Por Ana Marques

Em Portugal, a interrupção voluntária da gravidez foi legalizada em 2007. Qualquer mulher que assim o entenda pode interromper a sua gravidez até à décima semana, independentemente dos motivos. Os motivos são do foro pessoal e serão tantos quanto todos e cada um dos casos de mulheres que optam por interromper a sua gravidez. Mas se os motivos são do foro pessoal, é à sociedade como um todo que cabe garantir que esse direito de escolha exista e que as condições em que essa escolha é levada avante sejam dignas, justas e seguras.

A discussão pública sobre o direito à interrupção voluntária da gravidez teve início em 1974, logo após o 25 de Abril [o golpe militar que pôs fim ao fascismo. PP], e foi ganhando massa crítica, lentamente, até ao momento da legalização, 33 anos depois. Em 1984 foi aprovada uma lei que descriminalizou o aborto até às 12 semanas em caso de perigo para a saúde física e psíquica da mulher, e até às 16 semanas em caso de violação ou malformação do feto. Esta lei previa uma punição de até três anos de prisão para mulheres que abortassem fora do quadro legal e continuou a remeter muitas mulheres para o aborto clandestino, situação atentatória da dignidade da mulher, potenciadora de risco de vida, e na qual os contrastes sócio-económicos se manifestam de forma particularmente expressiva.

O movimento pró-legalização exigiu assim a revisão da lei, de forma a incluir a possibilidade de uma mulher recorrer ao aborto por sua própria opção. Mas foi preciso esperar pelos finais da década de 90, após a emergência de notícias de casos de mulheres julgadas e presas, bem como notícias de mortes de mulheres em consequência de abortos clandestinos, agora entendidos como um problema de saúde pública, para que os termos da lei do aborto voltassem a ser discutidos. Os esforços da mobilização pró-legalização conduziram a que a legislação fosse alterada em 1997, estendendo o prazo para interrupção da gravidez de 16 para 24 semanas em casos de malformação do feto, e de 12 para 16 semanas em situações de “crime contra a liberdade e autodeterminação sexual da mulher”. Ainda assim, a pena de prisão para mulheres que fizessem um aborto fora desse enquadramento legal mantinha-se.

Em 1998, os dois líderes dos principais partidos portugueses (António Guterres, do PS, e Marcelo Rebelo de Sousa, do PSD), ambos pessoalmente contra a legalização do aborto, celebraram um acordo com vista à realização de um Referendo, o primeiro alguma vez feito no país. A campanha pelo “Sim” fez-se sob o lema da tolerância. Se o discurso pró-legalização se centrou inicialmente no direito à autodeterminação da mulher, ele passou, no âmbito desta campanha, a dar visibilidade a casos concretos de mulheres cuja integridade e dignidade se viam postas em causa pela criminalização, e integrou argumentos relativos à saúde e aos contextos sócio-económicos, incluindo o aborto clandestino para o qual continuam a ser remetidas as mulheres em sociedades que criminalizam o aborto. A campanha pelo “Não” foi marcada pela culpabilização das mulheres, pelo apelo à emoção e fez-se sob o lema da vida. A vida, genérica e independentemente das circunstâncias, a ideia abstrata de vida futura em detrimento da vida presente e real de cada mulher. A oposição à legalização do aborto, que teve um importante pilar na Igreja Católica, propôs um maior apoio social às famílias, numa posição assistencialista e baseada em concepções de vida, maternidade, família ou sexualidade que não são universais mas sim circunscritas a uma cosmogonia e a uma lei moral específicas que sacrificam a mulher-sujeito à mulher-mãe. Nesta visão, a mulher é entendida como instrumento da espécie, a sexualidade como função reprodutora e a família tradicional como modelo da sociedade patriarcal. A posição censória da Igreja Católica teve algumas das suas manifestações mais extremadas nos casos, por exemplo, do Bispo de Viseu, D. António Monteiro, que comparou o aborto ao crematório nazi (Diário de Notícias, 02/06/1998), e do Bispo de Bragança, D. António Rafael, que afirmou que o aborto era “pior ainda que o holocausto” (Público, 21/05/1998).

A forte implantação da Igreja Católica na sociedade portuguesa, associada à inexperiência de discussão democrática num contexto de Referendo, entre outros factores como a discordância dos termos em que a pergunta foi colocada [*] ou a discordância com o modelo referendário em si mesmo, terão contribuído decisivamente para que o “Não” vencesse com 50,09% dos votos. No entanto, face a uma abstenção de 68,1%, o Referendo não foi vinculativo. Importa notar que, relativamente à distribuição geográfica dos votos, se verificou um contraste acentuado entre as zonas Norte e Centro, onde a influência da Igreja Católica é mais pronunciada, com uma concentração dos votos pelo “Não”, e o Sul a votar maioritariamente “Sim”. Nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira o “Não” venceu com 82,3% dos votos. Portugal permanecia assim como como um dos últimos países europeus a criminalizar o aborto.

Um dos problemas apontados à campanha pela legalização do aborto foi o facto de ceder à percepção da mulher enquanto vítima para quem a interrupção da gravidez é uma necessidade e não uma opção tomada em plena consciência, o que acabou por reforçar um entendimento do aborto como algo moralmente reprovável mas a que muitas mulheres recorrem por falta de condições para levar a sua gravidez avante. A argumentação a favor da legalização teria sido mais incisiva (e culturalmente mais produtiva) se, ao invés de vítima, se tivesse assumido de forma mais clara um entendimento da mulher enquanto sujeito auto-determinado e com plenos direitos de escolha, sublinhando a importância da autonomia sexual e reprodutiva. Mais do que afirmar “não tenho condições para ser mãe”, está em causa o direito a afirmar “não quero ser mãe” sem ter de justificar as razões pelas quais uma mulher se pode encontrar na situação de interromper uma gravidez.

Entretanto, e face aos cerca de 18 mil abortos clandestinos estimados por ano em Portugal, realizavam-se os primeiros julgamentos e condenações. A percepção da violência e desajuste das medidas de coação conduziu ao reacendimento da discussão pública, destacando-se a campanha Fazer Ondas, em 2004; um maior envolvimento da sociedade civil; e a criação da associação Médicos Pela Escolha, decisiva para legitimar o discurso pró-despenalização perante a opinião pública e a própria classe médica. Apesar dos resultados, o Referendo abriu também caminho para a venda livre da pílula do dia seguinte, também disponibilizada gratuitamente em centros de saúde.

Dois anos após a eleição de um novo Governo realizou-se o Referendo de 2007, que mobilizou cerca de três vezes mais movimentos anti-escolha do que pró-escolha. Mais uma vez, diversos elementos das hierarquias da Igreja Católica adoptaram posições censórias, incluindo a comparação do aborto a práticas medievais (Diário de Notícias, 26/12/2006) e à pena de morte (Público online, 15/01/2007), ou a ameaça de excomungar os fiéis que votassem “Sim” (Público, 31/01/2007). Do lado dos movimentos pró-escolha, a campanha centrou-se sobretudo na desadequação de uma lei que empurrava as mulheres para as barras dos tribunais. Tal como no caso do Referendo de 1998, o discurso centrou-se mais na saúde e na justiça, e menos no direito à escolha. De acordo com o estudo “A despenalização do aborto em Portugal ― discursos, dinâmicas e acção colectiva: os referendos de 1998 e 2007”, «[o] resultado foi uma Campanha de 2007 moderada, claramente eficaz a curto prazo sob o ponto de vista da mudança jurídica ― objectivo fundamental, sublinhe-se ―, mas pouco envolvida na mudança de mentalidades e com a promoção dos direitos das mulheres entendidos de forma mais cabal.» (Alves et al., 2009: 38)

Os resultados deste Referendo deram uma vitória ao “Sim”, com 59.25% dos votos; no entanto, e apesar de uma maior participação, a abstenção atingiu os 56,43%, pelo que este Referendo não foi, mais uma vez, vinculativo, ficando a alteração da legislação a cargo da Assembleia da República, que aprovou em Abril a Lei nº 16/2007. A partir desse momento, a interrupção voluntária da gravidez passou a ser legal, por opção da mulher e independentemente dos motivos, até às primeiras 10 semanas de gravidez. Qualquer mulher, independentemente da sua situação legal, pode fazer um aborto no sistema nacional de saúde (isento de taxas moderadoras) ou em estabelecimentos de saúde privados autorizados, estando todas as etapas deste processo sujeitas a confidencialidade e sigilo profissional. No caso de menores de 16 anos ou de incapacidade psíquica para a tomada de decisão, o consentimento cabe ao representante legal. Note-se ainda que o Estado exige que, para a realização de um aborto, a mulher passe por um período de três dias de reflexão. Esta é uma atitude paternalista, que pressupõe que a reflexão que haverá a fazer não esteja já feita, infantilizando e diminuindo assim a mulher.

Ainda que do ponto de vista da mudança jurídica o caso de Portugal seja hoje visto como um exemplo de sucesso, do ponto de vista sócio-cultural permanecem importantes passos a dar, nomeadamente no sentido do reconhecimento, transversal a toda a sociedade, da autodeterminação sexual e reprodutiva. Num país ainda marcado pela herança da ditadura salazarista e pelo peso da Igreja Católica, aquilo que deveria ser um direito inquestionável — a soberania da mulher sobre o seu próprio corpo, a sua sexualidade e o devir da sua vida — continua, ainda hoje, a não ser consensual. Do mesmo modo, a percepção sobre a mulher continua espartilhada pela maternidade, como se essa fosse, à partida e por defeito, a sua “condição natural”. A mulher permanece refém dos papéis que lhe são tradicionalmente atribuídos, e a emancipação dessas expectativas continua a exigir um constante confronto com estruturas mentais e culturais profundamente enraizadas, invisibilizando modos de repressão naturalizados. A cedência e o compromisso em nome da moderação constituem-se, por isso, como travões às muitas conquistas que são, ainda hoje, urgentes.

Agosto de 2020

[*] Em 1998 e 2007, os Referendos à despenalização do aborto em Portugal foram formulados nos seguintes termos: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?».

Este artigo está ilustrado com obras de Niki de Saint Phalle (1930-2002).

 

Referências

Alves, M. et al. (2009), “A despenalização do aborto em Portugal — discursos, dinâmicas e acção colectiva: os referendos de 1998 e 2007”, Oficina do CES, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Acedido a 26/08/2020: https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/11071

“Aborto em Portugal”, Wikipedia.org. Acedido a 26/08/2020: https://pt.wikipedia.org/wiki/Aborto_em_Portugal

Lei n.º 16/2007 de 17 de Abril. Diário da República n.º 75/2007, Série I de 2007-04-17. Acedido a 26/08/2020: https://dre.pt/application/file/a/519499

Lei n.º 90/97 de 30 de Julho. Diário da República n.º 174/1997, Série I-A de 1997-07-30. Acedido a 26/08/2020: https://dre.pt/application/conteudo/144792

Lei n.º 6/84 de 11 de Maio. Diário da República n.º 109/1984, Série I de 1984-05-11. Acedido a 26/08/2020: https://dre.pt/application/conteudo/385266

2 COMENTÁRIOS

  1. olá Ana, é muito interessante ver como se organizam os discursos pro e anti-escolha; essa leitura de um discurso vitimizador vindo da própria campanha pro-escolha é mesmo terrível.
    Me chamou muito a atenção que em um país tão católico como a Polônia tenha surgido a iniciativa da greve de mulheres em 2016, contra a lei que passaria a banir completamente o aborto. Existe em Portugal uma polarização rígida entre religiosos e religiosas contra o movimento de mulheres, ou existem setores religiosos mais permeáveis ao debate sobre os direitos reprodutivos?

  2. Olá, Lucas.

    Agradeço o comentário, que permite esclarecer e sublinhar dois aspectos.

    O discurso não foi vitimizador, desde logo porque não foi homogéneo. Apenas as abordagens mais radicalizadas privilegiaram o argumento da escolha, mais produtivo a longo prazo e menos produtivo a curto prazo. Sendo o objectivo imediato alterar a lei, as campanhas privilegiaram o argumento da justiça, mais produtivo a curto prazo e menos produtivo a longo prazo. E o objectivo foi conseguido. Isso é referido no antepunúltimo parágrafo.

    A percepção social da mulher como vítima também não é vitimização. É antes um resultado directo de uma cultura que vitimiza, de facto, as mulheres, no sentido em que as diminui em todas as esferas da vida social e pessoal. Muitas vezes (incluindo casos de natureza semelhante ao que está agora a receber atenção dos media no Brasil), a mulher é de facto uma vítima – e se interrompe a sua gravidez fá-lo na qualidade de vítima de uma cultura que banaliza o abuso e a violência.

    Não sei se em Portugal há setores religiosos mais permeáveis ao debate sobre os direitos reprodutivos. Haverá vozes dissonantes das hierarquias da Igreja Católica, mas talvez não sejam muito significativas.

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