Por Manolo

Alguns companheiros, sabendo que já estudei algumas coisas sobre o carnaval soteropolitano, me pediram para escrever “sobre o carnaval”. (Não parece, mas gosto muito de carnaval. Não do assunto — também ele, mas da festa mesmo. Mas isso já é outra conversa.) Se olharmos para o calendário o pedido faz todo o sentido, mas vem num momento estranho: como era o mais razoável a se esperar por força da pandemia, a depender da cidade o carnaval de 2021 foi ou cancelado, ou adiado. Ora, como escrever “sobre o carnaval” quando não há carnaval? Escrever qualquer coisa sobre, sei lá, “história do carnaval”? Não pareceria bom. A situação que vivemos é inédita, tanto no carnaval quanto em muitos outros aspectos. Exige respostas diferentes, criatividade. Ia pensando nisso enquanto olhava os fatos em torno desta situação inédita, e vi que eles exigem algumas reflexões.

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Além do cancelamento/adiamento do carnaval, em 23 Estados o ponto facultativo que se decretava durante o carnaval foi revogado, e várias prefeituras seguiram o exemplo. Pretende-se com isso evitar a chamada “folia clandestina”, que já acontece em cidades como Rio de Janeiro (onde grupos de Whatsapp são mais uma vez usados para organizar aglomerações e facilitar a contaminação generalizada) e no interior da Bahia. Em Campo Grande foi necessário preparar grande esquema de segurança para evitar aglomerações; o mesmo aconteceu também em Vitória (ES), onde o ponto facultativo foi mantido; no Distrito Federal, o Ministério Público orienta a endurecer a fiscalização contra aglomerações e eventos clandestinos; em Maceió (AL) foi criada uma força-tarefa para lidar com a fiscalização contra aglomerações; para qualquer lado que se olhe no Brasil, o cenário é semelhante.

O fato é que, como em qualquer situação, há quem tenha conseguido se adaptar ao novo cenário, e há quem tenha sido lançado fora. Vejamos primeiro quem se adaptou, e depois os deserdados da nova situação.

No Rio de Janeiro, o apoio a blocos de rua da prefeitura do Rio de Janeiro certamente facilitou que 150 deles defendessem o chamado “carnaval em casa”. Em Salvador, alguns dos mais conhecidos nomes do carnaval farão transmissões ao vivo, as chamadas “lives”. Este formato de apresentação, que vive seus melhores momentos desde a imposição das medidas sanitárias restritivas em março de 2020, está atraindo também o interesse de grandes marcas, agora dispostas a patrocinar as “lives” como forma de propaganda. Ganham também, com o crescimento das lives, atrações carnavalescas peculiares, como o desfile da União de Escolas de Samba de Maquete (UESM), que desde 2013 é realizado usando, literalmente, maquetes de escolas de samba, que fazem desfilies em miniatura. Estão também em alta as reprises, como a dos desfiles de escolas de samba do Rio de Janeiro programada para as madrugadas de sábado e domingo, pois garantem a um custo extremamente mais baixo, tendente a zero, alguma audiência televisiva num horário que, com o cancelamento dos desfiles, estaria morto.

Vendo as coisas pelo lado de quem está apanhando da pandemia, aparentemente, há dois grandes setores impactados pelo cancelamento do carnaval: os trabalhadores da cadeia produtiva do turismo e os trabalhadores da cultura.

Com a proibição a viagens, e com o justificado temor de contágio, o número de viagens sofreu queda brutal, e toda a cadeia produtiva ligada ao turismo e à hotelaria sentiu o baque. Gestores do setor qualificam os impactos da pandemia como uma “tsunami”, com queda de 92,7% na ocupação hoteleira durante os primeiros meses das restrições sanitárias. Em novembro de 2020 já haviam sido contabilizados mais de R$ 245 bilhões em prejuízos no setor, somados ao risco de demissão em massa com o fim dos auxílios governamentais. Se é certo que foi verificada uma mudança no perfil das viagens de turismo, sendo privilegiadas aquelas mais curtas e próximas, tais viagens dependem de que o destino seja adequado a essas viagens ditas “bate e volta”, que tenham atrações passíveis de serem exploradas neste modelo — algo que se encontra em poucos dos 5.580 municípios brasileiros.

No Rio de Janeiro, a ocupação dos hotéis no carnaval caiu para cerca de 41%; em outras cidades com turismo forte durante o carnaval, o setor hoteleiro projeta ocupação orbitando entre 55% e 65%, contra picos de 98% no mesmo período em temos de normalidade — números que gestores do setor consideram preocupantes com o início da baixa estação imediatamente depois do carnaval. Em Salvador, estima-se que cerca de 60 mil trabalhadores ficarão sem renda por causa do cancelamento da folia momesca, e cerca de R$ 1,7 bilhão deixará de ser movimentado; só no setor hoteleiro soteropolitano, projeta-se que o faturamento cairá dos cerca de R$ 150 milhões habituais neste período para cerca de R$ 40 milhões.

Com tamanha contração e sem qualquer inovação capaz de mudar o rumo das coisas, as demissões seriam consequência inevitável, e já se fazem sentir no setor.

Já os trabalhadores da cultura foram indiretamente proibidos de trabalhar, pois o fechamento de bares e casas de espetáculo desde março de 2020 encerrou-lhes qualquer possibilidade de trabalho presencial; em abril de 2020 calculava-se em torno de 580 mil demissões no setor. O recurso às lives, se funciona para artistas com público já consolidado, não é nem de longe a melhor alternativa seja para artistas com menor público, seja para todos os técnicos e especialistas necessários para fazer os espetáculos funcionar. Para pagar as contas e não ficar à míngua, decerto grande número deles terá recorrido ao abandono de sua expressão artística e à precarização de seu trabalho em outros setores — como um dos cantores do Olodum, que virou guia turístico.

Sim, existe a lei federal 14.017, de 29 de junho de 2020, conhecida como “Lei de Emergência Cultural” ou “Lei Aldir Blanc” em homenagem ao compositor e escritor falecido em 4 de maio de 2020 em função de complicações associadas à COVID-19. Pelos critérios da Lei Aldir Blanc, R$ 3 bilhões do orçamento federal devem ser repassados a Estados e municípios para custear programas como renda emergencial mensal a trabalhadores da cultura; subsídio mensal a espaços e empresas com atividades interrompidas por força da pandemia; e financiamento, por edital, a várias atividades a serem desenvolvidas durante a pandemia.

Em setembro de 2020 o governo federal comemorava já ter repassado R$ 2 bilhões a vinte e cinco Estados e 905 municípios brasileiros, mas o programa parece não ter sido suficiente, pois desde março de 2020 os protestos dos trabalhadores da cultura não pararam: avolumam-se atos, passeatas e outras ações Alagoas (em Arapiraca e Maceió), Bahia (Morro de São Paulo e Porto Seguro, além de Salvador), Ceará, Minas Gerais (em Contagem e Belo Horizonte), Paraíba, Pernambuco (em Recife e Serra Talhada), São Paulo (em Piracicaba)… A proliferação de protestos de trabalhadores da cultura, como era de se esperar, seguiu também durante o carnaval, chegando a reunir 3 mil pessoas em cidades como Salvador, cuja economia é fortemente impactada pelo cancelamento do carnaval. Nada indica que estes protestos, mesmo esparsos e pontuais, vão parar; não enquanto estes trabalhadores não contarem com alguma forma eficaz de apoio enquanto não puderem se apresentar.

Na verdade, o problema destes dois setores é real, mas é também aparente. Enrascados estão, mesmo, os vendedores ambulantes e todos os demais trabalhadores informais que dependem do carnaval para conseguir alguma renda. Há empresas do ramo de bebidas que já se comprometeram a pagar um auxílio de R$ 255 a cerca de 20 mil ambulantes do Brasil inteiro capazes de comprovar que já trabalharam na mesma função em carnavais anteriores — número baixo, considerando que só em Salvador em 2020 houve 4,5 mil ambulantes cadastrados pela Prefeitura. E este número, por si só alto, reflete uma tragédia social mais profunda, pois em 2019 houve 2 mil cadastrados para a mesma função; o trabalho como ambulante no carnaval de Salvador costuma render, em média, R$ 3,5 mil — ou seja, entre três a quatro meses de salário mínimo, a depender de como cada qual consiga administrar sua própria miséria. O aumento no número de ambulantes do carnaval é, também, o aumento de desempregados, que vêm aí uma oportunidade de passar três a quatro meses com menos fome.

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Como disse antes, a situação é inédita e pede reflexões, respostas diferentes, criatividade. Nós, trabalhadores, estamos sozinhos como sempre; contamos somente com nossa própria força, mas ao mesmo tempo entramos neste carnaval isolados como nunca, premidos entre a necessidade de ação coletiva e as medidas de prevenção contra o contágio. Que fazer?

Não acho interessante seguir pelo caminho de que “a esquerda deve…” fazer alguma coisa, colando a este sintagma alguma fórmula mágica para fazer a revolução aparecer ali na esquina. Prefiro não fazê-lo. Ninguém tem mais saco para fórmulas. Basta olhar para os lados, escutar, conversar, viver: vivemos num tempo em que poucas palavras de ordem fazem sentido, e as que o fazem são ineficazes. Melhor dizendo: fazem sentido para o marketing, são os memes ou as tretas da semana, giram em torno de um vazio de conteúdo e de uma ineficácia prática poucas vezes vistos. É daí que devemos partir, não de outro lugar. Daí, e da impotência dos sujeitos mais incomodados com o atual estado de coisas, de sua pequena capacidade de fazer algo acontecer, de agitar a conjuntura a seu favor.

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É grande a tentação, neste contexto, de encontrar em qualquer contestação à ordem traços “inconscientes”, “primais”, “espontâneos” de “protesto” contra a exploração do dia a dia, ainda mais quando o protesto é um dos elementos subjacentes às comemorações carnavalescas e as “folias clandestinas” estão na ordem do dia. Se se perguntar a cada pessoa que esteve nas “folias clandestinas” por que não ficou em casa se protegendo, a resposta mais comum é, realmente, o dilema “se pode aglomerar para trabalhar, por que não pode aglomerar para divertir”. (Sim, eu saí perguntando. Não custa nada, e o “não” eu já tenho.)

Ocorre que, de um lado, “espontâneo” é sempre aquilo que acontece fora do controle ou da previsão de alguém; de outro lado, esse “protesto” das “folias clandestinas” tem muito jeito de danse macabre. Vamos fazer agora quase um ano num regime de trabalho onde a exploração persiste, mas as possibilidades de lazer são pouquíssimas. É evidente que as “folias clandestinas” respondem a esta condição sui generis de nosso tempo, mas não podemos esquecer que, muito objetivamente, as “folias clandestinas” facilitam enormemente a difusão do coronavírus entre a classe trabalhadora, que é a maioria da população sob qualquer circunstância. Na verdade, vistas as coisas numa perspectiva mais ampla, é tão bizarro no atual contexto entender as “folias clandestinas” puramente como forma de “protesto” que sequer é plausível compará-las a uma danse macabre — afinal, se a morte iguala a todos na Totentanz, é entre trabalhadores que ela cobrará seu mais alto preço em vidas.

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Talvez um caminho para entender esta fascinação com as “folias clandestinas” esteja no fato de que o carnaval é das tantas coisas para as quais a esquerda nunca teve “programa”. Do oito ao oitenta, da moderação ao extremismo, as posições a seu respeito variam, e poucas parecem perceber coisas óbvias.

Há quem siga o dogmatismo, quase religioso, que acusa o carnaval de ser uma “festa da alienação”, e faz de certos setores da esquerda companheiros involuntários das mais radicais seitas religiosas.

No outro extremo, e de certo modo guardando uma estranha relação com o primeiro, há certo hedonismo engajado, materializado em tantos e quantos “blocos de esquerda” que desde o ressurgimento hipster dos pequenos blocos de rua em certas capitais fazem da sua presença na folia momesca um arquipélago de “espaços de resistência” tão autênticos quanto white metal, capoeira gospel ou “bolinho de Jesus”, alguns sob o argumento de que “Marighella saía vestido de mulher no carnaval mesmo na clandestinidade”.

(Claro, há também o setor delirante que vê “autoritarismo” e “ditadura” nas medidas de proteção sanitária como máscaras, álcool gel e distanciamento social — mas melhor para estes últimos que vão encontrar auditório lá entre os bolsonaristas, onde seus delírios fazem eco.)

Nos dois casos, é o “conteúdo” do carnaval que está em disputa, não sua “forma”, seu “modo de fazer”, seu “assim”. Sem o carnaval, não há “alienação” para os dogmáticos, não há “folia engajada” para os hedonistas críticos, não há nada. Aparentemente nada. Nada a “disputar”, nada a “engajar”, nada a “mobilizar”. E quando nada há, restam as redes sociais, os “a favor” e os “contra” a treta da semana; há o reforço à ação de “representantes” e à separação entre quem manda e quem obedece, entre quem faz e quem dá audiência, entre quem age e quem resigna-se à passividade revoltada.

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De certo modo, essa “falta de programa” é até boa. Permite maior liberdade de ação. Não engessa. Na medida, é claro, em que exista interesse em alguma ação que ultrapasse o linguístico, o simbólico, e torne-se social, econômica, política — em suma, potente. Uma vontade de ver alguma coisa acontecer. De entender cada momento da própria vida como partes de algo que vai além de si próprio, e de ver os outros não como obstáculos ao próprio desejo, mas como condição necessária à sua realização. E de fazer, realmente, alguma coisa acontecer.

Esse vaivém entre “individual” e “coletivo”, entre “particular” e “geral”, pode ser uma das chaves para ver com outros olhos coisas que se passam diante de nós.

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Cabe perguntar, por exemplo: se os trabalhadores não estivessem sendo forçados a quebrar o isolamento social para trabalhar, se houvesse outras medidas (financeiras, materiais, psicológicas, qualquer uma) capazes de apoiá-los eficazmente em seu isolamento, não teriam sido quebradas as forças econômicas, sociais e psicológicas que os empurram para o falacioso dilema “se pode aglomerar para trabalhar, por que não pode aglomerar para divertir”? Seria necessária a repressão num cenário em que trabalhadores não precisassem se preocupar com o cancelamento do auxílio emergencial, ou com demissões em massa causadas pela falta de suporte governamental adequado às necessidades específicas de cada setor? Difícil saber.

Entretanto, não faltam iniciativas de apoio mútuo e solidariedade entre trabalhadores. Não dá para ficar parado enquanto a família do vizinho se alimenta de mingau de farinha com açúcar duas vezes por dia. Quem aprendeu a dividir a miséria desde muito cedo para conseguir suportá-la juntos, não aguenta ficar parado. Age. Foi assim, aos trancos e barrancos, levantando-nos pelos nossos próprios cabelos, que foi possível sobreviver enquanto o auxílio emergencial não chegava. Voltou a ser assim quando ele acabou.

Não seria muito mais interessante se, em vez de buscar elementos de “protesto” nas “folias clandestinas”, olhássemos com mais cuidado para as redes informais de solidariedade entre trabalhadores que têm se formado desde março de 2020 em cidades como Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro (aqui e aqui), Brasília e outras? Sim, é verdade que as doações tiveram um pico em meados de 2020 e foram se reduzindo — mas será que este fenômeno não refletiria apenas a situação das organizações que intermedeiam a solidariedade? Teriam desaparecido igualmente as redes informais feitas pelos próprios trabalhadores, sem intermediários? Essas, levando em conta o que está ao alcance dos olhos e ouvidos, ainda existem e continuam atuantes. Há casos de apoio solidário que são enquadrados pela mídia quase como ações de caridade — mas num contexto em que há trabalhadores literalmente passando fome, era de se esperar outra coisa?

Talvez um caminho de ação nesses tempos tão estranhos seja buscar construir, sem esperar iniciativa de governos e de capitalistas, os apoios solidários de que necessitam os trabalhadores mais afetados pela suspensão das atividades econômicas que sustentam o carnaval. Duro, difícil, mas é um caminho que os próprios ambulantes já estão fazendo, a seu modo e com os recursos de que dispõem. Não seria algo a aprender? A reproduzir? A ampliar? Ou a solidariedade entre os trabalhadores que faziam acontecer a folia momesca é um fenômeno menos importante que as “folias clandestinas”, politicamente falando?

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Não há muito mais o que escrever “sobre o carnaval” no atual contexto. Um texto mais rico, mais sofisticado, talvez mesmo mais interessante do ponto de vista estético, terminaria completamente dissociado dos dilemas da luta de classes neste momento. As vacilações, incertezas e dúvidas que assombram este texto têm o mesmo sabor de quarta-feira de cinzas que tais dilemas. Forma ritualizada de conflito social, deboche institucionalizado, mas sobretudo momento de explosão da criatividade coletiva, o carnaval não se pode entender sem estar imerso nos conflitos sociais próprios da época. Este texto não poderia, portanto, ser diferente do que é. Espero fazermos o possível para que, ano que vem, o texto possa ser outro.

A obra que ilustra o texto é O Combate entre o Carnaval e a Quaresma (1559), de Pieter Bruegel, o Velho.

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