Por Jorge Luiz

O país que queima na mesma semana Borba Gato e a Cinemateca é um país democrático. É esse país que queremos? A estátua, que sofreu danos superficiais, passa bem, diuturnamente guardada pela polícia tucana. Já não podemos dizer o mesmo da Cinemateca. Triste país onde os incêndios acidentais são os mais bem planejados.

Essa frase de abertura será lida como piada ou, mais seriamente, provocação. Nela respira algo da conjuntura, em meio a tanta fumaça. Comecemos então por este vício de leitura: uma certa esquerda, presa na democracia que ela mesma ajudou a erguer, se recusa a abrir os olhos e sonha sua “Novíssima República”. Restaurado Lula, refeita a democracia: esta mesma onde tudo já queimava. Seu horizonte é limitado. Essa esquerda condena tudo que não é espelho: calça coturno de policiais nos anarquistas e despreza os negros insubmissos; alimenta teorias de conspiração, vendo “o jogo da direita”, o dedo da CIA e “provocação” em tudo. É a esquerda que temos e com ela caminharemos em meio à fumaça. Mas em que direção?

Os que queimaram a estátua, o grupo Revolução Periférica, seguiram quase sozinhos uma linha de pensamento coerente e dela extraíram um gesto. Ao se apresentar voluntariamente à polícia, Paulo Roberto, o Galo, integrante do grupo, explicou sua ação numa breve declaração. Cito: “Àqueles que dizem que tem que fazer pelas vias democráticas a gente buscou fazer isso, abrir o debate para que esse debate ocorra e as pessoas agora possam decidir se elas querem uma estátua de 13 metros de altura que homenageia um genocida e um abusador de mulheres. É isso que a gente sempre quis desde o começo: abrir o debate e nada mais que isso”. Nesse sentido, o incêndio da estátua foi bem-sucedido. Mas como vai o debate aberto?

Para uma certa esquerda, não há debate: há somente acusação. São os bufões do PCO, braço cômico do PT, que batem em tucanos pingados, num ataque de machice ensaiado; enquanto isso, estigmatizam os black blocs e querem colaborar com a polícia contra aqueles a quem chamam de policiais infiltrados. Acima de tudo, essa esquerda não gosta de quem, no dia da sua passeata, lhe rouba a cena. Detestam que um punhado de “desconhecidos” sem crachá nem carteirinha possa lhes fazer sombra. É a esquerda “você sabe com quem está falando?”, esquerda condecorada: pesada de tantas medalhas. Agora somos todos, aos olhos deles, policiais infiltrados. Talvez estejam se vendo mesmo no espelho, com suas bandeiras vermelhas.

Do lado direito, verde e amarelo, outras bandeiras. É preciso reconhecer: os partidários de Borba Gato pensam coerentemente. São herdeiros legítimos dos bandeirantes e dos integralistas. Adoradores de estátuas, encontraram uma estátua viva para chamar de sua: o bandeirante ressurreto feito presidente. Eles sabem o país em que vivem e sabem o país que querem. Borbaminions, adoradores de Borbanaro: são um problema a ser enfrentado.

Dessa não saíremos sozinhos. Caberia à esquerda adoradora de Lula ter mais respeito à pluralidade de táticas, visões e opiniões. Não sei se são capazes disso, mas alguns serão. Não adianta gritar, ad aeternum, “infiltrados! Infiltrados!” ou “identitários! Identitários!”. É verdade que no caldo de cultura da politização brasileira que surge nos anos 2000 há muito empoderamento estético. Que tem seu valor, mas tem limites próprios. O ato da queima da estátua carrega algo disso, mas representa um passo à frente.

Como resultado de um processo marcado pelo empoderamento estético, a queima da estátua é simbólica e espetaculosa. Imagem, foi feita para ser filmada e fotografada. Imagem bem escolhida, toca fundo num nervo histórico e marca o tempo. Pode ser inspiração para tempos mais corajosos. Mas essa imagem é também ação, gesto: ato heróico contra um herói falso. Na realidade depois da imagem, a prisão. Por isso a solidariedade é necessária. Por isso dizer: liberdade para Galo e Géssica! Por isso tornar isso verdade.

A esquerda antiga, que é a que temos, talvez nem reconheça mais um passo a frente. Escolada em dançar o minueto nos salões da burguesia, num dois-pra-lá-dois-pra-cá que não vai nem vem, ela perdeu o pé. Ainda assim, estamos juntos e separados, em meio à fumaça. No dizer de uma suspeita alemã, a queima do bandeirante pode ser a passagem do protesto à resistência: enquanto uma certa esquerda protestava, a Revolução Periférica resistiu. Passagem do bastão? Revezamento da tocha? É cedo para dizer. No mais, não são Jogos Olímpicos e cabe lembrar que aqui ou em Tóquio tudo corre sob estado de sítio.

A democracia, Canudos que o diga, sempre foi isso: uma fogueira só. Iremos, com ou sem Lula, seguir pulando essa fogueira como se de água fosse, ou vamos nos limpar com outro fogo? É isso que a gente sempre quis desde o começo.

 

As fotografias que ilustram são de Fabienne Fillipone, Edward Kucherenko, Jacek Dylag e Artiom Vallat.

15 COMENTÁRIOS

  1. Inacreditável que uma ação que resultou em 4 prisões, sendo uma delas de uma pessoa que nem sabia onde estava se metendo, possa ser considerada “um exemplo”. Se o é, é o exemplo do que não fazer, e de quais rastros não deixar.

    A invalidez política da ação já foi bem relatada aqui(https://passapalavra.info/2021/07/139283/), não vou me alongar, mas reforço que no segundo ponto, no quesito segurança, os ativistas envolvidos na ação foram amadores e irresponsáveis. Ainda assim, minha solidariedade aos 4: Paulo “Galo”, Gessica, Bil e Thiago.

  2. Fico puto com comentários como o de Alan Fernades que só vê os erros óbvios da ação, mas ao invés de apoiar aliados faz um serviço pio do que a polícia que os reprime abertamente. A polícia ao menos tem o mérito de deixar claro o que quer.

  3. Ricardo, manifesto minha total solidariedade a todos os 4 detidos na ocasião. O alerta em segurança digital é obviamente necessário para não produzir outros mártires. Não se faz lutas com mártires. Quero meus companheiros todos livres para lutar e viver. No mais, você mesmo admite que são erros óbvios, admitidos pelo próprio grupo, sem um pingo da minha ajuda. Um abraço.

  4. Não entendo a indignação de Ricardo. A intenção do ato era um debate, e aqui está um debate, mesmo que não seja o debate pretendido pelas pessoas que incendiaram a estátua.
    A função óbvia das forças de repressão é reprimir, todos sabem disso e por isso deve-se discutir medidas de segurança para evitar prisões e porradas. A intenção do ato da queima do Borba Gato foi gerar debate, gerar comoção, gerar revoltar, enfim, aparecer nas mídias. É claro que a polícia ia atrás e não ia perdoar.
    Em ações tão simples como entregar panfletos, colar lambe-lambes, pendurar faixas ou grafitagem corre-se o risco de se fuder muito e por isso é preciso sempre estar atento para não ser pego, porque sabemos que a polícia está aí para uma só função e quando se trata de ação política esses policiais bolsonaristas vão pra cima com toda fome que têm.
    Em tempos de vigilância excessiva, com uso de tecnologias mais elaboradas do que as que dispomos, e em tempos de Bolsonaro, não podemos nos dar ao luxo de fazer uma ação espetacular para aparecer em redes sociais. É preciso ter foco, planejamento e voar abaixo do radar. Não é fazer “um serviço pio do que a polícia que os reprime abertamente”, mas constatar o óbvio: a polícia oprime abertamente, então não facilitemos.

    E liberdade e solidariedade aos 4!

  5. Acredito que fui precipitado devido à irritação que ficamos frente a imobilidade. Arriscamos cair no “qualquer coisa serve”. Esta ação não poderia ter sido mais desastrosa.

  6. O fogo foi ateado na estátua do capitão do mato mas se propagou bem além, queimando neurônios, incendiando ânimos, incinerando vaidades e reduzindo a cinzas as análises estereotipadas.

    No artigo anterior as chamas forjaram uma curiosa peça surrealista, ao caracterizar a estúpida escultura de Borba Gato como “o único monumento de arte popular de São Paulo”.

    Um dos comentários informa ter a obra servido de inspiração a um outro mosaico, adornando uma área de descanso da PM paulistana (versão atual do capitão do mato) onde esta se recompõe entre suas matanças de rotina.

    Outros consideram a ação como típica de uma Esquerda derrotada e impotente, além de amadora.

    Celso Lungaretti comparou a ação com o plano abortado de explodir a estátua de Duque de Caxias, durante a Luta Armada, mas ele, convenhamos, já fez declarações bem mais lamentáveis…

    Para Aldo Rebelo, Ministro da Defesa quando do Golpe de 2016 e então filiado ao PCdoB, trata-se da guerra híbrida contra o Brasil, um ato cometido por filhinhos de papai, canalhas e assassinos.

    O Big Brother do PCO, Rui Costa Pimenta, afirma que é coisa de intelectuais pequeno-burgueses, submissos ao Imperialismo, para detratar a imagem dos Bandeirantes como instrumento do progresso nacional.

    Leonardo Avritzer renega tanto a violência como a própria idéia de revolução nela baseada, restando como parteira da História uma bem comportada política democrática.

    Um outro comenta que o saldo de 4 presos invalida politicamente o ato, o que dizer então das dezenas de milhares de mortos e exilados resultantes da Comuna de Paris…

    Por outro lado, a última manifestação Fora Bolsonaro (#24J) na cidade de São Paulo teve roteiro e conduta pactuados com a polícia, em reunião realuzada dentro de um comando da PM, cuja ata foi assinada por PCO, PCB, UNE, UMES, CSP.

    Com uma Esquerda assim, quem precisa da Direita?

    Fiquemos então com um dos grupos musicais prediletos do Galo, o Clã Nordestino na canção “Todo ódio à burguesia”:

    https://www.youtube.com/watch?v=9-8CfsWKXms

    《Dos pretos, pelos pretos, para os pretos, com os pretos
    Todo ódio à burguesia!
    Orgulho de ser da periferia!

    Dos pobres, pelos pobres, para os pobres, com os pobres
    Todo ódio à burguesia!
    Orgulho de ser da periferia!

    Revolução na periferia!》

  7. Caros leitores do Passa Palavra, é isto mesmo que vocês leram. O Arkx Brasil sugere que vivemos em um contexto parecido com o da Comuna de Paris, e que a autogestão generalizada que lá se tentara é comparável à estúpida queima (em volta) do Borba Gato. Contra os fatos que ele enuncia não há argumentos, então eu nem me darei ao trabalho.

  8. Na sequência do assassinato de George Floyd foram derrubadas estátuas nos Estados Unidos e em diversos países da Europa ocidental. No Brasil os iconoclastas acordaram tarde, não entendo a razão de tanto alvoroço por uma acção que, além de ineficaz, nada teve de original. Aliás, a vaga recente de destruição de estátuas limitou-se a reproduzir o afã com que, há algumas décadas, nos países da antiga esfera soviética foram derrubadas as estátuas de Lenin (as de Stalin já haviam sido derrubadas antes). E também então nada houve de original, porque na época do stalinismo, além de destruídas estátuas, foram apagadas as fotografias de personagens incómodos, o que levou George Orwell a imaginar, na sua célebre distopia, o Ministério da Verdade, encarregado de continuamente refazer o passado. É neste contexto e nesta longa sequência que a recente acção em São Paulo deve ser analisada e que devem ser avaliadas a sua significação e a sua tão duvidosa utilidade.

  9. Antes de tudo, uma ação dever ser avaliada pelo que se propõe.
    Mas isto não basta, também precisa ser colocada sob a perspectiva do campo social no qual transcorre.

    O fogo no Borba Gato foi bem sucedido em sua proposta: ser a ignição de um debate.
    Contudo, isto não anula as críticas mais amplas.
    Por exemplo: qual será o custo?
    Ou: conseguirá redundar em salto organizativo?

    De todo modo, demonstrou algo fundamental: na luta política é preciso pautar.
    Temos um cenário no qual Bolsonaro define constantemente pauta. Na verdade não ele, mas as forças políticas o mantendo como conveniente fachada.

    Além disto, deixou em evidência outra questão básica: militar é agir, é agir e agir.
    Notas de protesto e moções de repúdio, assim como saraus de sábados à tarde, não passam de patéticas demonstração de falta de força.

    O que assistimos é um cínico teatro, com os representantes da burguesia se degladiando na ribalta.
    Fux e Barroso contra Bolsonaro: alguém acredita mesmo nessa pantomina?
    Lula crê piamente que é de novo o avatar da classe dominante.
    Muito embora, assim como 2018, 2022 tende a se tornar para sempre um ano longe demais.

    O negacionismo é a característica dominante do período. Enquanto o mundo desmorona na frente de todos, a expectativa é a de tudo voltar ao normal.
    Mas não haverá sequer um novo normal, senão uma constante desestabilização, levando em direção a uma guerra de extinção ou… uma improvável Revolução.

    Ah, Lady Jane
    Toda essa terra vai se consumir
    Com os seus mistérios
    Como uma fogueira
    Vai queimar
    Ah, Lady Jane
    Eu tive um sonho estranho
    De morte

  10. Bom o nível da discussão aqui no PP.

    Fico pensando se o Galo, ano que vem, aproveitando o hype gerado pelo lança-chamas sobre a estátua bandeirante, lançar uma candidatura a deputado por algum partido de esquerda. Terá sido válido o método utilizado?

    Uma mera hipótese. Por ora, Liberdade para Galo e demais!

  11. Quando queimou a Cinemateca Brasileira, mandei a seguinte mensagem para um amigo “Mas tem que ver, os filmes que queimaram defendem os bandeirantes?”.
    Hoje tive o contato com a seguinte publicação.

  12. a direita conta com um público de nicho, que consome vídeos de ações policiais em primeira pessoal. Nos seus rincões mais extremos, não são policiais mas sim terroristas, que tomam o cuidado de levar uma câmera GoPro bem fixa em sua cabeça ou peito, enquanto ceifam a vida de seus alvos. Existem duas versões disponíveis na internet: o jihadista combatendo o mundo ocidental, ou então o cruzado combatendo a substituição racial.
    No mercado progressista já existia disponível a versão da “arte urbana” em primeira pessoal: https://noticias.r7.com/sao-paulo/veja-video-feito-pelo-proprios-pichadores-no-pateo-do-collegio-13042018
    Agora chegou ao mercado a versão “queima de estátua”, uma estreia nacional que empolgou, estrelada por pequenas celebridades e com forte posicionamento político.
    Quem negará que o mercado democratiza?

  13. Não posso deixar de notar: militar é agir sim, mas também refletir. Culto da ação sem reflexão (pior, ação que escarnece da reflexão) é característica central do fascismo.

  14. Texto que toca na ferida dessa nossa esquerda e acende uma fagulha de esperança aos que, mais do que prorestam, resistem.

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