Poder operário na Itália (1)

Por Leo Vinícius Liberato

 

O artigo será publicado no total em 4 partes, uma a cada semana.

Introdução

O último ciclo (mundial) de lutas da classe trabalhadora vai ficando cada vez mais distante na história. Há muito pouco material em português, para além do ocorrido em Portugal e no Brasil, que traga uma idéia da intensidade e forma daquelas lutas, que se iniciaram nos anos 1960 e seguiram mais ou menos até o final da década de 1970, protagonizadas (ainda) por operários industriais. A primeira parte do livro recentemente publicado no Brasil, A Sociedade Ingovernável, de Grégoire Chamayou, é uma grande contribuição para minimamente suprir essa lacuna. Chamayou nos traz um bom retrato do impacto social daquelas lutas, em termos de correlação de forças entre as classes sociais, assim como a base material em que elas se desenvolveram e as reações a elas. Para tanto ele usa dados empíricos das lutas operárias ocorridas exclusivamente nos Estados Unidos, naquele período.

“Ingovernável” era o que, para os gestores da Fiat, suas fábricas haviam se tornado na Itália em meados dos anos 1970. País onde as lutas parecem ter ganhado maior dimensão, se levarmos em conta intensidade e duração. E por intensidade se entenda a capacidade de perturbar as relações de produção capitalistas através da auto-organização dos trabalhadores. Essas lutas da classe trabalhadora italiana dos anos 1960-70 são bastante lembradas também por terem sido o meio em que se desenvolveu uma corrente de pensamento marxista que ficou conhecida como operaísmo. No campo da saúde do trabalhador, o que foi criado pela ação dessa classe trabalhadora acabou tendo uma influência para além de seu tempo e sua geografia. Deslocada desse contexto de lutas, em meio a profissionais e intelectuais que atuam com saúde do trabalhador, forjou-se o nome de modelo operário italiano, muitas vezes reduzido ao acrônimo MOI, para se referir a um modelo de intervenção no ambiente de trabalho. Surgido em meio àquela classe operária italiana, o slogan “A saúde não se vende” se tornou “popular” entre a tecnocracia que discute a saúde do trabalhador em inúmeros países latinos.

Poder operário na Itália (1)

Mas a luz vermelha acende quando são os gestores ultraliberais, inimigos mais ferrenhos da classes trabalhadora, como aqueles que ocupam cargos no ministério de Paulo Guedes-Bolsonaro, que passam a se utilizar discursivamente e abstratamente desse slogan e daquelas lutas operárias. Quando os capitalistas se referem a algumas expressões daquelas lutas, numa provável mistura de ignorância e de má fé, para ajudar a fundamentar o rebaixamento do custo da força de trabalho através da redução da renda dos trabalhadores, é porque é hora de demarcarmos um limite [1]. É preciso reavivar a memória do que foram aquelas lutas.

Para os gestores que tentam se reportar àquela lutas para legitimar a retirada de direitos de adicionais de insalubridade e periculosidade, é preciso lhes esfregar na cara, pela prática, que a luta contra a monetização do risco (expressa por exemplo no slogan “A Saúde não se vende”) vinha acompanhada da tomada do poder nas fábricas pelos operários. A saúde não ser vendida significava que os ritmos do trabalho, a jornada de trabalho, o que e como se produzir passavam a ser determinados pelos operários e pelas suas lutas, de tal forma que esse autogoverno tornou ingovernáveis as fábricas aos capitalistas.

Se os capitalistas começam a “exaltar” hoje as lutas operárias italianas dos anos 1970 contra a insalubridade (e seus adicionais), espero que esses mesmos capitalistas estejam preparados para reviver a realidade que, por exemplo, Antonio Negri participou e testemunhou em Porto Marghera, onde as lutas se precipitaram por conta das condições insalubres e perigosas de trabalho:

Havíamos montado barricadas por toda parte nas aldeias, para impedir o fluxo dos turistas alemães que vinham para o sul. Em Veneza, acabamos incendiando um trem de mercadorias que estava no meio da confusão, foi uma das coisas mais incríveis que eu vi na vida, e Deus sabe o que vi! Hoje eu acho graça, mas era freqüente um clima de violência extrema em Porto Marghera, a dois quilômetros da mais linda cidade do mundo, centenas de operários morriam de câncer, literalmente envenenados pelo trabalho… [2]

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O capitalista que invoca aquelas lutas para si, deve ter ciência de que está disposto a ver calado seu mundo arder e seu poder esvair.

Lembremos a todos então.

A classe operária indo ao paraíso [3]

Começamos nossa trajetória histórica nos anos 1950, quando tem início o chamado “milagre econômico” italiano. Em menos de duas décadas a Itália passaria de um país de produção essencialmente agrícola a uma das maiores economias industriais do Ocidente. Em 1961 o número de empregados na indústria já era superior ao do setor de serviços e agrícola. A rápida mudança produtiva ocorrida entre 1958 e 1963 foi acompanhada de um massivo fluxo de imigrantes vindos do sul da Itália ao norte industrializado. No entanto, o aumento da população urbana no norte não foi acompanhado pelo aumento da infra-estrutura pública das cidades, deixando essa nova população de imigrantes em precárias e insuficientes condições de saúde, educação, habitação, transporte etc [4].

A década de 1950 foi de reestruturação produtiva nas principais empresas italianas. A automatização e a implantação de mais linhas de montagem levaram a uma mudança da força de trabalho na fábrica. Os operários qualificados, que costumavam ser os mais ativos politicamente, diminuíram em número e ficaram mais isolados. Em contrapartida, o número de operários semi ou não-qualificados, executando movimentos repetitivos na linha de produção, aumentou [5].

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O influxo de imigrantes de procedência rural nos centros urbanos e nas fábricas do norte da Itália significava a introdução de um trabalhador com uma diferente subjetividade, com diferentes costumes e tradições em relação ao operariado que até então era majoritário. Esse novo operário via a fábrica como espaço-tempo que lhe negava a vida. Havia um repúdio aos ritmos e atividades requisitadas pela linha de produção taylorista. Aliada às condições objetivas da falta de escola, moradia e de outras estruturas de bem-estar nas cidades, abriu-se uma era de ações coletivas e lutas dos trabalhadores que duraria cerca de vinte anos.

A Fiat, por ser a maior empresa industrial italiana, e pela sua centralidade na economia do país [6], atraía a atenção da esquerda italiana. Turim, a cidade-fábrica, sede da Fiat, em meados dos anos 1960 tinha 60% da população trabalhadora empregada em fábricas. A Fiat possuía algumas fábricas na região de Turim, sendo a de Mirafiori a maior fábrica do mundo: chegando a ter 60 mil trabalhadores [7], 40 km de linhas de montagem, quase 3 milhões de metros quadrados de área e 37 portões de entrada.

Indústrias como a Fiat e Olivetti não eram exatamente as típicas indústrias italianas. Mas seus modernos processos produtivos e de valorização, que marcavam uma possível tendência geral, além de seus tamanhos, as transformaram em um pólo de poder capitalista. Acrescentado a isso, a tradicional militância dos empregados da Fiat parecia impermeável à influência das organizações de esquerda, o que era simbólico da crise do movimento operário oficial na virada dos anos 1950 para 1960. Embora não tenha ocorrido na Fiat, os conflitos industriais mais agudos de 1959 e 1960 se deram nas empresas mais avançadas tecnologicamente [8].

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Em 1960 e 1961 ocorreram intensas lutas trabalhistas na Itália, mas foi em 1962 que se alcançou o recorde do pós-guerra até então, com quase 378 milhões de horas de trabalho perdidas em greves. O ano de 1962 também viu os trabalhadores da Fiat reemergirem como protagonistas no movimento operário italiano. O ciclo de lutas operárias de 1960-1963 rompeu com o padrão da década anterior, em termos de reivindicações e da natureza de participação de base. Ações começavam espontaneamente no chão da fábrica, e em alguns casos os trabalhadores nem informavam os sindicatos sobre a interrupção de uma linha de produção, agindo de forma autônoma a eles e aos sindicalistas [9].

Segundo o historiador Paul Ginsborg o ressurgimento do conflito de classes nas indústrias do norte da Itália no início dos anos 1960 teria entre as causas: i) a condição próxima ao pleno emprego na região, o que proporcionava segurança aos trabalhadores; ii) o repúdio ao ritmo e às condições de trabalho na linha de produção taylorista; iii) os trabalhadores imigrantes teriam encontrado na fábrica um foco para a ação coletiva que não havia na comunidade, trazendo à fábrica todo ressentimento sobre suas precárias condições de vida (moradia, educação, transporte etc.) [10].

Um conflito deflagrado em Gênova em julho de 1960, encabeçado por estivadores e jovens operários, contra o congresso do partido fascista (MSI) realizado na cidade, teve uma especial importância naquele ano. As ruas de Gênova viraram por horas um campo de batalha entre a polícia e os manifestantes. O congresso do MSI foi então suspenso pelo prefeito, mas as manifestações e confrontos se espalharam pela Itália. A principal central sindical, a CGLI, convoca uma greve que paralisa a Itália, após manifestantes serem mortos em diferentes cidades. Esses jovens trabalhadores que protagonizaram a revolta também serão os protagonistas da revolta de Piazza Statuto, em Turim, em 1962.

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O ano de 1962 foi o da renovação do acordo coletivo dos metalúrgicos em nível nacional. Os trabalhadores da Fiat acabaram aderindo aos chamados de greve, que já paralisavam outras empresas. No dia 7 de julho a paralisação teve sucesso, e fora da Fiat Mirafiori e de outras fábricas houve confrontos com a polícia, carros virados e gerentes agredidos. Naquele mesmo dia havia sido anunciado que a central sindical UIL e a direção da Fiat haviam feito um acordo separado. Foi o bastante para cerca de 7 mil trabalhadores se concentrarem na frente do escritório da UIL, na Piazza Statuto, no coração de Turim. Seguiu-se uma batalha nas ruas por cerca de três dias, com mais de mil manifestantes sendo presos pela polícia. A composição novamente era de jovens trabalhadores, grande parte deles imigrantes do sul. Uma nova classe operária aparecia em luta aberta e de massa, de forma autônoma e contra o capitalista, mas também contra o sindicato e os partidos. Não à toa as centrais sindicais, o Partido Socialista Italiano (PSI) e o Partido Comunista Italiano (PCI) afirmaram que os confrontos de Piazza Statuto foram causados por agentes provocadores [11].

Greves selvagens e lutas operárias continuaram em 1963 na Fiat e em outros centros industriais, como no pólo de indústrias químicas em Porto Marghera. O ciclo de lutas de 1960-63 agitara todos os maiores setores industriais italianos, assim como as maiores cidades. Para Toni Negri, que começara a militar em 1963 em Porto Marghera, essas lutas tinham a característica de serem em maior ou menor grau espontâneas e eventos de massa [12]. As lutas eram espontâneas no sentido de serem em grande parte independentes do controle e comando dos sindicatos. As reivindicações salariais e as formas de luta (greves selvagens, sabotagens, absenteísmo), faziam com que Negri e seus colegas operaístas enxergassem nelas uma classe trabalhadora que via sua libertação não através do trabalho, mas se opondo ao trabalho, e para a qual o capital fixo (as máquinas, a fábrica) já não possuía um estatuto positivo.

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Notas

[1] Numa nota respondendo a uma ação civil do Ministério Público do Trabalho, no ano de 2020, a Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia escreveu: “Resta necessário esclarecer que o princípio da progressividade das normas de proteção, que privilegia a eliminação, mitigação e controle dos riscos na origem em detrimento da monetização do risco, é tendência mundial desde os anos 70. Cabe rememorar a bandeira defendida pela classe obreira mundial nas últimas décadas, cujo lema é “Saúde não se vende””. O objetivo desses gestores da Secretaria do Trabalho sempre foi inequívoco: reduzir custos aos empresários e à previdência social retirando direitos de trabalhadores a adicionais de insalubridade e periculosidade e reduzindo os parâmetros para proteção ao trabalhador no ambiente de trabalho. (Ver aqui: https://fehoesp360.org.br/noticia/6633/secretaria-de-trabalho-esclarece-sobre-normas-regulamentadoras)
[2] NEGRI, Antonio (2006). De Volta: Abecedário Biopolítico. Rio de Janeiro: Record, p. 201 .
[3] Cf. A pesquisa que resultou nesta seção foi financiada pela Fapesp entre 2007 e 2010.
[4] GINSBORG, Paul (1990),. A History of Contemporary Italy: Society and Politics 1943-1988. London: Penguin, 1990, p.212; 216.
[5] Cf. BARKAN, Joanne (1984). Visions of Emancipation: The Italian Workers’ Movement since 1945. New York: Praeger, p.54.
[6] Em 1963 e 1964 cerca de 20% do volume total de investimentos na Itália derivavam das escolhas de investimento feitas pela Fiat.
[7] Cf. BASCETTA, M.; BONSIGNORI, S.; CARLINI, E. et al (2001). 1968. Una revolución mundial. Madrid: Akal.
[8] Cf. WRIGHT, Steve (2002). Storming Heaven: Class Composition and Struggle in Italian Autonomist Marxism. Londres: Pluto Press, p.35; 47.
[9] Cf. Barkan op. cit., p.56-7.
[10] Cf. Ginsborg op. cit., p.250.
[11] Cf. Ibidem, p.252.
[12] Cf. NEGRI, Antonio (1988). Revolution Retrieved: Writings on Marx, Keynes, Capitalist Crisis and New Social Subjects, 1967-83. London: Red Notes, p.204-205.

As artes que ilustram o texto são da autoria de Alfio Giuffrida (1953 -).

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