Por Arnaldo José

Neste novembro de pandemia, os servidores federais estão sendo convocados a retornar ao trabalho presencial. Fato que não surpreende, vindo do Estado brasileiro, mas revolta, já que sabemos que quase tudo que se faz nos locais de trabalho do Executivo federal pode ser feito em trabalho remoto.

Além do retorno ser prematuro e desnecessário, há que se levar em conta os riscos que traz: é mais do que provável que o número de infectados e de mortos aumente significativamente dentro do Executivo. Até agora, do INCRA no Brasil, foram 16 funcionários mortos. Alguns mantiveram ou retornaram ao trabalho presencial por “vontade própria”: falta de salário ou dificuldade de sociabilidade fora dos locais de trabalho foram as causas fundamentais dessa “escolha”.

Local

Escrevo da Superintendência Regional do Incra/SC, na região metropolitana de Florianópolis. A região varia entre estado grave e gravíssimo no Covidômetro do governo estadual. Junto a isso, perdemos um colega de trabalho aqui no Estado, além das centenas de outras mortes por COVID-19 no Estado.

O superintendente regional participou de, no mínimo, duas atividades fora — em uma delas, três chefes voltaram infectados. Para completar, a falta de cuidado foi inacreditável: no retorno ao trabalho ninguém foi testado e não houve quarentena para quem viajou.

Entre nós, trabalhadores, os portadores de comorbidades, aqueles que têm filhos em idade escolar e/ou que coabitam com idosos podem continuar com o trabalho remoto — justo e necessário. Mas aqueles que não se enquadram nessas condições devem voltar ao trabalho presencial. Assim, cria-se uma inegável cisão da categoria, já que, concretamente, uma parte fica em casa e a outra volta ao presencial. Ressalto que, daqueles que voltam ao presencial, 99% poderiam ir ao local de trabalho no máximo uma vez por semana para resolver urgências administrativas e, assim, continuar na maior parte do tempo no trabalho remoto — o que também diminuiria os riscos para aquelas pouquíssimas pessoas que precisariam de fato fazer trabalho presencial, mas que não teriam que conviver com outras pessoas — diminuindo significativamente sua exposição ao risco de contaminação.

A decisão

Na última segunda-feira, em assembleia do sindicato da categoria, a seguinte proposta foi aprovada: considerando que não há quadro de greve sanitária, os trabalhadores que não se enquadrem no trabalho remoto devem negar o retorno ao trabalho presencial e continuar o trabalho remoto. O sindicato mandará um ofício para o INCRA comunicando e relatando os porquês — ofício elaborado pelos servidores do Incra presentes na atividade.

Mais a fundo nos fatos e na decisão

A constatação foi que “os servidores” desamparados pelas medidas do teletrabalho presentes na reunião seríamos… eu. Para piorar entrei na hora final e, no momento em que consegui entrar na assembleia, não foi possível compreender o que aquela decisão na prática significaria. Não me manifestei.

Depois de horas pensando, tive claro que nunca teríamos tratamento similar se só nos negássemos, sem enfrentamento. Teríamos que, de alguma forma, ampliar o direito ao teletrabalho para preservar a vida de todos e manter o salário.

Quem e quantos?

À noite, em reunião da associação nacional dos servidores, expus que a medida não contemplaria a categoria e que foi inconsistente.

No outro dia, em um grupo de WhatsApp, questionei quantos seríamos, quem ficaria em casa e se alguém tinha contactado os colegas de trabalho que deveriam retornar ao trabalho presencial. Obtive negativas como resposta.

O que mais me chamou atenção foram as tentativas de desqualificar a cobrança (sim, cobrança). Isso se deu com uma centralização absoluta na decisão da assembleia do sindicato e com uma desqualificação individual (os velhos ataques pessoais em vez de discutir o problema: a volta ao trabalho, a não participação dos afetados e a decisão inerte da assembleia). A burocrata sindical me disse que eu poderia ir trabalhar e que somasse quem retornou ao trabalho presencial para avisar.

Expus que na próxima quarta-feira, dia 25, entraria em férias e que seria tranquilo ter o ponto cortado poucos dias e ficar em casa. Ressaltei que só com 1 ou 2 seria inviável forçar uma situação sem concretude. Além disso, o principal: “quem estaria convocado a retornar ao trabalho presencial não participou da discussão e que os presentes na assembleia, mesmo não sendo afetados pela obrigação de retornar ao presencial, decidiram pelos trabalhadores que deveriam retornar”.

Claro, já estava decidido, e nada adiantou a tentativa de provocar uma reflexão. Parecia uma afronta questionar “a decisão”.

Dirigentes experientes participaram da reunião, chamaram a reunião, pautaram a proposta. Sim, certíssimo e representativo. Mas, e quem está afetado? E a participação de quem foi afetado? Houve prévia organização dos atingidos? Não, não houve. Seria legítimo alguém que não estava “obrigado” a retornar ao presencial votar ou participar de uma decisão que não diz respeito a ele?

Nos processos de greve, vota quem vai efetivamente parar. Não se decide que os outros vão parar e quem votou, não. Quem propôs e decidiu foram colegas e sindicalistas que não estariam afetados pelas medidas de retorno ao trabalho presencial. A mesma lógica dos sindicatos Amarelos [1] que tanto criticamos foi reproduzida: decidiram pelos trabalhadores. O diferencial é que tenho absoluta certeza que, da parte dos colegas que estavam na assembleia, foi com o maior zelo do mundo, maior carinho e respeito; ainda sim foi decidido pelos trabalhadores. Dos sindicalistas, decidiram ficar em casa mesmo — a representação que quer ver a banda passar. O centralismo democrático mais uma vez se burocratizou e utilizou da representação para não atentar para a base.

Findadas as críticas de terça-feira pela manhã no WhatsApp, fui trabalhar (homeoffice) e esperar o pior na quarta-feira: ter o salário cortado por trabalhar de casa ou ter a possibilidade de contágio dentro do prédio (estando lá ou em casa) [2].

O fato — a negação da negação

Como não fazer o que decidiram por mim e como não abaixar a cabeça para as imposições desnecessárias da administração da autarquia, governo, etc.? Nas duas possibilidades, o trabalho continuaria. Nas duas, eu adentraria a caverna e esperaria o pior.

Então decidi. Decidi por conta própria, junto a tudo que me foi ensinado, e utilizei dos recursos que tinha como trabalhador para demonstrar minha revolta contra a administração e os sindicalistas que decidiram por nós (e que não ajudaram a mapear, muito menos a organizar algo).

Resolvi utilizar o meio que mais se difunde hoje em dia. Fiz dois ou três vídeos no primeiro dia denunciando a situação e cobrando atuação dos sindicalistas interessados em se manter sindicalistas (sendo eles verdes, azuis, amarelos ou vermelhos) — que fizessem como o sindicato dos Correios de Campinas e região e fossem para os locais de trabalho. A opção de ficar dentro de casa e esperar o governo passar não é opção, é não saber o que fazer, é justificar o imobilismo pelo mundo — “tadinhos, né? Mundo tão cruel”.

Para evitar mais uma vez o oportunismo, deixo claro que não citei meus colegas da seção local, nem qualquer trabalhador; o foco do debate é um: a prática dos profissionais do ramo — que podem até ser honestos e honrados, mas que têm a certeza de que a posição deles de decidir é a correta, e o resto deve ser derrotado.

Voltando. A solução aplicada foi parecida com a dos irmãos negros nos EUA. Sentar no local proibido (gramado do prédio), montar uma mesa e cadeira, não entrar no prédio, mas comparecer ao local que não queria e dizer não ao medo e à imposição. O canal foram vídeos no Instagram. Sozinho, sim, mas não estava claro: a de adentrar o prédio e a de terem decidido por mim — mesmo continuando a trabalhar na superintendência. Outros colegas com quem conversei também não respeitaram a decisão da assembleia e subiram para trabalhar (uns 6).

À noite, foi chamada uma reunião local. Como de costume, o foco da sindicalista foi o lado pessoal. Muitos ataques e moralismo no debate: narcisismo-herói [3] ou qualquer disparate desse tipo. E a pergunta ficou clara: “quer dizer que eu sou burocrata e você quando estava aqui não era?” Minha resposta foi simples: “sim, era, estava decidindo pelos outros e era, sim” — se não ficou claro, que fique agora! A máquina é mais poderosa do que o maquinado e não adianta bom-mocismo ou qualquer índole, siga ela o dogma que for… A máquina te engole e te transforma: você gira com o planeta, mesmo não ficando tonto para perceber.

No mais, o mais inimaginavelmente absurdo e patético foi a acusação que eu estaria dando provas para serem usadas contra a luta que estava sendo travada. Dando argumentos para os procuradores da AGU (risos imensos). Eu estava enfrentando e deslegitimando o coletivo, eu, o narciso-herói que só queria um palanque. Tão ajudado pela sindicalista que, quando estava me recuperando de uma cirurgia, me representou num processo [4].

Finalizando a reunião, tivemos os seguintes encaminhamentos concretos: foi debatido um mapeamento, definiu-se que iria se contatar quem estava indo ao prédio, solicitar ao sindicato que fizesse reunião com o superintendente e que iria se continuar a discussão sobre o que está acontecendo.

Finalmentes

Fiquei lá até a terça-feira pré-férias. Uns tentaram me convencer a subir, outros a ir para casa. Conversei com alguns colegas e discutimos a situação.

Com tudo o que foi feito, conseguimos um rodízio no setor em que trabalho. Um colega, com várias doenças preexistentes e de idade avançada, pediu para voltar devido à redução do salário se ficasse em casa. Idosos voltaram ao trabalho presencial por decisão própria e aval do gestor. Fiquei amigo dos cachorros que moram lá, Negão e Mana, além de trabalhar no gramado limpando todos os processos em minha carga.

Hoje, a região está em estado gravíssimo e o superintendente mandou um e-mail comunicando o fechamento do prédio.

Acabam de anunciar uma consulta pública para os IFEs para decidir, democraticamente, se voltam. O TRT-SP fez greve sanitária e conseguiu implementar o homeoffice. Ministério da Agricultura, Iphan e TRE chamaram para o retorno ao trampo presencial e outros órgãos estão se preparando para o mesmo. O imobilismo segue… e segue o baile.

Pendências

A tentativa foi de demonstrar que a imposição da representatividade ficou expressa nas atitudes. E a prática foi e continua sendo o critério da verdade: a assembleia era legítima, quem estava lá tinha legitimidade democrática para tomar tal decisão; mas foi justo com os outros trabalhadores, aqueles para quem a decisão teria consequências, ter algo decidido sem a sua presença? O início sempre é leve e imperceptível, mas ainda é o início de um processo.

Por diversas vezes, nós, trabalhadores do INCRA, descumprimos a decisão de assembleia da confederação nacional, por que agora seria desrespeito?

A moral militante impede a estrutura em moldar o indivíduo?

Os trabalhadores que descumpriram a decisão e foram trabalhar foram acusados de desmerecer o coletivo e afrontar a “decisão certa” decidida pela instância certa ou só quem expôs a merda é que “deve ser algo de ruim”?

No final das contas, a terra girando e os iluminados girados acreditando que a terra é plana.

Notas

[1] CUT, Força Sindical, etc.
[2] Ressaltando que existem colegas com mais de 60 anos e que alguns pediram para voltar.
[3] Realmente, eu nunca tinha escutado tal adjetivo disparado contra mim — a justificativa são os vídeos e 1, repito, UM ofício no qual falei para colocarem meu nome nesses 15 anos de trabalho. Então fui fazer minha autocrítica e analisar minha vida e redes sociais para ver, né? Um espelho em casa, nas rede sociais uma foto minha a cada 10 dias, raríssimos vídeos e negação de palanques ou processos individuais. Fui gargalhar. O disparate é tanto que a chefe da moça pode fazer vídeos para todo o mundo, pode ter a voz em diversos vídeos e áudios, os dirigentes fazem vídeos e aparecem em jornais corriqueiramente. Seus amiguinhos viajam de palanque em palanque para doutrinar “que país é esse”. Amigos assumiram altos cargos de chefia, mas eu é que sou o narciso-herói (risos).
[4] Pensava eu que era obrigação dos sindicalistas esse tipo de ação, sem cobrar subserviência pelo resto da vida.

Arnaldo José é trabalhador no Incra há 15 anos e preto atuante.

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