ocupação sempre reivindicou: a permanência no terreno ocupado seguido de regularização fundiária. No entanto, ela se deu de maneira completamente diferente da prevista pela rede de apoiadores e lideranças até então à frente do processo: o poder público se desobrigaria da urbanização, das infraestruturas e da regularização, tornando-se mero mediador entre atores privados. Vejamos como se deu.

Neste meio tempo, houve o leilão judicial do processo de falência, quando os credores da massa falida “compraram” o terreno ocupado (avaliado em R$ 60 milhões) mediante promessa de depósito de apenas R$ 6 milhões (referentes à dívida trabalhista), sendo o resto abatido pelos direitos sobre os créditos podres. Para resgatar o valor total, tais credores [5] contrataram, finalmente, uma empresa privada já pautada pelos expedientes da nova legislação de REURB, e com grande experiência em processos cartoriais [6]. A Associação de Moradores — cujas lideranças também foram “renovadas” — fez um contrato com os novos proprietários para a venda direta dos lotes aos ocupantes, por meio de boletos que variam de R$ 250 a R$ 750 mensais. Evidentemente, nenhuma infraestrutura pública está garantida até o momento: o Município não assumiu nenhum compromisso com sua implantação.

Assim, o proprietário retoma créditos podres por meio dos ocupantes, algo que jamais resgataria da massa falida de uma grande indústria; e os moradores se transformam aos poucos em proprietários — embora isso não signifique acesso à cidade, ou a integração nos moldes do período anterior. Pois, diferente da estabilidade prometida, isso não significa que estejam livres da insegurança de posse: até o final do pagamento dos lotes, eles podem ser expulsos por falta de pagamento de qualquer parcela, despejo este realizado de maneira privada. A área, portanto, passou a ser controlada por um grupo misto de empresários, forças de segurança/violência privadas locais, lideranças empreendedoras e políticos cuja função é manter as relações omissas e subservientes do Município. Algo que guarda relações evidentes com a forma miliciana. Tudo isso possibilitado pela Lei de REURB.

Terra, sujeito de crédito e forma miliciana

Parece-me ser este o tipo de processo que o governo federal pretende nacionalizar por meio do novo Programa de Regularização Fundiária previsto para as mais baixas faixas de renda no PCVA. Em associação com empresas privadas, as lideranças e suas assessorias técnicas atuantes nesta modalidade parecem estar sendo convidadas a atuarem de maneira empreendedora, como intermediários privados da conexão entre a produção informal de moradia e as finanças, na medida em que o governo pretende que tais propriedades, devidamente regularizadas, sejam lastro de empréstimos bancários — como adiantei na última coluna. Já as empresas de regularização fundiária que atuam neste mercado têm crescido bastante, principalmente em torno do setor do “Impacto Social”: fundos que fazem financiamento privado à população de baixa renda, securitizando sua dívida. Uma nova forma de “assistência técnica” tem surgido a partir destas bases.

Forma-se, desta maneira, uma subjetividade política ligada ao cidadão-investidor, o sujeito de “crédito” que, na verdade, é um sujeito endividado. Sua nova integração social se dá pela dívida, possibilitada pelo contraditório acesso à terra. Acredito que o incentivo à implantação da Lei de REURB de maneira disseminada em todo o país por meio do PCVA pode ser entendido como uma re-fundação da Lei de Terras para o contexto atual de “subsunção real da viração”, onde a informalidade é base da valorização financeira. Na nova “grande anistia”, a terra só parece estar sendo devolvida às classes populares, mas, na verdade, mais uma vez, só a terá quem conseguir pagar e se submeter às novas formas de controle territorial privado que se estabelecerão. O caso da Vila Soma é alarmante: mais de 30% dos lotes ocupados — e defendidos num processo de luta — foram repassados a terceiros assim que o contrato de regularização foi assinado.

Lembro, neste aspecto, das particularidades da formação da nova classe trabalhadora “on demand”, autoempresariada: a necessidade de um investimento inicial para poder entrar no mercado, seja o carro, a motocicleta, a bicicleta, o cômodo de aluguel, o carrinho de pipoca, as mercadorias dos ambulantes e por aí vai. Não se trata mais da mão de obra “livre”, que vende apenas sua força de trabalho, possibilitada pela Lei de Terras de 1850. Poder “extrair valor das suas casas”, como disse o presidente do Banco Central, é fundamental para tal investimento inicial do micro-empresariamento. O agenciamento da terra é novamente acionado para a formação de uma nova fase das relações de trabalho capitalistas no país.

A notícia política para a organização popular não é nada boa. Na “passagem do sarrafo” representada pela forma mercadoria na tomada de terras, os movimentos populares passaram a disputar legitimidade com os novos gestores do empreendedorismo popular: de empresas privadas e fundos de investimento ao crime organizado. Parece-me um aprofundamento do que João Bernardo escreveu há 10 anos sobre o Programa Bolsa Família: “E teremos então, no final, a substituição de uma economia paralela arcaica por uma economia paralela moderna. A isto se chama, no capitalismo, progresso”.

Notas

[1] José de Souza Martins, no seu “O Cativeiro da Terra”, descreve este processo.
[2] Não vou me ater aqui na parte da Lei sobre as terras rurais, que, no entanto, merece atenção no que diz respeito à regularização de tomadas de terra da União por grandes produtores e grileiros, principalmente na Amazônia e outras áreas protegidas (incluindo as demarcações indígenas e quilombolas).
[3] Há toda uma discussão sobre a facilidade de regularização de áreas também tomadas da União (principalmente ambientalmente frágeis) por condomínios residenciais de alta renda, que, no entanto, também não me deterei aqui.
[4] Eu fazia este acompanhamento junto ao arquiteto André Dal’Bó, que permaneceu no processo por mais tempo e o descreveu com mais detalhe na sua tese de doutorado. Agradeço ao André a colaboração nesta parte do texto no que se refere aos dados relacionados à Vila Soma.
[5] Entre eles, grandes forças do mercado financeiro, como o Banco Itaú.
[6] Seu dono, Renato Góes, foi um dos principais agentes da formulação e aprovação da Lei de REURB.

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