Por Malvina Pretória Samuelson

Quem é ele? Entrou concursado como trabalhador técnico em laboratório, mas sempre almejou algo a mais. Não gostava de ficar à disposição de estudantes que queriam usar um computador e, colocando-se à disposição da gestão, conseguiu a primeira função gratificada coordenando o tal “apoio administrativo”, que nada mais é que uma salinha com recursos didáticos. Ele contava com apenas um colega e, como ele era o coordenador (imagina que orgulho dizer para a família que é coordenador!), naturalmente se achava um pequeno chefe desse colega que, para ele, obviamente era um subordinado. A esse pseudo-subordinado adorava repassar tarefas que seriam dele mesmo, como fazer despachos de processos ou imprimir materiais para docentes preguiçosos — afinal alguns professores mestres e doutores têm sérias dificuldades ao operar um computador e impressora fora de casa, então é melhor deixar essa tarefa com algum técnico-administrativo e ir tomar o cafezinho (“Quando ficar pronto você leva para mim lá na sala? Ou então eu mando algum aluno vir aqui pegar”).

Ele sempre foi um dos servidores mais queridos pelas chefias maiores. Ex-militar da Marinha, sempre prezou por manter ordem e disciplina na escola, mesmo que tal função passasse longe das atribuições de seu cargo, mas o que importa? Ainda como coordenador do apoio administrativo, deixava seu “subordinado” com as tarefas chatas e, depois de assistir a alguns vídeos de ações policiais no YouTube, ia fazer rondas pela escola como se fosse ele mesmo um policial. Vistoriava tudo: salas de outros servidores, banheiros, patrimônio, corredores, salas vazias onde adolescentes trocavam beijos e carícias e até mesmo o espaço para o grêmio estudantil — não tinha essa de invasão de espaços, afinal tudo é Instituto. O interessante é que a tarefa de rondar a escola e dar assistência a estudantes era exatamente a atribuição de cargo do “subordinado”, mas as noções que esse tinha de ordem e disciplina eram diferentes e desagradavam à gestão e à maioria dos docentes, então o melhor era deixá-lo isolado na salinha com os despachos e fotocópias. E não chamemos a isso desvio de função, pois para a gestão da escola tratava-se de “remanejamento”.

Não pense a leitora, não pense o leitor, não pense ninguém que o servidor exemplar não tivesse contato ou não gostasse de estudantes. É verdade que alguns ele denunciava e clamava por punições, mas havia alguns com quem mantinha brincadeiras e até fez um projeto de extensão de vôlei. Foi aí que deu um tempo nos vídeos da PM violando direitos de gente pobre e começou a acompanhar vídeos do Bernardinho, grande técnico da seleção brasileira de voleibol, um grande exemplo para vários gestorezões e gestorezinhos mais afeitos à hierarquia, ordem, disciplina e… gritos. Enfim o vôlei foi o pretexto perfeito para passar a impressão de proatividade às chefias enquanto fugia das suas atribuições, deixando todas acumuladas ao tal subordinado.

Quem é ele? Um traficante de fofocas que observa e comenta sobre a vida de todos os colegas, um defensor da hierarquia no trabalho, mas acima de tudo um grande de um puxa-saco. Nunca puxou saco de colegas técnico-administrativos ou terceirizados, mas puxava saco de professores, de chefias, do diretor, dos pró-reitores, do reitor, de gerente… Ah, a gerência administrativa, que sonho! Um sonho realizado. Sabem como é, na burocracia acadêmica quem puxa-saco consegue muita coisa. Mudou-se a direção, reconfigurou-se a equipe, e ele foi diretamente para lá: a Gerência Administrativa (imagina que orgulho dizer para a família que é gerente!). De um trabalhador subordinado ao departamento acadêmico para coordenador subordinado ao departamento acadêmico, e daí para gerente subordinado apenas à direção. Em pouco tempo trocou seu carro popular por um SUV parecido com aqueles que os doutores têm — quem agora o vai tratar como simples técnico-administrativo? Começou a andar de cabeça mais erguida. Era já um homem de sucesso! Não tinha mais função gratificada (FG), e sim Cargo de Direção (CD), uma gratificação muito maior, só destinada a quem é chefão de verdade.

Certa vez um trabalhador técnico-administrativo do campus denunciou práticas de assédio moral por parte de sua chefia imediata em contexto de eleições para diretor. Daí trabalhadores dessa categoria resolveram se reunir e discutir questões que afetavam a categoria na escola. Ele foi, afinal consta que é técnico-administrativo. Mas ali era ele um trabalhador? Não parecia. Ali ele era já o gerente, o lugar-tenente do diretor recém-eleito, e o celular em cima da mesa que incomodou alguns colegas presentes na reunião não era aleatório: ele gravou a reunião e repassou TUDO o que foi dito pelos trabalhadores ao diretor e ao chefe de gabinete. Jogada de espião, muito bem calculada, que só poderia sair de uma cabeça policialesca, e que deu munição para o diretor se antecipar a alguns conflitos, falar “indiretas” que alguns trabalhadores são paranoicos por se dizerem perseguidos e ainda sair de melhor diretor do mundo, enquanto o trabalhador que sofreu assédio só poderia ser louco. É, leitores, no mundo lindo da educação pública muita coisa pode acontecer, e aquele que sorri nos corredores pode ser totalmente diferente nas salinhas fechadas.

Agora que ele provou seu valor e sua lealdade com o diretor, a gerência era de fato sua. Mas, afinal, o que faz o gerente administrativo da escola? Ele controla as contas, licitações, almoxarifado, patrimônio… e o contrato dos trabalhadores terceirizados. Com essa categoria ele se dá bem, se mistura, conta fofocas e piadas e é bem popular. É comum os trabalhadores terceirizados dizerem que ele é o melhor gerente que já tiveram. Pudera! Antes dele era um fascistão bruto, e antes ainda era uma fascistinha que controlava até a quantidade de copos descartáveis que os terceirizados poderiam usar por dia. Agora é um gerente que fica no meio da galera, mas que não deixa de ser gerente: a cabeça erguida, a mão na cintura e o dedinho indicador apontando são seus gestos típicos no novo cargo, acompanhados sempre de ordens — “pega ali”, “faz isso”, “faz aquilo”, “joga para lá”. Um bom gerente é assim, se mistura aos trabalhadores mas não pega no pesado; ele dá as ordens.

Hoje em dia essa escola não tem aulas por causa da pandemia. Mudou-se para um prédio novo, recém-inaugurado, que está sem luz e sem água enquanto as aulas e os serviços administrativos seguem por home office. Quem lá trabalha presencialmente são os trabalhadores terceirizados: vigilância, jardinagem, motorista e limpeza. Os vigilantes revezam-se em turnos solitários para rondar um campus grande — imaginem à noite e sem energia; um jardineiro é responsável sozinho pelo campus que, já disse, é grande — e com uso de ferramentas arcaicas; na limpeza revezam-se equipes — para limpar o que às vezes já está limpo. O motorista agora tem a missão de buscar água todos os dias para os colegas que estão no prédio, missão que também é realizada pelo gerente, que mora perto do trabalho. Tal proximidade durante a pandemia gerou uma amizade entre diretor, gerente e dois desses trabalhadores terceirizados, com passeios de bicicleta nos fins de semana — dois do mais altos cargos da escola com dois dos mais baixos na hierarquia unidos pela bike! Mas se o diretor e o gerente tivessem que passar 8 horas diárias no trabalho presencial, será que ainda faltaria água e energia no prédio?

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Quem é ele que se confunde entre trabalhadores e chefias; que um dia só obedecia ordens e agora dá ordens, sem deixar de também obedecer? Quem é ele que, desde quando só obedecia, já exercia as práticas de vigilância e fidelidade com os superiores? Quem é ele que se mistura entre gestores e entre trabalhadores, dá provas de humildade e arrogância, mas sabe muito bem do poder que agora tem? Não nos enganemos, trabalhadores. Ele ganha um salário, mas ganha algo a mais: a gratificação de CD, que é repartição da pilhagem que fazem dos cada vez mais escassos recursos que nos são destinados. Ele está disponível praticamente 24 horas por dia, é verdade, como todo gerente tem que estar, mas é ele quem tem nas mãos as folhas de assinar o ponto dos terceirizados. Ele é gente boa, engraçado, tem boas conversas, mas amizade é amizade, e trabalho é trabalho. O que ele pode perder é a CD e ter o CPF (Cadastro de Pessoa Física) sujo; o que um terceirizado pode perder é um emprego. E um gestor defende com muito empenho sua CD e seu CPF, custe o que custar.

O gerente está no meio de nós, mas não nos enganemos, ele não é dos nossos.

1 COMENTÁRIO

  1. PROVÉRBIO TURCO
    Quando o machado entrou na floresta, as árvores disseram: “o cabo é dos nossos”…

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