Por Paulo Schwartzman

Em tempos de pandemia, nos quais cada dia é uma luta para sobreviver entre o medo do desconhecido, a saudade dos conhecidos e o estado irreconhecível da política nacional, uma boa notícia. Ao escutar uma música da banda nacional Dingo Bells, percebo uma relação forte com a ideia de modernidade líquida presente em Bauman.

A música em questão chama-se “Mistério dos 30”, indicando fase na vida das pessoas em que altos questionamentos digladiam-se entre si. Mais especificamente naquilo que refere-se ao ponto de contato com Bauman, temos o seguinte trecho:

« Não tenha medo
Largue o emprego
Vivendo à vista
Pagando em prestação »

Ora, tal trecho evoca quase que na essência a ideia de liquidez, tão cara a Bauman em diversas de suas obras. Vive-se à vista, aproveitando o momento, num eterno carpe diem, e paga-se o preço aos poucos, em prestação.

Essa é justamente a lógica que tenta ser incutida pelo capitalismo neoliberal atual, no qual a dinâmica temporal da espera é liquefeita pela oferta fácil de crédito. Aliás, valores como aqueles que envolvem espacialidade e temporalidade estão em completo desuso, como bem assinala o sul-coreano Byung-Chul Han.

É nesse sentido que se vê a inserção do indivíduo dentro da roda do consumo, no qual se deve consumir para preencher o vazio interior; mas, assim que se consome, o vazio volta a se manifestar, dessa vez maior, e com mais urgência para ser preenchido, em um trágico exemplo de ciclo vicioso. Não por outra razão percebe-se o aumento cada vez maior de doenças neuronais, sejam decorrentes do consumo como vício, sejam decorrentes dos meios necessários para bancar esse consumismo, outro fato também pontuado por Han, primordialmente explorado na obra “Sociedade do Cansaço”, com edição brasileira pela editora Vozes e tradução acurada de Enio Paulo Giachini.

«Compro, logo existo»

Voltando à música da banda porto-alegrense Dingo Bells, na mesma toada, e um pouco antes de soltar a máxima relativa a Bauman, percebe-se, somada à tensão consumista, uma necessidade de escapar do locus que causa dor e impede o desfrute do prazer, nesse caso, o emprego. Não só isso. A banda foi feliz também em cravar a relação que permeia o vínculo laboral, uma relação que antes de tudo é calcada no medo.

A canção tem os méritos de trazer à baila questões que estão abaixo da superficialidade com que o atual governo vem tratando a relação laboral nessa pandemia, o que não chega a ser uma surpresa se considerando o nível de despreparo dos integrantes da trupe do Executivo. Ora, em uma dinâmica em que os serviços estatais são sucateados para pôr em prática maligno, mas não tão velado, plano de venda do patrimônio público, acrescida de um contexto de falta de solidariedade incentivada pelos chefes da nação, que a todo momento exortam os cidadãos a portarem-se diante das restrições de locomoção advindas da pandemia como um adolescente inconformado com o castigo imposto pelos pais, o empregado fica mesmo com medo de não poder contar com seu salário.

E é justamente nesse sentido que a música, como manifestação da cultura e catalisadora de catarse, pode nos ajudar a lidar com a situação em que vivemos, abordando as mazelas de forma leve e sedutora. Aliás, para aqueles que defendem uma segregação cultural entre “alta cultura” e “cultura popular”, um aviso: Bauman pode estar mais próximo dos ouvidos do povo do que vocês imaginam.

A ilustração de destaque reproduz uma obra de Peter Phillips (1939-      ). A outra ilustração é de Barbara Kruger (1945-      ).

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here