Por Isadora Andrade Guerreiro

No último dia 25 de agosto foi lançada pelo governo federal sua nova política habitacional, o Programa Casa Verde e Amarela (PCVA), declaradamente em substituição ao Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) da gestão anterior. Segundo Pedro Guimarães (Presidente da Caixa Econômica Federal) no evento, é necessário “melhorar a eficiência de coisas que funcionam” – numa clara tentativa de herdar os dividendos populares de um dos carros-chefes do lulismo que, ao seu tempo, foi usado como medida anticíclica durante a crise mundial de 2008. Num truque performático, aproxima-se uma crise da outra declarando uma mesma solução – para a crise e para o governo, como se fossem iguais uma e outro. No caso, é necessário entender que a solução não é exatamente a mesma e, na verdade, longe de ser anticíclica, é muito mais a construção de um cenário parecido com aquele responsável pela crise imobiliário-financeira norte-americana ligada à crise das hipotecas[1]. Vende-se a doença como se fosse remédio.

O Programa Casa Verde e Amarela

O PCVA (MP 996 que seguiu para o Congresso) de fato se baseia no PMCMV em vários aspectos. Para começar, seu desenho geral mantém a dualidade do programa anterior entre a parte “social” dirigida à Faixa 1 (agora até R$ 2.000[2] de renda familiar mensal) e a parte “de mercado” (agora até R$ 7.000[3] de renda familiar mensal). A primeira, que inclui, nos dois programas, subsídios diretos, é atendida por fundos abastecidos pelo orçamento da União e outros cotistas: o FAR[4] financiava no PMCMV as empresas e o FDS[5] era responsável pelos empreendimentos das Entidades. A parte dos dois programas direcionada às demais faixas de renda são financiadas pelo FGTS[6]. Embora a dualidade do programa permaneça, as mudanças internas a elas são relevantes. No PMCMV, tal divisão significava pouco em termos de produto final, que era em ambas as partes a construção de novas unidades habitacionais vinculadas à constituição de propriedade privada residencial – via de regra com graves problemas de inserção urbana.

O novo programa aprofunda as desigualdades entre as duas partes, além de não indicar qualquer papel para as “Entidades”. Para a Faixa 1, o governo promete apenas terminar as 200mil unidades com obras paradas no país[7] e usar o FDS integralmente para regularização fundiária, não construção de unidades novas. O centro desse procedimento é a polêmica Lei de REURB 13.465/2017 sancionada pela gestão Temer, que desvincula a regularização da implantação de infraestrutura (urbanização), que pode ser feita posteriormente (ou não). Desta maneira, no PCVA a regularização fundiária significa tão somente a passagem cartorária da propriedade do imóvel, enquanto os necessários projetos urbanísticos e a urbanização são de responsabilidade e custo dos municípios ou dos “beneficiados” – não sendo impeditivos para a escritura. Segundo o ministro do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), Rogério Marinho, no evento de lançamento do PCVA, a Lei de REURB veio para atacar a informalidade “que campeia nas nossas cidades” e o novo programa habitacional vai “entregar ao cidadão mais humilde o que certamente para ele é extraordinariamente importante: a escritura pública da sua residência, que acresce de imediato de 40% a 50% de valorização do seu imóvel. Isso é transferência de renda na veia, Sr. Presidente! Isso é ação social!”.

O mesmo ministro continua fazendo as amarrações do programa, dizendo que dentro do FDS há outro fundo, com cotas de bancos privados brasileiros, que não estaria sendo usado há muitos anos – cerca de 15, ou seja, ao que parece ele ficou parado durante todo o PMCMV apenas recebendo dividendos, sem financiar as Entidades. Sua utilização estaria sendo possibilitada, no PCVA, pela generosa Febraban (Federação Brasileira de Bancos) que negociou com os bancos privados a doação de suas cotas ao FDS no valor de R$ 500 milhões – e, portanto, não haveria recursos diretos da União no novo programa. Certamente foi esse mecanismo que possibilitou a prometida renegociação as dívidas do Faixa 1 no PCVA, evitando a retomada e leilão das casas. Foi justo a Febraban, inclusive, que abriu o evento governamental – de um simbolismo importante para o argumento que apresento. Qual seria o interesse dos bancos nesse processo? Veremos adiante.

Já na parte “de mercado” do programa, nas faixas a partir de R$2.000 de renda familiar mensal, a única mudança se deu nos juros praticados no financiamento junto ao FGTS[8], que diminuíram para 4,25% nos empreendimentos do Norte e Nordeste e 4,5% ao ano nos demais estados (uma distribuição regional que no PMCMV não existia). Importante notar que, embora os juros do PMCMV fossem mais altos, isso ainda significava que o programa oferecia “subsídio cruzado” na medida em que os juros eram mais baixos do que a referência da taxa de juros no país (Selic), que chegou a 14% em 2016. Já no caso do PCVA, embora os juros sejam efetivamente muito baixos, ainda são o dobro da Selic praticada atualmente (2%), o que configura inexistência de “subsídio cruzado” e, segundo o próprio ministro do MDR, ganhos ainda substanciais para o FGTS.

Ao que parece, a diminuição dos juros foi possível pois a Caixa aceitou a diminuição pela metade de sua remuneração como agente financeiro do programa pois, segundo seu Presidente, ela “nunca teve tanto lucro nos seus 159 anos de existência” na medida em que está incluindo (bancarizando) uma enorme quantidade de pessoas – certamente por conta do Auxílio Emergencial, como veremos adiante. Tal diminuição de juros faz com que caia o valor das parcelas do programa, possibilitando, segundo Marinho, a participação no financiamento habitacional para cerca de 1 milhão de novas famílias. Elas antes “eram impedidas”, segundo ele, por conta do teto de endividamento de 30% da renda familiar em empréstimos do FGTS. Essa fala esconde que há uma mudança no perfil daqueles que acessarão o financiamento do FGTS: embora exista inclusão de famílias da chamada Faixa 1,5 (uma faixa estratégica, que a Fase 3 do PMCMV já tinha identificado), há exclusão das famílias de 7 mil reais a 9 mil reais do PMCMV, que acessarão o financiamento pelo SBPE[9]. Esta faixa mais alta é outra ponta da estratégia para o setor imobiliário popular, que veremos a seguir.

Uma última modificação, que ainda precisa ser melhor esclarecida nas próximas regulamentações, se refere à possibilidade de locação das unidades habitacionais (§ 3º do Art. 7º da MP 996) realizadas no âmbito do PCVA. Se isso for adiante, abrem-se novas possibilidades de rentabilidade ligadas ao imobiliário no país, que podem inclusive ter vinculações com o mercado financeiro internacional, como veremos adiante.

A securitização como saída da crise

As mudanças promovidas pelo PCVA na política habitacional federal têm sido entendidas sob dois enfoques distintos: o primeiro, representado pelo governo, seria o de que representam uma continuidade, com ajustes de melhoramento de gestão e inclusão, num programa desenvolvimentista e anticíclico de grande apoio popular; o segundo, representado por parte da esquerda, o entende como um retrocesso a uma política de financiamento à classe média aos moldes do BNH da ditadura, responsável pela exclusão dos mais pobres ao acesso à moradia digna, que permaneceriam em assentamentos precários. Para além destas duas posições, é importante entendermos o significado das semelhanças entre os programas, mas, também, o das suas mudanças – que antes de ser um mero retrocesso, parecem na verdade um avanço do setor imobiliário brasileiro em direção a formas de acumulação muito atuais, mais ligadas ao mercado financeiro, processo no qual a informalidade e o extrativismo rentista cumprem importantes papeis.

Assim, para entender o que se passa na questão habitacional brasileira, o evento de lançamento do PCVA precisa ser complementado por outro evento, duas semanas antes (último dia 11), na Abrainc[10], no qual se entende bem melhor o significado do programa. Intitulado “Futuro da securitização no crédito imobiliário”, tais conexões entre o financeiro e o imobiliário eram comemoradas como um desenvolvimento dito “natural” do setor por representantes do governo (Banco Central (Bacen) e Caixa), do setor imobiliário (Abrainc e ABECIP[11]) e do setor financeiro (B3 (Bolsa), Bradesco, Itaú e XP Investimentos[12]).

O Presidente do Bacen, Roberto Campos Neto, deixou clara esta estratégia na sua fala, que abriu o evento. Segundo ele, o setor imobiliário é uma das grandes apostas do governo federal para restaurar a economia brasileira, devido ao fato de que foi o segundo setor da economia (precedido pelo rural) que sentiu menos os impactos da pandemia e, também, o primeiro a se recuperar. Dois fatores são fundamentais para se entender essa fala: 1) os canteiros de obra praticamente não pararam[13] (sendo considerados “setor essencial”); e 2) novamente, os baixos juros do país – que fazem os investidores procurarem opções de médio risco em comparação com a renda fixa, sendo os títulos de base imobiliária bastante procurados nesse contexto. Segundo Rubens Menin (MRV e Abrainc), no mesmo evento, a pandemia – com mais de 100 mil mortos no país – pode ser considerada, para o setor, uma “tempestade do bem”, pois “nunca antes nos meus 40 e poucos anos de construção houve um momento macro tão favorável quanto este”.

Não é sem razão que as aplicações em Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs) permaneceram em crescimento constante durante a pandemia (com o IFIX disparado a partir de julho, tendo baixado menos, nos meses anteriores, do que o Ibovespa), e o mercado imobiliário está aquecido e quer alterar legislações municipais para poder construir mais. Tais fundos envolvem tanto rendas diretas de aluguel corporativo ligado a edifícios comerciais (escritórios e shoppings) e galpões logísticos – que cresceram de importância durante a pandemia e que são fundamentais para se entender a centralidade das lutas dos entregadores de aplicativos na mobilidade urbana atual – como recebíveis imobiliários (CRIs, por exemplo) ligados ao setor residencial, embora em quantidade menos significativa.

Para incentivar o setor imobiliário, Roberto Campos Neto descreveu, no referido evento da Abrainc, quatro “pilares” que o governo está apostando:

  1. Aumentar o acesso ao crédito imobiliário, ou “affordability” (inclusão da base da sociedade no sistema de crédito), diminuindo o valor das prestações do financiamento;
  2. Fazer com que as pessoas consigam “extrair valor das suas casas”, retirando os entraves para o desenvolvimento do mercado de “Home Equity[14];
  3. Gerar competição no sistema, incentivando a portabilidade do financiamento entre instituições bancárias;
  4. Efetivar a securitização de ativos de base imobiliária popular.

A partir destes “pilares” é possível entender as relações entre as duas partes aparentemente dissociadas dentro do PCVA. Pois é da totalidade delas que se forma um sistema coerente que finaliza – pois o PMCMV já era parte desse processo[15] – no país a conexão entre o setor imobiliário e o mercado de capitais. Desta maneira, é necessário entender o PCVA dentro de um contexto mais amplo do papel do setor financeiro-imobiliário para a nova saída da crise, no qual cada faixa de renda tem uma função. A particularidade deste arremate é a dificuldade de inserir a informalidade da terra, da produção da casa e dos ganhos das classes populares nesta forma de rendimento.

Ao que parece, todos os “pilares” do Bacen apontam para a intervenção pública no fomento à consolidação do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), onde há captação “livre” de recursos no mercado de capitais, securitizando a base imobiliária do país. Ou seja, transformando o que é bem fixo (casas), em ativos mobiliários, títulos negociáveis no mercado financeiro. Os CRIs, citados acima, são o principal mecanismo do SFI: eles permitem que uma dívida ligada a um financiamento imobiliário seja vendida para um investidor. Esse processo não é simples, pois exige que, além da possibilidade da securitização existir, ela seja atrativa para os investidores. Para tanto, são necessárias muitas mudanças no setor que, fundamentalmente, deem escala, segurança e rentabilidade ao negócio.

Os títulos de base imobiliária residencial, como os CRIs, existem, mas carecem de mercado secundário no Brasil, principalmente por conta de sua baixa atratividade para os investidores, na medida em que o crédito habitacional é em grande parte controlado por um banco público – a Caixa – que mantém uma política de financiamento habitacional ligada ao SFH (SBPE mais FGTS)[16], e não ao SFI. No entanto, é o próprio FGTS que tem, na verdade, sustentado o mercado secundário residencial do SFI: ele é um dos seus maiores investidores, promovendo a liquidez e reduzindo riscos do setor, com a justificativa de fomentar o mercado imobiliário e assegurar sua própria saúde financeira (ROYER, 2016). Entre 2008 e 2012, inclusive, mesmo com o PMCMV, ele investiu mais nesses títulos do que na promoção residencial popular (Idem). O papel do FGTS, portanto, parece ser o de fomentador do processo de articulação entre o financeiro e o imobiliário no país – e então compreendemos sua retomada na parte de continuidade do PMCMV pelo PCVA.

A outra parte do SFH, o sistema de poupança (SBPE), é aquela mais próxima ao mercado, mas que permanece fora do SFI: ou seja, seus financiamentos são fechados entre o SBPE e o tomador do empréstimo. Nesse sistema, o financiamento era baseado na taxa Selic mais TR (Taxa Referencial), considerados pelo mercado financeiro como fatores desestimulantes na medida em que evidenciavam o “excesso” de controle público estatal na transação econômica, protegendo o tomador da dívida (ou seja, nossas classes populares) e, portanto, encarecendo o “custo de crédito”. Segundo o Presidente do Bacen, a TR é ruim para as finanças na medida em que não pode passar por hedge (“cobertura”), ou seja, um mecanismo financeiro que impede a desvalorização do título vendido.

Assim, o primeiro ponto da lista do Bacen, no caso do SBPE, foi iniciado há cerca de um ano, quando o governo divulgou uma mudança estrutural nos seus financiamentos: tornou passível de escolha a indexação dos financiamentos habitacionais entre a TR e o IPCA[17], ou seja, por um índice de inflação muito mais volátil e próximo às flutuações de mercado. Ele é mais atraente para o setor financeiro por poder passar por hedge – ou seja, se a inflação diminuir, mesmo assim o tomador do empréstimo paga o valor mínimo do momento do contrato. Com isso, o “custo do crédito” fica mais barato, as prestações podem diminuir e incluir mais pessoas no sistema. Por operação diversa (negociação com a Caixa para diminuição dos juros), o PCVA também tem esse mesmo intuito para a faixa atendida pelo FGTS e, além disso, desloca a faixa superior de renda do antigo PMCMV para o SBPE, para que ela tenha acesso a este tipo de indexação pelo IPCA.

O segundo ponto do Bacen é onde a regularização fundiária promovida pelo PCVA para a Faixa 1 ganha vulto: a titularização em massa – solução já preconizada há décadas pelo guru neoliberal peruano Hernando De Soto –, sem preocupações de urbanidade dos assentamentos, é a forma de “desentravar” a informalidade na América Latina, a ligando ao mercado de capitais. Isso não foi feito até o momento no país, entre outros fatores, também pela insegurança representada pelo setor cartorário brasileiro. A solução, também apresentada no evento da Abrainc, é a inserção da tecnologia de blockchain nos cartórios – que já integra 1.349 deles e que será generalizada por meio do PCVA. Tal tecnologia foi a que tornou possível a existência das bitcoins, por possibilitar um ambiente de negócios digitais por meio da internet: contratos realizados e certificados de maneira remota, com padronização e circulação de recursos de maneira global e independente das legislações nacionais. No caso dos cartórios, o blockchain integraria nacionalmente os registros notariais, daria segurança de não-revertibilidade à titulação, celeridade (de 40 para 5 dias para o registro) e transparência às transações, além de coibir fraudes, usando de criptografia. Algo que, segundo Pedro Guimarães, é fundamental para implantar popularmente o Home Equity no Brasil.

Vemos que a regularização fundiária proposta pelo PCVA não pretende nem dar melhores condições de habitação e urbanidade, nem dar segurança de posse, mas principalmente “extrair o valor da casa” por meio do endividamento. A “transferência de renda” a qual alude o ministro do MDR é, na verdade, um embuste que esconde o movimento contrário: a extração, pelo mercado financeiro, de valor da casa e da terra, investimentos diretos dos moradores. Segundo Isaac Sidney (Presidente da Febraban), no lançamento do PCVA, o programa de regularização era fundamental para “atrair investimento” para o país, sem gastos ou riscos seja do governo, seja dos bancos. Adicionaríamos: apenas das classes populares tomadoras de crédito.

Para que as classes populares façam tais transações financeiras, por fim, era necessário dar acesso remoto, ágil e fácil ao sistema bancário, dentro do qual a portabilidade poderá diminuir ainda mais as taxas por conta da concorrência. A Caixa é estratégica, pois é a porta de entrada das classes populares no sistema bancário. Daí a importância da popularização do aplicativo para celular do banco, realizada de maneira compulsória e massiva para acesso ao Auxílio Emergencial durante a pandemia. Pedro Guimarães ressaltou, nos dois eventos, que esta é a forma de dar “visibilidade” a milhões de cidadãos antes invisíveis – como adiantei em outro momento –, dando acesso ao microcrédito pelo celular. Desta maneira, a cidadania pelo consumo do período lulista parece estar se transformando em cidadania por endividamento.

A plataforma digital da Caixa dando acesso da massa ao mercado financeiro, “capitalizada” pela regularização fundiária em blockchain, além da expansão dos financiamentos indexados pelo IPCA, são condições fundamentais, segundo Pedro Guimarães, para o ponto final do processo, o último da lista do Bacen, e o objetivo mal escondido do PCVA como parte do processo. A meta é a securitização de ativos imobiliários populares: ou seja, transformar a dívida dos mutuários e novas propriedades em papéis (recebíveis imobiliários e hipotecas) negociados por agentes financeiros, principalmente institucionais. Pedro Guimarães enfatizou que a Caixa realizará, em breve, a securitização de R$500 milhões de reais de créditos do SBPE já indexados em IPCA. Assim, os mesmos 500 milhões de reais doados pelos bancos no FDS, retornam a eles como investimento mais rentável no SBPE.

Embora fora do novo programa, se parte do crédito imobiliário em carteira da Caixa for vendido por meio da securitização, a Caixa pode, inclusive, segundo seu presidente, “originar mais recursos”, ou seja, financiar mais unidades, numa rotação maior – e então desvendamos o milagre da multiplicação sem recursos: passando o endividamento do Estado para as famílias. O FGTS, parte do programa, teria, ao que parece, a função de permanecer comprando tais títulos securitizados, só que agora do SBPE – ou seja, uma operação financeira dentro do SFH, que vai aos poucos se tornando SFI, até se diluir nele com o tempo. Desta maneira, se no PMCMV o SBPE ajudava o FGTS (faixas de maior renda ajudavam as de menor), agora no PCVA é o FGTS que ajuda o SBPE: no PMCMV, se fosse possível o mutuário do FGTS colocar na poupança anteriormente os recursos da parcela seguinte, os juros estariam sendo pagos pelo sistema; no PCVA, sem esse “subsídio cruzado”, e com o FGTS comprando as dívidas securitizadas do SBPE, acontece o contrário, são os mais pobres que possibilitam os juros mais baixos para as faixas superiores.

Isso, também, significa que, se a securitização em massa acontecer como decorrência posterior da implantação do PCVA, o financiamento habitacional das classes populares brasileiras, bem como seu patrimônio titularizado, estará nas mãos de investidores, sob uma métrica própria, que se beneficia diretamente do aumento da inflação e que extrairá a maior parte do orçamento das famílias. Pois, também de acordo com Pedro Guimarães no evento da Abrainc, o teto de endividamento familiar do SBPE (20%) está sendo revisto para os financiamentos indexados em IPCA – “sem teto” de endividamento se parece muito com “sem teto” real. Se a inflação aumentar e tais financiamentos não conseguirem ser pagos, as casas serão tomadas pelos investidores – de perfil institucional e internacional – e não leiloadas pela Caixa ou renegociadas pelo governo como acontece hoje no PMCMV ou no PCVA. Algo muito parecido com o subprime norte-americano responsável pela crise financeira de 2008. As casas retomadas no mundo todo pelos agentes financeiros, naquela ocasião, hoje fazem parte da carteira de enormes “corporate landlords[18], que centralizam e controlam rendas de aluguel residencial popular – um fim que parece já estar sendo pensado pelo PCVA, como citado acima.

Tal bolha financeira, no entanto, é afastada pelos presentes no evento da Abrainc, na medida em que essas transações serão realizadas de maneira “controlada e responsável pelos bancos brasileiros”. Por fim, entendemos a honrosa abertura das falas na cerimônia de lançamento do PCVA feita pela Febraban, e não por nenhum outro representante do governo. Algo diferente em relação às presenças do Sinduscon[19], no lançamento do PMCMV, e dos movimentos populares de luta pela moradia – que agora enfrentarão ainda mais contradições na estratégia de ocupação de terras, na medida em que sua mercantilização – e securitização – está sendo facilitada. Mas isso é assunto para outro texto.

Notas:

[1] A crise de 2008 foi desencadeada por conta do empréstimo subprime, de alto risco, no caso, ligado ao crédito tomado tendo como garantia as casas das classes populares norte-americanas. Ver FIX, 2011 e ROLNIK, R. Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.

[2] Na Fase 3 do PMCMV (2017) este limite era de R$ 1.800.

[3] Na Fase 3 do PMCMV (2017) este limite era de R$ 9.000.

[4] Fundo de Arrendamento Residencial.

[5] Fundo de Desenvolvimento Social.

[6] Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.

[7] Certamente com recursos do FAR, vindos do orçamento da União, mas isso ainda não foi especificado nos documentos divulgados nem no lançamento do programa.

[8] Na Fase 3 do PMCMV (2017) esses juros eram de 5% (Faixa 1,5) a 9,16% (último patamar da Faixa 3) ao ano.

[9] Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos, a conhecida “poupança”, que financia o crédito habitacional para as faixas acima do FGTS (PMCMV e PCVA).

[10] Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias.

[11] Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança.

[12] Empresa Securitizadora.

[13] Neste fato há uma estranha relação de causa e consequência entre o lançamento de uma cartilha de combate à COVID-19 em obras (exigência do sindicato) uma semana antes da assinatura do protocolo de autorização para retomada das atividades imobiliárias em São Paulo, ambas ações da Abrainc.

[14] Empréstimos com imóveis como garantia, nos quais os juros são mais baixos.

[15] O PMCMV teve um relevante papel na adaptação, expansão e consolidação das empresas do setor imobiliário brasileiro no mercado acionário (FIX, 2011); expandiu de maneira significativa o uso do instrumento da alienação fiduciária, importante para a implantação do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), no qual o imóvel é garantia real do financiamento, sendo propriedade do banco até a quitação da dívida (ROYER, 2009); implantou o sistema de subsídio à demanda, importante para a expansão do setor de crédito imobiliário em países emergentes (ROLNIK, 2015); alterou profundamente as relações de trabalho na construção civil, inserindo mecanismos de controle da produção, certificações internacionais e consolidação do sistema de “empreitada” nos canteiros, típico do trabalho sob demanda (BARAVELLI, 2014); generalizou a “forma condomínio” para as classes populares (TONE, 2015); e alterou o acesso à terra para habitação popular, generalizando sua forma de mercadoria (RODRIGUES, 2013).

[16] Sistema Financeiro Habitacional, composto de poupanças voluntárias e involuntárias dos trabalhadores brasileiros, o SBPE e o FGTS respectivamente.

[17] Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IBGE.

[18] Os trabalhos de Desirée Fields são importantes para entender a temática.

[19] Sindicato da Indústria da Construção Civil.

5 COMENTÁRIOS

  1. Ótima coluna, como sempre!

    Deixe-me perguntar: há alguma correlação desses eventos com o interesse de municípios em aprovar leis de “vale-tudo urbanístico”? Eu só li sobre o caso do Rio, onde houve grande contestação por parte de autoridades do ramo e coletivos de esquerda à lei do puxadinho. A resposta parece simples, que tomaram a medida pra gerar receita a curto-prazo, mas quais seriam os impactos na dinâmica da cidade? Como responderiam os movimentos de ocupação de moradia? Estou perguntando porque não entendo nada do assunto.

    Um abraço e boa semana!

  2. Alan,
    Acredito que o vale-tudo urbanístico estaria existindo independente destes eventos. Eles sempre acontecem, e o imobiliário é recorrentemente usado como máquina de geração “mágica” de valor – visão que obscurece o fato de que a construção civil é um dos setores que mais emprega no país, de maneira bastante precarizada. Os canteiros de obra são ainda o lugar daquela produção mais baseada em mais-valia absoluta, que só alterou seus processos produtivos quando, depois da abertura de capital das empresas do mercado imobiliário, precisaram implantar formas de controle do trabalho mais efetivas. A implantação de tecnologia alterou muito mais o controle do trabalho do que o primitivismo do processo produtivo. Algo muito parecido com os aplicativos de entrega, cuja tecnologia mais altera o controle do trabalho do que a forma de produção, que recai à barbaridade de quilômetros rodados em bicicleta em extensão da jornada de trabalho. A produção da cidade é um grande fator contra-restante da lei tendencial da queda de lucro…

    Assim, quanto mais espaço para explorar esta mão de obra, melhor – pois ela é infinita no nosso país. A regulação urbanística é o momento em que as disputas desse setor são ferozes, pois existem muitos interesses em jogo. Não é à toa que usam um momento de urgência econômica e social para “passar a boiada”. Isso é de praxe. O importante, neste momento específico que vivemos, é entender as particularidades dessa boiada. No RJ, claramente isso tem a ver com os negócios da milícia, altamente inseridos na produção imobiliária. Se a milícia “é o Estado”, como diz o José Cláudio Alves, me parece que nessas aprovações extemporâneas têm muitas mãos dela.

    Penso em escrever um pouco sobre isso logo mais. Tem a ver com o final deste artigo: o lugar das ocupações de terra neste contexto. Acredito que a possibilidade de negócio com elas cresceu muito, por conta da Lei de REURB, que agora vai ser turbinada com o Casa Verde e Amarela. Aguarde cenas dos próximos capítulos…

  3. olá Isadora, muito bom o texto! As siglas das entidades de financiamento são realmente um labirinto, deus me livre.
    O seu comentário sobre a mais-valia absoluta no âmbito da construção civil me fez lembrar de um livro que eu gostei muito, escrito e desenhado por um companheiro estadunidense quando trabalhou neste setor. Está traduzido ao espanhol também, se interessar. Recomendo muito! Abraços!
    https://libcom.org/files/the-housing-monster.pdf
    https://www.mediafire.com/file/k4dqb2dx1aetj7t/Elmonstruodelavivienda-lazoediciones.pdf/file

  4. Estava aqui buscando um financiamento pelo Casa Verde e Amarela pra financiar um apartamento e sair do aluguel claro (rs) e notei que, com o aumento da SELIC, as taxas de juros do credito imobiliario voltaram a ser inferiores a SELIC.Acho que quando esse texto foi escrito a taxa básica de juros era de 4%, algo assim; hoje está em quase 14%.

    A minha dúvida é: qual a principal diferença entre o PMCMV e o PCVA?
    Seria somente esse maiir controle da Caixa que ocorria no primeiro?

    Obrigado!

    Suas analises são excelentes. Leio sempre

  5. Leo,

    De fato, quando esse texto foi escrito a Selic estava em 2%. Atualmente, com as taxas de juros do Casa Verde e Amarela (4,25% e 4,5%) abaixo da Selic (14%), o programa voltou ter subsídio cruzado, em valor ainda maior do que no PMCMV. Mas isso é apenas para quem consegue acessar o financiamento, que envolve uma entrada e parcelas durante 35 anos. Ou seja, é um estímulo ao mercado de classe média e classe média baixa, entre 3 e 6 salários mínimos. Neste aspecto a diferença dos dois programas é muito pequena: é de quantidade de juros, não de qualidade do programa. Só um detalhe: com a crise, nem estas faixas de renda estão conseguindo pagar as parcelas, e o governo está propondo o comprometimento do FGTS futuro dos compradores para abater a quantidade de anos no financiamento. Se perderem seus empregos, mesmo assim arcam com essas parcelas maiores mensais. Um absurdo.

    Respondendo mais diretamente a sua pergunta: a principal diferença entre um programa e outro está no atendimento à faixa de renda de até 2 salários mínimos. No PMCMV, elas eram atendidas através das filas das prefeituras, pagando 5% da renda familiar mensal por 10 anos, sem entrada (valor mínimo da parcela de R$25). Ou seja, um subsídio direto de até 96% da unidade habitacional. Essa modalidade deixou de existir no Casa Verde e Amarela, e esta faixa de renda passou a contar apenas com parcos recursos para regularização fundiária (um processo cartorário, que não envolve necessariamente urbanização). Elas não são proibidas de acessar o financiamento das faixas superiores, mas simplesmente não conseguem acessar, principalmente por conta da entrada. O governo inclusive fez algumas tentativas de facilitar este acesso, fazendo parcerias com os estados, que entrariam com terra ou subsídios para diminuir a entrada. Mas ainda não temos dados para ver se isso está dando certo ou não. O Estado de São Paulo, onde há a maior fatia do déficit habitacional do país, não entrou nesta parceria, para você ter uma ideia.

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