Os ciganos na Alemanha nazi

Por João Aguiar

Os ciganos no III Reich (1933-39)

Segundo um especialista, na Alemanha do início dos anos 30, os ciganos seriam cerca de 26 mil (Evans 2006: 524). A principal recriminação que as autoridades nazis lhes atribuíam numa fase inicial prender-se-ia com o seu nomadismo, a sua tez escura e o seu estilo de vida que desprezaria a higiene, o trabalho e a propriedade. Nesta fase imediatamente subsequente à tomada do poder, a perceção das autoridades nazis relativamente aos ciganos não era muito diferente das autoridades estatais da Baviera no regime de Weimar ou de outros regimes europeus da época. A obsessão anti-semita ocupou sempre as preocupações do Führer, pelo que, durante algum tempo, os ciganos passaram relativamente invisíveis debaixo do radar rácico.

A situação mudaria a partir de um decreto do Ministério do Interior de 6 de junho de 1936, definindo campos especiais para ciganos. Ainda não eram campos de concentração no sentido convencional, já que as pessoas podiam entrar e sair dos campos e não havia ainda medidas punitivas. Segundo o mesmo especialista referido anteriormente, «a maioria dos ciganos continuou a viver em sociedade», quanto mais não fosse porque havia «uma elevada taxa de casamentos mistos com alemães» (idem: 525). Mas em 1936 os ciganos ainda eram classificados sobretudo na categoria dos desviantes, criminosos e associais. Ou seja, a classificação rácica num sentido mais restrito avançaria por um decreto de Himmler — o líder das SS — em dezembro de 1938. Aí seria ordenado que todos os ciganos fossem registados e examinados os seus antecedentes rácicos. Numa versão aparentada à ocorrida anteriormente com os judeus, os ciganos ficariam assim classificados num cartão de identidade como ciganos, ciganos mistos ou itinerantes não-ciganos. De acordo com os higienistas rácicos do regime, doravante os ciganos seriam inseridos num mapa rácico. O cartão de identidade dos ciganos puros passou a ter uma cor castanha, acrescentando-se uma risca azul para os casos mistos. Mais concretamente, os ciganos passaram a ser considerados como uma raça inferior e incapaz de se adaptar à vida em sociedade. Com o referido decreto de Himmler, os ciganos passaram a poder ser presos por itinerância em grupo.

Através deste exemplo dos ciganos, percebe-se como a classificação rácica antecede os subsequentes atos aniquiladores. E relembra como a classificação é sempre uma obsessão dos racistas. Sem este primeiro passo, nenhuma ação efetiva de genocídio dirigido pode ocorrer. A classificação racial é o racismo em movimento, transformando um preconceito numa realidade material. A nomeação de um grupo como uma raça com comportamentos definidos (e definitivos), a partir de aspetos superficiais externos hetero (ou auto) atribuídos, é a espinha dorsal do racismo. Tudo o que vier — e veio — a seguir deriva da criação de uma realidade rácica pelos racistas. Se as raças passam da mente para o terreno da vida social, para o racista torna-se real a vida social como uma guerra rácica. Os racistas criam as raças.

Os ciganos na Alemanha nazi

O extermínio (1939-45)

Se a classificação racial não implica necessariamente o extermínio, importa reforçar que este não é possível sem a pretérita ação de identificação de raças a preservar, escravizar ou aniquilar.

Num importante estudo sobre a Operação Reinhard — a edificação dos campos de extermínio de judeus em Belzec, Sobibor e Treblinka — o historiador Yitzhak Arad recorda o destino partilhado entre os judeus e grande parte dos ciganos. Em novembro de 1941, 5 mil ciganos e 20 mil judeus seriam deportados para o gueto de Lodz, morrendo muitos deles de tifo e os restantes seriam levados para o campo de extermínio de Chelmno em março e abril de 1942 (Arad 2018: 191). Segundo o mesmo historiador, em dezembro de 1942, Himmler ordenou o transporte de ciganos para campos de concentração. No complexo de Auschwitz-Birkenau, criar-se-ia um campo especial para ciganos e mais de 20 mil ciganos da Alemanha e de outras partes da Europa seriam ali gaseados. Na Polónia ocupada e não anexada ao Reich — burocraticamente denominada de Governo Geral — os ciganos seriam deportados para os guetos de judeus.

No gueto de Varsóvia, a obsessão classificativa rácica dos nazis levá-los-ia a obrigar os ciganos a usar uma braçadeira com a letra Z (de Zigeuner, cigano em alemão). Não bastava deportar toda aquela gente, enquanto preparavam o seu destino fatídico. A obsessão rácica iria ao ponto de até num território ínfimo e sobrepovoado ter de distinguir a tipologia dos em breve exterminados judeus e ciganos. Esse seria o seu destino comum: o gaseamento de cerca de 2 mil ciganos em Treblinka. «Os ciganos do Governo Geral que não foram enviados para Auschwitz ou para os campos da Operação Reinhard, foram mortos no local pela polícia local» (idem: 193) ou pelos Einsatzgruppen, grupos móveis de assassinos responsáveis por “limpar” de judeus, comunistas e ciganos o terreno no Leste europeu previamente conquistado pelas operações militares da Wehrmacht. Até 1945 terão sido assassinados 250 a 500 mil ciganos europeus, de uma população total de 1 a 1,5 milhão de pessoas (United States Holocaust Memorial Museum).

Os ciganos na Alemanha nazi

Os judeus foram os principais alvos da obsessão racial do regime nacional-socialista. Eram a anti-raça, considerados pelos nazis como os portadores e pioneiros de todas as ideias racionais e universais (Snyder 2016: 1 a 28). Ideias essas que eram consideradas como antitéticas à guerra racial que governaria a condição humana.

No quadro do delírio racial nazi, os ciganos eram uma raça inferior que pelo seu estilo de vida errante e pela conspurcação do sangue ariano representavam um perigo para a sobrevivência da raça dos senhores. No âmbito da comunidade germânica renovada que os nazis procuravam edificar, os casamentos mistos e a mistura de elementos rácicos antagónicos constituíam o grande perigo a evitar.

O exclusivismo rácico é o elemento simétrico da obsessão da classificação racial. No racismo excludente (Bernardo 2018: 879 a 901) um implica o outro. Se biologicamente não existem raças (DeSalle e Tattersall 2018) mas um infinito degradé fluido de cores e propriedades físicas anódinas, só uma colossal operação ideológica de classificação artificial pode criar as raças. E criar ou classificar as raças implica encerrar em guetos (mentais ou reais) populações com determinadas características privilegiadas pelos racistas para a determinação de comportamentos. O racismo nacional-socialista levaria ao extremo a obsessão classificatória e o exclusivismo rácico. Porém, ambas representam dois elementos capitais em qualquer racismo excludente.

Os ciganos na Alemanha nazi

Bibliografia

ARAD, Yitzhak (2018) – The Operation Reinhard Death Camps. Bloomington: Indiana University Press
BERNARDO, João (2018) – Labirintos do fascismo. 3ª edição. https://vosstanie.blogspot.com/2018/02/labirintos-do-fascismo-3-versao-joao.html
DESALLE, Rob e TATTERSALL, Ian (2018) – Troublesome science: The Misuse of Genetics and Genomics in Understanding Race. New York: Columbia University Press
EVANS, Richard J. (2006) – The Third Reich in Power 1933-1939. London: Penguin
SNYDER, Timothy (2016) – Black Earth: The Holocaust as History and Warning. New York: Tim Duggan Books

 

As imagens que  ilustram o texto são da autoria de Odilon Redon (1840-1916)

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here