Por Jan Cenek

Para fechar a série inaugurada nas colunas anteriores (Viva a Comuna!  e Tão longe, tão perto: 150 anos da Comuna de Paris), compartilho anotações e comentários sobre a Comuna de Paris, levante proletário que completou 150 anos e que colocou, pela primeira vez, a possibilidade concreta da emancipação do trabalho.

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A Comuna costuma ser pensada a partir da Guerra Franco-Prussiana e do cerco de Paris. É preciso pensar a Comuna a partir das movimentações que precederam a guerra. Em 1868, surgiram associações, comitês e clubes revolucionários onde os parisienses discutiram a sociedade, a economia e a vida. A ideia de Comuna nasceu nas reuniões populares.

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A Comuna de Paris foi construída de baixo para cima. A política era discutida nas associações, nos comitês, nos bairros, nos clubes, entre soldados e delegados. A radicalização da democracia era inaceitável para a burguesia; no limite, poderia por em xeque a propriedade privada dos meios de produção e o próprio capitalismo. Se é assim, é possível afirmar que, a partir da Comuna de Paris:

a) A burguesia se consolidou como classe reacionária

b) A iniciativa histórica cabe ao proletariado.

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A democracia na Comuna de Paris foi construída com armas nas mãos, existiu enquanto os comunardos puderam se defender do exército francês. Para radicalizar a democracia, o armamento vale mais que os discursos. Arma da crítica é impotente se separada da crítica das armas.

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Apesar da radicalização da democracia promovida pelos comunardos, ficaram tarefas democráticas por realizar: as mulheres nem votavam nem compuseram o Conselho da Comuna. Jogaram contra a curta duração da experiência e os limites do tempo histórico. Não se tratou apenas de uma debilidade da Comuna. Foi uma fronteira que os comunardos não atravessaram, apesar da heróica participação feminina, que se expressou, por exemplo, na União de Mulheres.

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John Merriman comparou os censos de 1866 e 1872. Informou que, em Paris, o total de sapateiros diminuiu de 24 mil para 12 mil, o total de alfaiates diminuiu de 30 mil para 20 mil, o total de marceneiros diminuiu de 20 mil para 14 mil. Os números dão ideia sobre o massacre ocorrido em 1871 e, também, sobre a composição da Comuna de Paris.

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Milhares de comunardos foram presos, deportados e mortos. A questão, para a burguesia francesa, era derrotar a Comuna e eliminar o exemplo, o que se expressou na condenação à morte de comunardos que já haviam sido assassinados. Raoul Rigault foi condenado à morte treze meses após ter sido assassinado. Eugène Varlin foi condenado à morte dezoito meses após ter sido assassinado. As condenações dos falecidos Rigault e Varlin dão ideia do ódio que a Comuna despertou na burguesia.

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Os comunardos foram criticados principalmente por:

a) Não terem marchado imediatamente sobre Versalhes, aproveitando a desorganização das tropas para depor o regime.

b) Não terem expropriado o Banco da França, cortando a fonte de financiamento do inimigo e usando os recursos para fortalecer a revolução.

Nada garante que um ataque a Versalhes a partir em 18 de março de 1871 seria vitorioso. Os comunardos tentaram depor o regime no começo de abril. Foram derrotados. Perderam lideranças. Tiveram que recuar. Já a expropriação do Banco da França seria um golpe duro nos anticomunardos. É estranho pensar que a Comuna realizou ações radicais como a derrubada da Coluna de Vendôme, que simbolizava o chauvinismo francês, mas não expropriou o banco da França. De qualquer forma, vale lembrar que depois e de longe, tudo é sempre mais fácil. Importante destacar, com Marx, que “a grande medida social da Comuna foi sua própria existência.”

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Apesar dos possíveis erros cometidos, a derrota dos comunardos não pode ser pensada apenas por questões internas. Surgiram Comunas em Lyon, Marselha, Toulouse, Narbonne e Saint-Étienne. Mas foram esmagadas rapidamente. A destruição da Comuna de Paris começou com a derrota dos levantes ocorridos em outras cidades. Os anticomunardos teriam dificuldades militares e de propaganda se tivessem que lutar em mais de uma frente.

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A radicalização da democracia foi, ao mesmo tempo, uma potência e um limite da Comuna de Paris. Exemplos:

a) O Comitê Central da Guarda Nacional coexistiu com Conselho eleito para gerir a Comuna. Houve desperdício de energias com diferentes instâncias remando em direções contrárias.

b) A ausência de comando e de disciplina militar cobrou um preço alto, apesar do heroísmo da Guarda Nacional na defesa de Paris, atrás das barricadas.

Os partidários do partido revolucionário como panaceia universal têm a solução na ponta da língua: faltou uma direção revolucionária. Mas a questão é mais complexa: como potencializar, ao mesmo tempo, a radicalização da democracia sem desperdiçar energia revolucionária remando em direções contrárias? É uma questão que a Comuna de Paris inaugurou e que as revoluções proletárias ainda não resolveram totalmente, se é que é possível resolver totalmente a questão.

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Em prefácio para o Manifesto Comunista, em 1872, Marx registrou que o texto continuava válido, mas que a Comuna de Paris havia provado que a classe operária não podia apenas tomar posse e colocar a máquina do Estado para funcionar para os seus próprios objetivos. Era a correção que devia ser feita no Manifesto a partir da experiência concreta dos comunardos, que haviam mostrado que a revolução proletária passa pela “destruição do poder estatal”. Marx viu na Comuna de Paris “a forma política finalmente encontrada”. Faltou dizer que a tal forma política havia sido não descoberta, mas desenvolvida, anteriormente, por coletivistas e mutualistas. “A forma política finalmente encontrada” nada mais era do que a sociedade auto-organizada de baixo para cima, em federações.

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Assim como Marx, Lenin também refletiu e escreveu sobre a Comuna de Paris. Ambos utilizaram a experiência do proletariado parisiense para pensar a questão do Estado.

Marx (A guerra civil na França – 1871): “As poucas, porém importantes, funções que ainda restariam para um governo central não seriam suprimidas, como se divulgou caluniosamente, mas desempenhadas por agentes comunais e, portanto, responsáveis. A unidade da nação não seria quebrada, mas, ao contrário, organizada por meio de uma constituição comunal e tornada realidade pela destruição do poder estatal, que reivindicava ser a encarnação daquela unidade, independente e situado acima da própria nação, da qual ele não passava de uma excrescência parasitária.”

Lenin (O Estado e a revolução – 1917): “Toda a vida econômica organizada à maneira dos correios, de forma que os técnicos, os fiscais, os contadores, como todos os funcionários públicos, recebam um vencimento que não exceda um ‘salário operário’ e sob o controle e a direção do proletariado armado – eis o nosso objetivo imediato. Eis o Estado, eis a base econômica da qual temos necessidade. Aí está aquilo que aniquilará o parlamentarismo, mantendo, no entanto, as instituições representativas – atualmente prostituídas pela burguesia – a serviço das classes trabalhadoras.”

Os trechos mostram diferenças entre os revolucionários sobre a questão do Estado. Marx: destruição do poder estatal. Lenin: o poder estatal controlado e dirigido pelo proletariado armado.

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A segunda tese da Internacional Situacionista registrou que “a Comuna foi a grande festa do século dezenove.” Associar um levante que foi aniquilado – com milhares de crianças, mulheres e homens assassinados – a uma festa é uma ideia estranha. Mas professores organizavam excursões para crianças conhecerem obras de arte nas casas abandonadas pelos burgueses que haviam fugido para Versalhes; as pessoas confraternizavam e cantavam; surgiram jornais, folhetos, panfletos, cartazes e manifestos; havia discussões em cada canto. A décima primeira tese da Internacional Situacionista registrou que “teóricos que examinam a história do ponto de vista onisciente divino, como a encontrada nos romances clássicos, podem facilmente demonstrar que a Comuna foi objetivamente condenada ao fracasso e não poderia ter sido consumada com sucesso. Eles esquecem que para aqueles que a viveram, a consumação já estava lá.” Era a vida reconquistada: politicamente, economicamente, coletivamente.

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O Manifesto da Federação dos Artistas registrou: “Trabalharemos cooperativamente tendo em vista a nossa regeneração, o nascimento do luxo comunal, futuros esplendores da República Universal.” Kristin Ross escreveu sobre o imaginário político da Comuna de Paris, discutiu o “luxo comunal” a partir do Manifesto da Federação dos Artistas. Para ela, o ideal estético dos artistas parisienses tinha a ver com o florescimento da beleza em espaços compartilhados, integrada à vida cotidiana. A arte deveria ser vivencial. O prático não seria separado do belo. O utilitário não seria separado do poético. A ideia de “luxo comunal” ajuda a pensar a Comuna como “a grande festa do século dezenove”.

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Marx se referiu à Comuna de Paris como um assalto ao céu. Naqueles intensos 72 dias, igrejas foram transformadas em clubes revolucionários, utilizados pela classe trabalhadora para discutir política, economia e a própria vida. John Merriman registrou que, em geral, os comunardos respeitaram as igrejas usadas para reuniões, mas com exceções: houve quem cantou canções obscenas, substituiu hóstias por brioches, usou água benta para lavar animais, bebeu vinho em cálices utilizados nas cerimônias. Também neste sentido, a Comuna foi uma festa.

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