Por João Bernardo

Meu caro João Aguiar,

O teu artigo em quatro partes Uma ou duas classes dos gestores? lembrou-me reflexões antigas e acrescento-lhes aqui algumas digressões.

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Apontaste uma insuficiência no modelo que proponho da classe dos gestores, agora apresento-te outra.

Desde que comecei a trabalhar nesse modelo deparei com uma dificuldade de classificação. Os polícias (ou policiais, para os brasileiros) e os soldados, no fundo, toda a base do aparelho repressivo, são o quê? Não são burgueses proprietários privados, porque as forças policiais e as forças armadas são uma instituição pública, e gestores também não são, porque não gerem nada. Dispõem de uma autoridade muito limitada e ocupam o nível inferior das cadeias de comando. E se bem que sejam assalariados — aliás, os soldados foram os primeiros assalariados, muito antes do aparecimento do capitalismo — parece-me impossível classificá-los como trabalhadores. É certo que, dilatando o modelo, poderia assimilá-los aos professores, enquanto produtores de mais-valia na formação da força de trabalho. Sob este ponto de vista, a ordem reinante seria um dos instrumentos da formação da força de trabalho.

Se assim fosse, no entanto, qualquer contribuição para a estrutura social existente faria parte desse processo de formação. Ora, não há praticamente nada que não contribua para a estrutura social, e não seria isso esticar demais o modelo? Um modelo que pretenda aplicar-se a tudo não explica nada. Esta perplexidade acompanha-me desde há quase cinquenta anos e, se não consegui resolvê-la, também não a esqueci.

No teu artigo, porém, tu indicas outra fragilidade na periferia do meu modelo e adiantas a possibilidade da existência de gestores dos processos ideológicos.

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A minha análise das classes sociais no capitalismo, tal como a desenvolvi e expus inúmeras vezes, funda-se exclusivamente nas relações de trabalho. Nessa análise não incluo a instância ideológica nem sequer o aspecto ritual da ideologia, os comportamentos culturais. A autoridade dos capitalistas, quer sejam burgueses proprietários privados quer gestores que administrem colectivamente, antes de incidir na concretização do processo de trabalho incide no próprio processo, que deve, portanto, ser considerado enquanto decurso no tempo. Muito mais do que uma apropriação de bens, a exploração capitalista consiste num controle exercido sobre o tempo. Como apresentei esta perspectiva de análise no artigo «O tempo — substância do capitalismo» (Cadernos de Ciências Sociais [Fundação Santo André], nº 1, 2005), para lá remeto quem estiver interessado.

Esta exclusão dos aspectos ideológicos é especialmente perceptível quando analiso os professores enquanto produtores de mais-valia. Não me preocupa o conteúdo temático das aulas, mas apenas as relações de trabalho em que os professores se inserem. Do mesmo modo, ao estudar as burocracias políticas ou sindicais não me interesso pelo seu posicionamento no leque das opções ideológicas, mas exclusivamente pela sua função de gestores. Além disso, quando um partido tem uma forte presença nas autarquias fica reforçado o carácter gerencial dos seus dirigentes. Quanto aos políticos profissionais oriundos dos sindicatos, eles formaram-se antes de mais como gestores de um aparelho económico, tal como Luciano Pereira e eu mostrámos no livro Capitalismo Sindical (São Paulo: Xamã, 2008). E o clero, em qualquer das Igrejas e crenças, independentemente dos rituais e das homilias pode ser analisado unicamente enquanto gestor de bens terrenos. Neste âmbito, a hipótese da existência de gestores ideológicos parece deveras estranha.

Resta o caso dos pequenos partidos e grupos de base estritamente ideológica, e são eles que tu referes quando escreves que «nas franjas do sistema político, à esquerda e à direita, a origem profissional dos seus dirigentes ou ativistas raramente advém da administração de empresas ou das direções gerais do Estado».

Ora, não posso afastar a dificuldade com o pretexto de que esses pequenos partidos e grupos seriam irrelevantes, numa época em que, pelo contrário, são eles a ditar as agendas diárias e a colocar as questões a que os grandes partidos tentam, bem ou mal, dar alguma resposta. Poderia contornar o problema dizendo que esses grupúsculos ideológicos são um verniz que oculta, ou pelo menos disfarça, uma estrutura de fundo, que é a dos departamentos universitários de ciências sociais. (Chamo ciências às ciências sociais apenas por convenção linguística, tal como chamo esquerda a essa que por aí existe.) Assim, remeteria o assunto para o modelo dos professores enquanto produtores de mais-valia ou, no que diz respeito aos directores dos departamentos, enquanto gestores dessa produção, cingindo-me à forma das relações de trabalho e excluindo o conteúdo ideológico.

Porém, se este subterfúgio é válido enquanto os grupúsculos se limitarem aos departamentos universitários, deixa de sê-lo quando ultrapassam esse âmbito — e é isto que hoje sucede com a expansão das redes sociais. Os grupos ideológicos já não têm fronteiras de antemão definidas e assumem o carácter de constelações e nebulosas, teias difusas que sustentam boatos e teorias de conspiração numa amplitude sem precedentes. É um novo campo que se coloca, e não permite enxotar a mosca indesejada.

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Talvez a solução possa ser encontrada na perspectiva de duas obras em que não deixei de reflectir desde que as li, e cujos autores, inspirando-se no modelo marxista de uma estrutura hierarquizada, invertem, no entanto, a ordem da hierarquia e atribuem à ideologia um carácter imediatamente determinante da economia. Não se trata de pretender, como no Romantismo, que o mundo seria movido por qualquer Ideia com I maiúsculo, mas de considerar a ideologia como fundadora de relações sociais directamente económicas, com implicações no plano das relações de trabalho. Em vez de uma análise ideológica da ideologia, essas obras consideram-na exclusivamente como estrutura social.

É assim que Colin Renfrew, em Prehistory. The Making of Human Mind (Londres: The Folio Society, 2013), observa que no noroeste do continente europeu, na época neolítica, as complexas estruturas de pedra usualmente chamadas megálitos foram erigidas por sociedades cujos traços arqueológicos não indicam a existência de qualquer organização em Estados nem sequer de diversificações sociais acentuadas. No entanto, calcula-se que os mais modestos desses monumentos teriam requerido, para o transporte e a erecção dos materiais, 10.000 horas de trabalho e os mais ambiciosos, como o de Stonehenge, teriam exigido dezenas de milhões de horas de trabalho. Situações similares parece terem ocorrido em Malta e mesmo em sociedade então isoladas das restantes civilizações mundiais, como sucedeu no sistema de construções existente no Canyon de Chaco, bem como na zona costeira do actual Peru (págs. 140-142). Para resolver o problema Renfrew defende a atribuição de «um papel mais activo à cultura material», explicando que «não é necessário considerar a cultura como algo que se limite a reflectir a realidade social; pelo contrário, ela participa no processo pelo qual essa sociedade se constitui». Em suma, «em vez de reflectirem uma ordem social pré-existente», aqueles monumentos do neolítico «ajudaram a criar essa ordem». No final deste processo teria ocorrido «o aparecimento de uma comunidade vasta e coerente, onde nenhuma existia antes» (págs. 144-145). É neste sentido, em que a ideologia religiosa é concebida como uma actividade social com consequências materiais directas, que a análise de Renfrew me parece útil para interpretar a hipótese exposta no teu artigo.

Numa perspectiva similar, Geoffrey W. Conrad e Arthur A. Demarest, em Religion and Empire. The Dynamics of Aztec and Inca Expansionism (Cambridge: Cambridge University Press, 1984), atribuem o carácter particular do expansionismo azteca e inca a noções estritamente ideológicas. «Defendemos que a religião pode, de facto, ser um elemento dinâmico nas transformações culturais», previnem os autores logo de início (pág. 3), e quando a obra está a chegar ao fim escrevem que «em vez de ser um epifenómeno, a religião desempenha na ascensão e na queda das civilizações um papel tão fundamental como as instituições sociais, económicas e políticas» (pág. 186).

«A contribuição original dos Méxicas para a evolução da civilização mesoamericana foi uma ideologia que integrou com êxito sistemas religiosos, económicos e sociais numa máquina de guerra imperialista», escrevem Conrad e Demarest (pág. 37). A noção de que a existência do mundo e, portanto, a sobrevivência do império dependiam de alimentar a divindade solar Huitzilopochtli com sangue humano determinou um programa de conquistas e capturas de inimigos, que pudessem ser sacrificados em rituais inimaginavelmente cruéis. No final do século XV, esses sacrifícios envolviam anualmente, em média, quinze mil vítimas ou mais ainda. E como as guerras desviavam parte da população da actividade directamente produtiva e, ao mesmo tempo, dizimavam uma percentagem crescente dos povos tributários, em vez de os empregar em actividades agrícolas, a situação económica do império tornava-se cada vez mais precária, um declínio que era interpretado em termos ideológicos como um enfraquecimento de Huitzilopochtli, levando a ampliar as acções militares para obter um número ainda maior de vítimas cujo sangue revigorasse Huitzilopochtli e, portanto, agravando as condições da produção material, numa espiral tendente ao colapso (págs. 47 e segs.). As escassas centenas de espanhóis encontraram a civilização azteca envolvida nestas agudas contradições, e puderam liquidá-la tanto mais facilmente quanto se aliaram a povos que eram alvo sistemático das capturas de vítimas para os sacrifícios. A este conjunto de circunstâncias somava-se o facto de, também pelo mesmo motivo exclusivamente ideológico, os aztecas deverem aprisionar os inimigos vivos, para que posteriormente os pudessem matar nos rituais sangrentos. Assim, como sublinha Nigel Davies (The Aztecs, Londres: The Folio Society, 2000), as armas usadas pelos guerreiros aztecas destinavam-se a derrubar sem matar (págs. 202 e 270), o que os deixou em situação de inferioridade perante os espanhóis que, esses sim, dispunham de armas estritamente mortíferas. Para os aztecas, resume Davies, os conflitos armados eram «só em parte uma guerra, sendo de resto um processo decorrente do ritual e da magia» (pág. 271).

Quanto aos Incas, o «culto dos antepassados», escrevem Conrad e Demarest, «constitui o verdadeiro cerne da religião inca» (pág. 101). Ora, a atribuição de uma vida real às múmias dos imperadores defuntos — que era uma operação puramente ideológica — levou a que cada múmia continuasse a dispor da corte e do conjunto de bens que esse imperador possuíra antes de morrer, num processo que se multiplicava com a passagem das gerações e levava o imperador vivo (quero dizer, biologicamente vivo) a expandir o império para conseguir uma base económica própria, deixando o seu sucessor com uma versão agravada do mesmo problema (págs. 113 e segs.). «À medida que ia aumentando o número dos reis falecidos e se ampliava o seu património privado, aumentava também o montante de trabalho destinado a servir os mortos» (pág. 122). Quando os espanhóis chegaram, a civilização inca estava tão minada por esta contradição que se desmoronou com facilidade.

Nestes três casos, dos megálitos e outras grandes construções do neolítico, dos sacrifícios sangrentos dos aztecas e da multiplicação de servidores das múmias nos incas, a ideologia deixou de ser uma superestrutura e passou a exercer funções determinantes na infra-estrutura material da sociedade. Ora, eu analisei uma situação semelhante no capítulo do Labirintos do Fascismo dedicado ao nacional-socialismo enquanto metacapitalismo. Por razões estritamente ideológicas, supondo que os eslavos eram sub-humanos e que os judeus eram uma anti-raça, os nacionais-socialistas liquidaram uma parte muito considerável da força de trabalho mais qualificada e nos territórios soviéticos de Leste arrasaram instalações industriais e comprometeram a produção agrícola. Assim, não só implantaram um sistema económico contrário à dinâmica capitalista da mais-valia relativa, e mesmo a qualquer tipo de mais-valia, como o fizeram no preciso momento em que a guerra mais necessário tornava o aumento da produtividade. «O predomínio dos delírios raciais sobre os interesses económicos reais, que se observou ao longo dos anos de guerra entre os fiéis do Führer, revela a hegemonia da instância ideológica na estrutura de poder nacional-socialista», escrevi no referido capítulo de Labirintos do Fascismo. «E uma situação deste tipo, completamente oposta ao que tem sucedido em qualquer das formas correntes do capitalismo, parece indicar o surgimento de um metacapitalismo».

Foi à luz destes exemplos que li o teu artigo e comecei a pensar no que se passa hoje, quando a ideologia a que te referes extravasa muitíssimo o âmbito dos departamentos universitários ou dos grandes partidos e, através das redes sociais, condiciona opiniões e comportamentos. Mencionaste no teu artigo «o facto de nas franjas do sistema político grande parte da atividade dos seus dirigentes se relacionar quase exclusivamente com aspetos não materiais e não económicos», mas não será que nestes casos a ideologia fundou relações sociais de cariz directamente material e económico? Basta pensar na ecologia e nas quotas dos identitários.

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Vivemos numa época em que, no plano ideológico, se constituíram dois mundos opostos.

De um lado, existe uma racionalidade científica em que prevalece o critério da experimentação laboratorial. Não se trata já de saber se dadas noções correspondem ou não a um corpo doutrinário ou mesmo se são plausíveis, mas de testá-las empiricamente. A grande ruptura ocorreu na transição do século XIX para o século XX, quando a matemática forneceu uma utensilagem mental que permite ir além, ou até ir em direcção contrária, às evidências imediatas resultantes dos nossos cinco sentidos, sobretudo do sentido prevalecente, a visão. E em todos estes casos as verdades matemáticas que no plano dos sentidos se afiguram absurdas são demonstradas como correctas pelas suas consequências práticas. A ciência, tal como hoje é entendida, resulta do triunfo da prática laboratorial — e da tecnologia que dela resulta e a comprova — sobre uma lógica imediata. Por isso Niels Bohr disse um dia, ilustrando o conflito entre a matemática e a intuição comum, que «quem não fica perplexo quando depara pela primeira vez com a física quântica certamente não a compreendeu» (citado em Werner Heisenberg, Physics and Beyond, Nova Iorque: Harper & Row, 1971, pág. 206). E Bohr explicou: «Não existe um mundo quântico. Existe apenas uma descrição física quântica abstracta. É errado pensar que o objectivo da física seja descobrir como a natureza é. A física ocupa-se apenas do que podemos dizer acerca da natureza» (citado em Jim Baggott, The Quantum Story. A History in 40 Moments, Oxford: Oxford University Press, pág. 110). Richard Feynman insistiu ainda mais radicalmente no tema quando escreveu: «Acho que posso dizer com segurança que ninguém compreende a mecânica quântica» (The Character of Physical Law, Londres: British Broadcasting Corporation, 1965, pág. 129). E, apesar da sua relutância ao rigor matemático, Feynman esclarecera já o fundamento da questão ao definir que «a matemática é uma linguagem junto com um raciocínio; é como uma linguagem junto com uma lógica» (Feynman, op. cit., pág. 40). Devo aqui acrescentar que a validade dessa lógica é demonstrada pela sua eficácia. Toda a nossa vida corrente assenta num complexo tecnológico estabelecido nestes termos.

De outro lado, porém, formou-se no plano ideológico um universo avesso à ciência e à experimentação. É aqui que surgem as formas mais patentes de irracionalismo. A ciência foi substituída por uma narrativa, ou melhor, por uma pluralidade de narrativas conflituais. Alan Sokal e Jean Bricmont escreveram sobre o choque destes dois universos mentais um livro arrasador e que todos deviam ler (Intellectual Impostures. Postmodern Philosophers’ Abuse of Science, Londres: Profile Books, 1998), mas que não arrasou nada porque o discurso racional e científico não é convincente para quem o considera simplesmente como uma outra narrativa. Lucie Irigaray, conhecida pontífice do feminismo pós-moderno, declarou que a equação E=mc2 é sexista porque privilegia a velocidade da luz relativamente a outras velocidades, como dizer?, menos velozes. É hoje um lugar-comum nesses meios considerar a matemática como característica da masculinidade branca e tu mesmo, João, na 4ª Parte do teu artigo citaste alguns casos risíveis. Com este método toda a ciência fica transposta para um conjunto de narrativas, e no plano das narrativas cada um escolhe a sua, anulando-se a eficácia comprobatória da experimentação laboratorial.

Por exemplo, quando alguns cientistas, analisando a múmia de Ramsés II, descobriram que ele havia morrido de tuberculose, uma celebridade nos meios pós-modernos, Bruno Latour, considerou um grave anacronismo atribuir a morte de um faraó egípcio a um bacilo que Koch só descobrira em 1882. «Antes de Koch», escreveu ele, «o bacilo não tinha uma existência real» (citado em Sokal e Bricmont, op. cit., págs. 88-89, n. 123). Esta hilariante redução da realidade a narrativas opcionais ilustra tudo.

É assim que, evocando situações que hoje se tornaram quotidianas, a ilusória passagem de sexo a género é na verdade a substituição da biologia por uma narrativa ou mesmo, nos casos extremos, a utilização de uma cosmética biológica como elemento de uma narrativa. Com efeito, pode recorrer-se a tratamentos hormonais para fazer a barba crescer ou, pelo contrário, desaparecer e para alterar outras aparências físicas mais ou menos aparatosas, mas não se implantam ovários nem próstatas, por isso os sexos permanecem os mesmos, tal como uma cirurgia estética que estique a pele não transforma uma velha numa jovem. Estas cosméticas vigoram apenas no plano das aparências, reduzindo-se a um artifício de linguagem e sendo uma componente da narrativa, não da biologia. Uma situação comparável ocorre com o movimento negro em vários países, e a elasticidade da definição de quem é, ou não é, negro ora faz prevalecer traços físicos ora, pelo contrário, valoriza comportamentos sociais. Não é uma questão de biologia, mas de narrativa.

Como sucede em todo o racismo — e não esqueçamos que os identitarismos são modalidades de racismo — salta-se da biologia para a cultura e da cultura para a biologia consoante mais convém. Conforme for útil para as quotas, as promoções e o status ou se reivindica o sexo ou se constrói uma narrativa de género, ou se é de uma cor ou de outra. E como é negada a validade da comprovação empírica de factos, a aleatoriedade da narrativa permite tudo e mais alguma coisa.

Tal como as identidades são opcionais, as narrativas são-no também. Deixando de haver factos exteriores verificáveis empiricamente, qualquer afirmação torna-se válida simplesmente por corresponder a uma narrativa. O estilo e o tipo de linguagem que os autores pós-modernos usam é o mais adequado a esse conteúdo, porque em vez de conceitos claros, passíveis de definição rigorosa, empregam-se termos difusos, sem limites semânticos e de uma ambiguidade inata.

Ora, a multiplicidade ilimitada de identidades exprime-se numa pluralidade conflitual de narrativas. Quanto mais identidades surgem, mais agudas são as fricções entre elas, e como são recusados os testes empíricos da razão científica, nenhuma narrativa pode invalidar as restantes. A racionalidade da ciência está intimamente ligada à noção de universal, por isso o tribalismo — e os identitarismos são tribalismos — não pode deixar de ser anti-racional. La boucle est bouclée, o círculo fecha-se e converte-se num círculo vicioso.

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Não é admissível que uma mesma classe social sustente aqueles dois universos mentais, o da ciência e o das narrativas, já que uma classe, pela sua própria definição, requer a permanente mobilidade interna. Ora, é impossível transitar indiferentemente entre universos distintos e separados. Posso supor, então, que eles correspondam a duas classes distintas. Uma dessas classes seria a dos gestores tal como têm sido classicamente entendidos e como eu os caracterizo, aqueles que consideram a eficácia da experimentação como critério do seu desempenho profissional e que usam como instrumento a matemática ou o raciocínio de inspiração matemática.

A outra dessas classes seria aquela a que tu chamas gestores ideológicos, os xamãs das narrativas, que podemos considerar como sacerdotes da nova religião laica. Deus foi destronado pelo Iluminismo, mas a racionalidade fundada pelos iluministas cedeu agora o terreno à futilidade. O Lego, com as suas peças intercambiáveis, fornece o modelo ideal da sociedade pós-moderna, e em vez do super-homem nietzschiano afirmou-se a hegemonia dos ratos Mickeys.

O mais aterrador é que esses gestores ideológicos usam os meios técnicos informáticos e médicos criados pelos gestores científicos para erigir com eles um mundo oposto, estruturado pelas redes sociais e pela cosmética biológica. Tal como nos exemplos evocados por Renfrew, Conrad e Demarest, e tal como no metacapitalismo instaurado pelos nacionais-socialistas nas regiões ocupadas da Polónia e da União Soviética, a ideologia tornou-se uma forma de organização das relações sociais, com implicações directamente económicas.

A grande questão é a de saber como e porquê essa transformação foi possível, mas isso está muito além das pretensões deste artigo.

E, meu caro João, se for exacta a tua constatação da existência actual de uma segunda classe de gestores e se estas minhas reflexões tiverem algum sentido, então ter-se-ia efectivado o grande receio dos revolucionários da década de 1930, e os gestores — na sua nova modalidade de gestores ideológicos — ter-se-iam revelado capazes de dar corpo a um modo de produção que substituiria o capitalismo pela barbárie. Aos gestores da produtividade, do desejo de abundância e da aspiração ao universal suceder-se-iam os gestores do arcaísmo, do definhamento e do tribalismo. Aos gestores do racionalismo suceder-se-iam os gestores da futilidade anticientífica. Ora, o comunismo, tal como Marx o entendeu e nós o entendemos, tem como condição o acúmulo de conquistas feitas no capitalismo. É um passar além, rumo a uma sociedade que satisfaça todas as necessidades; não o retrocesso para a penúria e o tribalismo, sob a miragem do paraíso perdido.

A ser verdade, isto confere um tom ainda mais sombrio à minha classificação dos identitários e dos ecológicos como fascistas do pós-fascismo.

3 COMENTÁRIOS

  1. Durante os anos em que estudei a Grécia antiga me interessei muito pelos primeiros usos da escritura por estas sociedades. O que levava aos integrantes da elite a exibir seus nomes próprios em tumbas e estátuas dedicadas aos deuses? Minha conclusão é que a escritura pública foi utilizada como ferramenta de disputa política, em um contexto de divisão “vertical” da sociedade, entre facções compostas por familias poderosas e sua base clientelar. De fato, desde o fim do período micênico os grupos humanos da península parecem ter sofrido uma forte regressão demográfica e técnica (perdeu-se a escritura Lineal B, entre outras coisas). Neste ambiente, o modelo socio-econômico que me pareceu mais adequado para entender estas comunidades, do chamado período arcaico, foi o dos big men, desenvolvida por Sahlins.
    Existem dois aspectos interesantes deste modelo. Primeiro que a disputa pela função de líder, de big man, se dá especialmente no campo da performance: habilidades atléticas, militares, sabedoria, oratória, etc. Como se tratam de comunidades pequenas, a posição de liderança tem uma mediação muito direta com a base social, e a confiança desta deve ser conquistada de forma recorrente. Em segundo lugar, este modelo é adequado para economias pouco produtivas, onde não há grandes excedentes a serem coordenados ou centralizados. O big man tem também como função certa direção de uma economia de baixa produtividade, o que essencialmente quer dizer uma negociação constate com os produtores para, por exemplo, convencê-los à retardar o consumo de bens para enfrentar tempos de escassez, coordenar as trocas com outras comunidades, integrar as pequenas unidades produtivas familiares, sob o risco de ser alvo da ira de sua base social.
    O contraste é claro no caso da península grega, onde ocorreu a passagem surpreendente de uma economia de “palácios”, que utilizava o Lineal B para controlar a centralização econômica exercida pela cidades, exuberantes, para uma economia de pequenas comunidades de produtores rurais pouco integrados.

    Faço este comentário sobre o mundo antigo, na linha do que o João Bernardo mencionava em seu texto, também porque ao ler a série do João Aguiar não pude deixar de pensar em certas bases materiais e comunitárias de um setor que aqui na América Latina foi sendo integrado às camadas baixas gestoriais. São as lideranças de movimentos sociais, lideranças comunitárias, etc. E estes setores sociais, relegados à baixa produtividade capitalista, apresentam também uma mistura muito forte entre economia e política, de forma que a racionalidade gestorial “clássica” não pode funcionar sem turbulências. Para dar um exemplo argentino, basta pensar na relação entre o futebol e a política: Mauricio Macri é ex-presidente do país e do clube Boca Juniors. Hugo Moyano, a figura maior do sindicalismo argentino, é presidente do clube Independiente, e seu sindicato, Camioneros, tem também seu próprio clube de futebol profissional. É como se a política jogasse um papel mais forte na economia do que em outros países com governos formados pelos gestores capitalistas racionais.

    Estas observações me levam a coincidir com a hipótese, ou tese, a respeito do papel desempenhado por “gestores ideológicos” num contexto de baixa produtividade econômica. E se a democracia formal, as campanhas e os períodos de eleições, era o espaço da performance que permitia às massas dirimir as diferenças entre as facções capitalistas no século passado e no começo deste, talvez a internet seja de fato o cenário onde esta disputa esteja hoje realmente ocorrendo e quem sabe em pouco tempo não termina de substituir completamente os mecanismos da democracia que hoje conhecemos.

    Minha pergunta para ambos Joãos, é a respeito desta integração de lideranças populares, comunitárias, etc, nas camadas gestoriais no contexto europeu. Aqui na América Latina é um processo que na história recente esteve muito vinculado com a esquerda, e às organizações políticas que foram tentar formar quadros (ou cooptá-los) nestes setores da baixa produtividade (ou mais-valia absoluta), e portanto estas camadas gestoriais costumam estar mais próximas do chamado “progressismo” e das políticas intervencionistas do Estado na economia. Não é difícil ver que na Europa as coisas são diferentes, mas não consigo vislumbrar se há um processo análogo, talvez com outro signo ideológico, de ascensão social.

  2. Crítica à crítica irracional do irracionalismo

    O texto sofre de um mesmo equívoco sempre presente nos artigos do Passa Palavra, com sua origem no livro Labirintos do Fascismo.

    Há um claro ponto fraco.

    Embora não comprometendo o brilhante, perspicaz e necessário conjunto da análise, sem superá-lo não se fecha a compreensão das formas do fascismo contemporâno.

    Se no campo estritamente político (da Ideologia e sua expressão no âmbito da arte e cultura) a abordagem e as conclusões são perfeitas, na esfera econômica nem tanto.

    Como ele mesmo deixou claro, Marx não era marxista. E nem poderia ser, ao se considerar os marxistas de sua época. Isto para não citar os atuais.

    Marx notara que muitas leituras de sua teoria se cristalizavam num dogma.

    Por exemplo: “Ora, o comunismo, tal como Marx o entendeu e nós o entendemos, tem como condição o acúmulo de conquistas feitas no capitalismo.”

    Em carta à redação de uma publicação russa da época, Marx esclarece que sua análise se baseava em circunstâncias sociais e históricas bem específicas, não sendo uma regra geral o socialismo surgir de sociedades industriais avançadas:

    《… o meu crítico quer absolutamente transformar o meu esboço histórico da génese do capitalismo na Europa ocidental numa teoria histórico-filosófica da marcha geral – fatalmente imposta a todos os povos, quaisquer que sejam as circunstâncias históricas em que se encontrem – para chegar em último lugar a essa formação económica que garante, com a maior impulsão dos poderes produtivos do trabalho social, o desenvolvimento mais integral do homem.》

    O dogma é um tipo de irracionalismo. Só o dogmatismo explica uma apologia da mais-valia relativa como parâmetro da luta política emancipatória.

    A mais-valia relativa é tributária da mais-valia absoluta na periferia do sistema.

    Assim como não haveria revolução industrial na Inglaterra, sem a acumulação primitiva promovida através do saque colonial.

    Além disto, a mais-valia relativa, portanto a produtividade, é o cerne das contradições irracionais do modo de produção Capitalista.

    Por deprimir a taxa de lucro por unidade produzida, com a consequente crise de superprodução, que apenas é superada por maciça destruição de forças produtivas.

    Dito de outra forma: através da mais-valia relativa as forças produtivas são desenvolvidas apenas para serem destruídas, sob gigantesco custo social através de guerras e genocído.

    Historicamente esta é a cadela econômica parindo os vários tipos de fascismo.

    Para compreender a gênese e metamorfose do fascismo atual, a contribuição do Passa Palavra, e em especial de João Bernardo, tem sido fundamentais.

    Nesses últimos dias circula na web um vídeo da cerimônia oficial de comemoração dos 100 anos do PC da China, encerrada com “A Internacional”, na Praça Tiananmen em Beijing.

    Do que se trata, senão de uma cerimônia fascista?

    A industrialização da China foi resultado das contradições do Capitalismo em processo de globalização.

    Pelo irracionalismo da mais-valia absoluta extorquida ao trabalhador chinês, gestores racionais do Capitalismo tentaram superar a crise de produtividade no centro do eistema.

    Mas não há planejamento racional viável na gestão do Capitalismo, apenas contenção de danos – por assim dizer.

    O neoliberalismo parece ser a última etapa do Capitalismo. O nazi-fascismo foi um anúncio desse esgotamento do Capitalismo.

    Sendo o atual modelo chinês parte do desenvolvimento de um novo modo de produção, cujo ensaio inicial se deu na URSS stalinista.

    Este novo regime unirá em si o aspecto mais desumano do Capitalismo neoliberal com o mais atroz do Capitalismo de Estado, combinando a extrema alienação das relações entre os homens com um controle social sem precedentes.

    Será o fascismo do século XXI.

    Sem nos libertarmos de todo tipo de dogmatismo, não chegaremos a compreendê-lo, quanto mais estabelecer alternativas.

  3. Primo Jonas,

    Limito a minha resposta a duas questões

    1) Na sociedade europeia a mobilidade social ascendente é muito escassa, comparada com o que sucede na América Latina, nomeadamente no Brasil, um país que conheço bem porque foi o meu por adopção. Os sindicatos são uma das vias dessa mobilidade social ascendente, basta ver como foi formado o PT. Depois, os movimentos sociais somaram-se, ou em parte substituíram-se, aos sindicatos como canais de mobilidade social. Um dos artigos mais importantes que o Passa Palavra publicou, «Entre o fogo e a panela», escrito há onze anos, foi um dos primeiros alertas para esse processo de burocratização dos movimentos sociais, com a consequente recuperação e assimilação pelo capitalismo. Uma nova etapa nessa conversão dos movimentos sociais em canais de ascensão social alcançou-se com a simbiose entre o MST, ou acessoriamente o MTST, e alguns departamentos de universidades públicas. A editora Lutas Anticapital é uma das mais recentes, e bem fornecidas, expressões desta simbiose. Este processo de mobilidade social ascendente, ou seja, de renovação das elites, é uma das condições da vitalidade do capitalismo, e todos os gestores — baixos, médios e altos também — promovidos por este processo integram-se claramente nos gestores clássicos, que utilizam a racionalidade económica.

    Quanto à Argentina, o meu conhecimento resume-se ao que estudei sobre a modalidade peronista do fascismo, mas aí foi fundamental o papel dos sindicatos. Não conheço outra modalidade de fascismo em que os sindicatos tivessem desempenhado um papel tão importante, nem sequer nos primórdios do fascismo italiano.

    Os sindicatos tiveram também uma importância muito considerável no México, e continuam a tê-la, mas aí, tal como noutros países da América de língua espanhola, uma das maiores, se não a maior via de mobilidade social ascendente é o tráfico, e nenhum governo se sustenta sem uma articulação com o tráfico. Ora, o tráfico só se distingue do resto do capitalismo por operar com uma mercadoria ilegal, como outrora os bootleggers nos Estados Unidos.

    Em todos estes casos, os sindicatos, os movimentos sociais e o tráfico geram gestores exclusivamente providos de uma racionalidade económica.

    2) Quanto à fusão entre o futebol e a política, ela não é exclusiva da Argentina, e na Europa o nome de que primeiro me lembro é o de Berlusconi, que aliás intitulou o seu partido com um grito das torcidas futebolísticas italianas. Em Portugal também o Futebol Clube do Porto está muito ligado aos meios políticos da região norte do país, e noutros lugares da Europa sucede o mesmo. Mas só por uma triste perversão da palavra é que se chama desporto ao futebol. O futebol junta duas dimensões.

    Primeiro, é uma colossal máquina económica, muito ligada à economia paralela através dos negócios de lavagem de dinheiro. Tudo ali obedece à racionalidade capitalista.

    E, em segundo lugar, as torcidas são um dos mais férteis viveiros de milícias fascistas informais, em todos os países europeus que conheço, mas de maneira particularmente flagrante em Inglaterra.

    Porém, ao futebol enquanto campo de articulação entre a política e o espectáculo de massas acrescentou-se nas últimas décadas outro campo, o das redes sociais. Sem elas não haveria Trump nem Bolsonaro, e aliás não existe hoje no mundo ocidental nenhum chefe político, ou mesmo subchefe, que não faça do Twitter o instrumento privilegiado na comunicação de massas. Ora, é precisamente este campo das redes sociais que serve de infra-estrutura aos gestores ideológicos. Em que medida se criará assim uma margem de contacto entre os dois tipos de gestores, só o futuro dirá.

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