Por João Bernardo

Como o Passa Palavra é também lido fora do Brasil, convém explicar que o chamado Marco Temporal decorre de uma acção no Supremo Tribunal Federal, sustentando que povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estivessem estabelecidos até ao dia 5 de Outubro de 1988, quando entrou em vigor a actual constituição brasileira. Este Marco Temporal é defendido pelas empresas e lobbies ligados à agro-pecuária e pelos respectivos deputados, deparando com a natural oposição dos povos índios.

A esquerda tem sido unânime na hostilidade ao Marco Temporal, e com toda a razão. Tratar-se-ia de uma pilhagem legalizada. Mas infelizmente a esquerda esquece-se, ou nem sequer se lembra, de aproveitar esta questão para reflectir um pouco sobre as nossas origens ideológicas.

Em polémica com Bakunin acerca da guerra conduzida pelos Estados Unidos contra o México em 1846 e 1847, Friedrich Engels pretendeu que ela «foi sustentada única e exclusivamente no interesse da civilização». E aquele que acabara de assinar, junto com Marx, um Manifesto em que apelavam para a união dos proletários de todos os países, argumentou detalhadamente: «Será porventura alguma desgraça que tenham tomado a magnífica Califórnia a esses mandriões mexicanos, que não souberam fazer nada com ela? Que os enérgicos yankees multipliquem os meios de circulação graças à rápida exploração das minas de ouro ali existentes, concentrem em poucos anos uma população densa e um amplo comércio nas partes mais adequadas da costa do Pacífico, criem grandes cidades, inaugurem serviços de navios a vapor, construam uma via-férrea de Nova Iorque até São Francisco, abrindo à civilização o Oceano Pacífico, e pela terceira vez na história dêem uma nova direcção ao comércio mundial? Talvez com isto fique prejudicada a “independência” de alguns californianos e texanos de origem espanhola e sejam violados aqui ou ali outros postulados morais, mas que peso tem isso em comparação com tais factos de transcendência histórica mundial?».

Historicamente, a análise de Engels é estapafúrdia, porque os americanos estabelecidos na província mexicana do Texas, que se sublevaram em Outubro de 1835 e mantiveram o território independente durante uma década, não eram dinâmicos empresários yankees mas proprietários de escravos, descontentes com o facto de o México ter abolido o tráfico humano em 1829. Aliás, o governo mexicano cedera aos pedidos destes colonizadores texanos e autorizara-os a manter os antigos escravos. No entanto, como os proibira de adquirir escravos novos, a insatisfação persistiu. A importância assumida pelo trabalho escravo no Texas independente foi vista com hostilidade pelos abolicionistas do norte dos Estados Unidos, que se opuseram à entrada do Texas na união, e a guerra contra o México só foi desencadeada quando a facção sulista e escravocrata, nas eleições de 1844, assegurou o triunfo do seu candidato à presidência. Aproveitando a vitória no conflito, os Estados Unidos apoderaram-se não só do Texas, mas ainda de outros vastíssimos territórios, apesar da oposição expressa pelos movimentos antiescravistas e da enorme controvérsia que a questão originara em todo o país, e penso que reside nestes acontecimentos uma das causas da guerra civil entre os estados do Norte e os do Sul, iniciada década e meia mais tarde. Em suma, os «enérgicos yankees», tão estimados por Engels, opunham-se aos americanos estabelecidos no Texas, e os interesses dos yankees só triunfaram quando a Guerra da Secessão ditou a derrota dos estados escravistas, incluindo o Texas.

Mas o que me preocupa aqui não é o facto de Engels se ter deixado aprisionar pelas ciladas da História. Isso sucede a todos nós, que nos deslocamos num terreno movediço onde os caminhos não estão trilhados e as pistas são falsas. Quem não se engana na previsão do futuro?

O que me preocupa é a cegueira ou a leviandade com que a esquerda reflecte — aliás, não reflecte — sobre o seu passado. O futuro não o conhecemos, mas o passado está escrito, para todos lerem. Ora, podemos agora verificar que os raciocínios que levaram Engels a justificar a espoliação cometida pelos «enérgicos yankees» sobre os «mandriões mexicanos» é exactamente igual, em cada um dos seus argumentos, às alegações dos enérgicos empresários agrícolas brasileiros que pretendem desapossar os mandriões índios de terras ancestrais. Talvez assim, diria o ilustre co-fundador do marxismo, fique prejudicada a autonomia de alguns índios e sejam violados aqui ou ali outros postulados morais, mas que peso tem isso em comparação com oportunidades de desenvolvimento económico de transcendência histórica mundial?

Nota
O trecho que citei de Friedrich Engels pode ser lido, por exemplo, em Paul W. Blackstock e Bert F. Hoselitz (orgs.) The Russian Menace to Europe, by Karl Marx and Friedrich Engels, Glencoe: The Free Press, 1952, pág. 71 ou em Roman Rosdolsky, Friedrich Engels y el Problema de los Pueblos “Sin Historia”. La Questión de las Nacionalidades en la Revolución de 1848-1849 a la Luz de la “Neue Rheinische Zeitung”, México: Pasado y Presente, 1980, pág. 161.
Aliás, é esclarecedor observar que naquele artigo, publicado na Neue Rheinische Zeitung de Fevereiro de 1849, Engels seguiu quase textualmente a argumentação usada a 24 de Julho de 1845 pelo Times de Hartford, um jornal entusiasticamente expansionista publicado no Connecticut, como pode conferir-se em Frederick Merk, Manifest Destiny and Mission in American History. A Reinterpretation, Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1963, pág. 31.

Infelizmente, não sabemos quem são os autores das ilustrações usadas neste artigo.

3 COMENTÁRIOS

  1. O camarada Engels foi companheiro de seu tempo, época de incomparável transformação nas relações sociais.

    A burguesia desenvolvia forças produtivas mais maciças e colossais que todas as gerações anteriores. Demonstrou como a atividade humana pode realizar conquistas sem precedentes. Construiu maravilhas maiores que as pirâmides egípcias, os aquedutos romanos e as catedrais góticas.

    A incontrolável revolta das forças produtivas não só destroçara as antigas relações de propriedade, como em seu posterior desenvolvimento seria cavado o túmulo da burguesia.

    Enquanto os modos de produção anteriores mantinham inalterados os meios de produção, o Capitalismo precisa revolucioná-los constantemente, assim se tornaria seu próprio coveiro.

    Engels, e seu genial camarada Carlos Marques, acreditavam piamente na burguesia e no Capitalismo como portadores do progresso, promovendo a integração em sua moderna civilização até dos povos mais bárbaros, como também dominando as forças da natureza através da Ciência.

    Ambos eram europeus e tinham a Europa como o centro do mundo.

    Não estavam errados. Mas cabe indagar: de qual mundo?

    Enquanto se dedicaram com argúcia à análise da Revolução Francesa (1789) e seus desdobramentos, desprezaram a Revolução no Haiti (1791).

    Caso o houvessem feito, é muito provável que toda a História posterior dos movimentos revolucionários seria diferente.

    A aceleração da expansão das forças produtivas nos trouxe à situação atual: há um planetário túmulo aberto, não apenas para a burguesia, mas largo o suficiente para dentro dele nos aconchegarmos cada um de nós.

    PS:
    O agro é morte, a bolsa é próspera.
    Ações sobem, avião cai.
    Uma família de herdeiros desaparece no desastre.
    O negócio da cana-de-açúcar atravessa os séculos ainda vivo.
    Meras coincidências…

  2. Texto inusitado e interessante, tanto na comparação quanto na ambiguidade. Comecei a ler imaginando uma conclusão doutrinária, mas o autor soube provocar sem perder as nuances do problema. Muito bom.

  3. Texto muito interessante!
    Nesse debate vale ressaltar que a posição de Engels não se dá “por ser europeu”, isso é um reducionismo fácil. O anarquista revolucionário Bakunin, citado no texto, já desenvolvia naquela época uma elaboração teórica e política sobre a revolução socialista e a resistência anticolonial dos povos.

    Para conhecer mais sobre a posição de Bakunin, recomendo a leitura em especial de dois artigos da revista Via Combativa n°4, da UNIPA:
    – Anarquismo e questão nacional: teoria e programa da federação dos povos
    – Terra e liberdade: as raízes anticoloniais do anarquismo

    Link para a revista: https://uniaoanarquista.wordpress.com/2021/07/02/via-combativa-4/

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here