Por Leo Vinícius Liberato
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O ciclo de lutas de 1967 a 1969 na Itália teve como catalisador a revolta estudantil, semelhantemente a outros países no período. Manifestações estudantis e ocupações de universidades ocorreram em meados dos anos 1960, mas o ciclo de lutas iniciado em 1967 foi bem maior em escala, envolvendo em seu auge milhares de estudantes universitários e secundaristas, paralisando grande parte do sistema educacional. O contingente estudantil havia sofrido significativo acréscimo durante os anos 1960, assim como alterado sua composição com relevância. Em 1960, 82 mil de 311 mil estudantes deixaram a escola para trabalhar, enquanto que em 1968 apenas 91.700 de 507.000. E o número de novos secundaristas dobrara, enquanto o número de estudantes vindos da classe trabalhadora ingressando nas universidades passara de 14% em 1960-1 para 21% em 1967-8 [1].
Em 1967 as greves em Porto Marghera, onde 15 mil operários eram empregados, tiveram como motivo a toxidade das substâncias e a falta de segurança para a saúde dos trabalhadores. Em 1968 começam greves por redução da jornada e aumento igual, de 5 mil libras, para todos os empregados. Foi ali, em Porto Marghera, que primeiro apareceu a reivindicação de aumento igual para todos, independente do posto de trabalho, que logo se generalizaria e seria característica do 68-69 italiano. Em Porto Marghera e na Pirelli em Milão, em 1968, foram levadas adiante formas de luta “selvagem”, por fora do aparato sindical, prática que se tornaria generalizada e comum no ano seguinte. Insatisfeitos com os sindicatos e partidos, os trabalhadores da Pirelli de Milão formaram em 1968 o primeiro Comitato Unitário di Base (CUB), que também se disseminaria por outras indústrias. A diretriz dos CUBs, “começar diretamente das condições dos trabalhadores na fábrica” [2].
Diferentemente de outros países, os estudantes do 68 italiano viam a necessidade de se ligarem à classe operária. Saíam assim das universidades em direção aos trabalhadores, nos quais enxergavam o verdadeiro potencial revolucionário [3]. Ao mesmo tempo, os jovens trabalhadores eram mais atraídos pelas subculturas juvenis e pelo feminismo do que pela esquerda extraparlamentar [4].
Se os estudantes foram os catalisadores, no entanto os protagonistas das lutas trabalhistas nesse ciclo de lutas foram os operários não-qualificados ou semi-qualificados, aqueles submetidos ao regime de trabalho taylorista, localizados no processo imediato de produção. Mas o movimento foi além deles, englobando trabalhadores de escritórios, técnicos, agricultores e funcionários de grandes estabelecimentos comerciais [5].
Além da igualdade do aumento salarial, no centro das demandas estava o controle dos ritmos e normas de trabalho e as relações de poder na empresa, e a desvinculação de salário e produtividade.
Uma característica normalmente apontada desse ciclo de lutas, seja pelos operaístas seja por historiadores como Joanne Barkan, foi o abalo da chamada ética do trabalho, tradicional nas organizações de esquerda e no movimento operário até décadas antes. Na nova geração de trabalhadores o trabalho e a produção já não apareciam como valores [6]. O trabalho era visto como tempo de perda da vida mais do que como base sobre a qual emergiria o socialismo. O taylorismo levando ao ápice o estranhamento entre o trabalhador e o conteúdo do seu trabalho teria feito, na leitura do grupo Lotta Continua (de tendência operaísta), os trabalhadores entenderem que a liberdade não residiria na exaltação do “trabalho produtivo”, mas na abolição do trabalho assalariado. A revolta dos trabalhadores, com suas sabotagens e paralisação da produção em vez de autogestão da produção, de acordo com essa leitura expressava uma rejeição da disciplina da fábrica e um antagonismo radical à própria fábrica como instituição [7].
As lutas dos trabalhadores de 1968-69 foram basicamente acontecimentos do norte (industrializado) da Itália. Em Porto Marghera ou em Nápoles, onde também ocorreram lutas operárias, o movimento ficou isolado, pela menor concentração industrial [8]. As primeiras lutas operárias de 1968 se deram nas maiores fábricas italianas, mas em áreas mais periféricas, em termos geográficos e de produção, e acima de tudo onde os sindicatos eram mais fracos [9].
As lutas de 1969, que culminaram no chamado “outono quente” – a terceira maior greve da história em termos de horas de trabalho perdidas – teve como principal palco a Fiat em Turim. Maior indústria italiana, possuindo a maior fábrica do mundo e uma enorme concentração de dezenas de milhares de operários numa metrópole industrial, com a abertura de novas fábricas em Turim ela atraiu ainda mais migrantes do sul em 1967. Além da migração ter continuado durante os anos 1960, os problemas de habitação e serviços públicos nas cidades industriais persistiam.
A luta na Fiat em 1969 começou em março pela recusa dos trabalhadores da fábrica de Mirafiori a aumentar a velocidade da produção. Após cinqüenta dias de lutas contínuas, em 3 de julho ocorreu o que ficou conhecido como a batalha de Corso Traiano, que aparece como presságio da década seguinte, na qual a correlação de forças dentro das fábricas seria favorável aos trabalhadores. Os sindicatos haviam resolvido chamar uma greve geral em Turim contra os altos aluguéis, com o intuito de dispersar as energias das lutas “não-oficiais” dentro da fábrica. Mas o que se seguiu foi uma intensa batalha de rua entre polícia e trabalhadores na região de Corso Traiano. A partir de setembro a agitação operária em Turim, Porto Marghera e na Pirelli de Milão se espalhou pelo país, dando início ao “outono quente”: mais de um quarto do total da força de trabalho italiana se envolveu nas greves; 520 milhões de horas de trabalho foram perdidas no outono de 1969, e em 19 de novembro 20 milhões aderiram a uma greve geral que obrigou o governo a reformar o sistema previdenciário [10]. O outono quente terminou em vitória para os trabalhadores, em termos de reivindicações atendidas [11] e correlação de forças instituída. Os sindicatos souberam “cavalgar o tigre” e capitalizar o ciclo de lutas, com considerável aumento de filiados até meados dos anos 1970 [12], ganhando também em legitimidade.
Em 1970 e 1971, lutas pela melhoria das condições de trabalho e por maior controle no local de trabalho se alastraram por vários setores da produção: metalúrgicos, trabalhadores da indústria química, ferroviários, operários da construção civil. As lutas chegaram ao terciário e envolveram carteiros, professores, servidores públicos, trabalhadores de hospitais [13]. Como de praxe é reportado, o 68 italiano duraria uma década.
O período de 1969 a 1973 também viu revoltas no sul da Itália, as quais refletiram a natureza fragmentada da sociedade na região e a precariedade da modernização [14]. A maior revolta ocorreu em 1970 em Reggio Calabria, a partir da não escolha da cidade como sede do novo governo regional. Greves, barricadas, explosões, bloqueios de estradas foram algumas das formas de manifestação que se estenderam por um ano. Porém o movimento em Reggio Calabria teve em neofascistas a na direita seus principais líderes.
No norte da Itália as lutas em torno de moradia foram também bastante expressivas no ciclo de lutas do final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Grandes greves de pagamento de aluguéis ocorreram no norte, em Milão e Turim, e no sul, em Roma e Nápoles. Em Milão, entre 1968 e 1970, estima-se que 40% das 100 mil famílias que viviam em moradias estatais entraram em greve de pagamento dos aluguéis total ou parcialmente [15].
No início dos anos 1970 o absenteísmo aumentou, provavelmente como resultado da autoconfiança e segurança dos trabalhadores após as lutas vitoriosas de 1969. Se em 1965 o absenteísmo estava entre 5 a 6% na Fiat, em 1970 chegou a 12,5%. As taxas eram maiores nos trabalhos mais enfadonhos e perigosos [16].
Em 1972 reemerge o conflito nas fábricas no norte, em torno dos acordos coletivos. Aproximadamente 4,5 milhões de trabalhadores se envolveram, e em 1973 esse número cresceu para 6,1 milhões, só superado pelo número de 1969.
As lutas mais significativas de 1973 se deram em Porto Marghera e na Fiat em Turim. Em Porto Marghera, onde as lutas costumavam prescindir mais que em outros lugares dos sindicatos, intensas batalhas de rua, e bloqueio de estradas ocorreram por três dias, após uma greve geral [17].
A renegociação dos acordos coletivos levou à ocupação da Fiat de Mirafiori, em meio a seis meses de lutas. A ocupação da Fiat desencadeou uma onda de ocupações. A recusa do trabalho era bem explicitada pela declaração de um operário da Mirafiori:
Essa ocupação é diferente da que os trabalhadores fizeram em 1920. Em 1920 eles disseram ‘vamos ocupar mas vamos trabalhar. Vamos mostrar a todos que podemos gerir a produção’. As coisas são diferentes hoje. Na nossa ocupação, a fábrica é o ponto de partida para a organização revolucionária dos trabalhadores – não um lugar para trabalhar [18].
O ano de 1973 se encerrou com a certeza de que o movimento operário estava mais sólido e forte que nunca. No entanto, a resposta das grandes empresas a essa militância seria uma reestruturação produtiva, descentralizando a produção, de modo a fragmentar os trabalhadores e quebrar os centros de militância [19].
Notas
[1] Cf. LUMLEY, Robert (1990b). State of Emergency: cultures of revolt in Italy from 1968 to 1978. New York: Verso, p.55.
[2] Cf. Lumley, ibidem.
[3] Cf. GINSBORG, Paul (1990),. A History of Contemporary Italy: Society and Politics 1943-1988. London: Penguin, 1990, p.134.
[5] Cf. BARKAN, Joanne (1984). Visions of Emancipation: The Italian Workers’ Movement since 1945. New York: Praeger, p.70.
[6] Cf. Barkan, ibidem.
[7] Cf. Lumley, op cit., p.211-213.
[8] Cf. Lumley, ibidem, p.209.
[9] Cf. Lumley, ibidem, p.311.
[10] Cf. ABSE, Tobias (1985). Judging the PCI. New Left Review, n.153. London, oct.-sept.
[11] Sobre as reivindicações ver ABSE, op. cit..
[12] Cf. Ginsborg, op. cit., p.320; Lumley, op. cit., pp.243; 266.
[13] Cf. Ginsborg, ibidem, p.318.
[14] Cf. Ginsborg, ibidem.
[15] Cf. Ginsborg, ibidem, p.324.
[16] Cf. Ginsborg, ibidem, p.88.
[17] Vide relato de Antonio Negri reproduzido na Introdução
[18] KATSIAFICAS, George (1997). The Subversion of Politics: European Autonomous Social Movements and the Decolonization of Everyday Life. New Jersey: Humanity Press, p.43.
[19] Cf. Ginsborg, op. cit.
As artes que ilustram o texto são da autoria de Giuseppe Santomaso (1907 – 1990)