Por Erick Corrêa

 

Este artigo foi dividido em duas partes, sendo esta a primeira.

 

No artigo Quando deixamos de exigir o impossível, um conhecido militante do PCB procurou fazer um “balanço” da “vitória da burguesia no século XX”. “Só assim”, diz ele, “poderemos libertar nossa imaginação política do pragmatismo rasteiro em que ela se encontra aprisionada”. Contudo, como procuramos demonstrar na primeira parte desta crítica, o artigo em questão defende uma noção enviesada, para não dizer falaciosa, do significado sociopolítico e histórico da palavra de ordem mobilizada em seu título, e que conduz a sua argumentação. Na segunda parte, verificamos como o autor do artigo combina a sua falsa premissa – segundo a qual, desde a queda do regime “soviético”, entre 1989-1991, a luta de classes revolucionária haveria sido historicamente desativada – a uma adesão ao teorema neoliberal do “fim da história”. Nas terceira e quarta partes, procuramos explicitar como tal teorema é funcional não somente para neoliberais como também para o autor do artigo e a perspectiva que defende. Funcional, no caso dos comunistas, pois a ideologia do fim da história lhes permite; 1) identificar o que chamam de desativação da história e da luta de classes revolucionária, após as décadas de 1960 e 1970, com a queda da URSS; 2) apagar da história não só o papel contrarrevolucionário dos partidos comunistas em situações de crise revolucionária como na Itália, França e Portugal, nos anos 1960-1970, como aquelas próprias crises revolucionárias; e 3) rememorar apenas as situações históricas em que os partidos comunistas tiveram um importante papel no derrube de um regime e na consequente tomada do poder estatal. Consequentemente, isso lhes possibilita; 1) apresentar a revolução bolchevique e a doutrina marxista-leninista como “O” modelo a ser seguido e como o único horizonte revolucionário possível; 2) isentar-se de autocríticas ou reexames históricos e manipular a história das revoluções do século XX de acordo com seus próprios interesses; e 3) ignorar a continuidade processual da conflitualidade histórica que, após o fim da URSS, assumiu contornos mais ou menos revolucionários em diferentes momentos e zonas geográficas. Na parte final, com base em alguns exemplos históricos e, principalmente, a partir da experiência legada pelo biênio revolucionário de 1974-1975 em Portugal, critica-se a associação do autor entre violência revolucionária e “dimensão político-militar” das lutas, bem como as ilusões dela decorrentes, quanto a um potencial uso revolucionário das forças militares.

Longe de querer alimentar o rentável mercado da polêmica, o que motivou a escrita desta crítica foi a necessidade de situar esta libertação da “imaginação política” em dados históricos concretos. A análise de estudos históricos e sociológicos, além de documentos políticos sobre alguns acontecimentos e processos revolucionários do século XX, torna evidente como o tratamento que seu artigo confere a tais fenômenos é enviesado pela perspectiva do marxismo-leninismo vigente no chamado “comunismo de partido”. Em si mesma, não haveria qualquer problema na defesa deste viés, nem de qualquer outro, pelo militante do PCB. O problema começa, porém, quando o ponto de vista unilateral e parcial da historiografia oficial dos partidos comunistas silencia, de um lado, o papel das alas minoritárias do movimento operário revolucionário do século passado e, de outro, o papel contrarrevolucionário desempenhado pelos próprios partidos comunistas naqueles processos. Um silenciamento que o artigo estende para as dinâmicas revolucionárias e contrarrevolucionárias contemporâneas. Nele, tudo se passa como se a luta de classes revolucionária, idealmente identificada com a locomotiva dos partidos comunistas, tivesse sido desativada do mundo após o fim do regime “soviético”. Depois da “derrota” da URSS, o horizonte da revolução estaria morto e enterrado por toda a parte. As experiências de Chiapas e Rojava, por exemplo, a despeito de seus conhecidos limites e contradições, não são sequer mencionadas, pois tendem a não ser consideradas experiências de natureza revolucionária no campo do marxismo-leninismo.

Esta crítica não parte, assim, de uma perspectiva positivista da história, baseada numa presunção de neutralidade ideológica do historiador. Longe disso, nossa perspectiva epistemológica é a da insurreição contra o positivismo que acompanhou os processos revolucionários desencadeados nas décadas de 1960 e 1970 em diversas partes do mundo. Isto se verifica pelas referências que emprestamos de suas correntes políticas minoritárias e radicais, à esquerda do marxismo-leninismo e da perspectiva vigente nos PCs da época. Para evitar a armadilha do sensacionalismo polemista, complemento aqui as perspectivas de tais correntes (conselhistas e situacionistas) com estudos do campo científico-social contemporâneo, que verificam a pertinência de algumas teses defendidas pelos autores e perspectivas daquelas correntes em sua época. Nesse sentido, procuramos nos mover em outro campo que o das polêmicas politiqueiras em torno de falsas dicotomias, como entre “liberalismo” e “socialismo”. Olhem para chamada “geringonça” portuguesa, apoiada pelo Partido Comunista Português (PCP): é “socialista liberal” ou “liberal socialista” um governo que suspende o direito à greve ao decretar um estado de emergência sanitário, sob a justificativa de controlar o espalhamento de um vírus? Olhem para a China, seu “socialismo de mercado” e as recentes lutas anticoloniais e anti-PCCh (Partido Comunista Chinês) em Hong Kong. Nossa crítica à perspectiva marxista-leninista da história e da luta de classes não é de matriz liberal nem de direita, mas proletária, pois consciente de que o socialismo de Estado bolchevique não foi “mais do que um tipo de capitalismo”. [1] O significado que atribuímos ao par “comunista-comunismo” não possui aqui qualquer relação com o sentido genérico e paranoico que tais noções assumem no léxico anticomunista da antiga e da nova direita brasileira, que funcionam mais como um dispositivo de desqualificação política e expiação moral dos oponentes, do que como uma categoria analítica válida para o campo da sociologia política. O uso que fazemos da noção de comunismo pretende, assim, evitar controvérsias e ambiguidades, ao referi-lo a casos históricos concretos, a partir dos quais são problematizadas as ações ou omissões dos quadros dirigentes ou militantes dos partidos comunistas em cada caso.

 

Jamais deixamos de exigir o impossível (1)

 

1. Realizar o impossível ou “transformar o possível em real”?

 

O artigo do militante do PCB chama a atenção, primeiramente, pela apropriação recuperadora, contida em seu título, de uma palavra de ordem proveniente do movimento de ocupações de fábricas e universidades de maio-junho de 1968 na França: “Sejam realistas, exijam o impossível” [Soyez realistes, demandez l’impossible]. Recuperadora, pois argumenta em favor de princípios de ação e organização revolucionárias fundamentalmente rechaçadas pelos protagonistas daquele movimento: concepção de revolução como tomada do Estado pela via político-militar; estatismo econômico e transformação do “possível em real por meio da mediação da política revolucionária”. É de se estranhar, nesse sentido, que um artigo assinado por um militante do PCB traga em seu título uma referência aparentemente positiva sobre um acontecimento que foi, em sua época, desqualificado como “provocação”, “baderna”, “irresponsabilidade”, “espontaneísmo”, “desordem”, “desorganização”, “infantilidade”, “radicalismo pequeno-burguês”, “sectarismo”, entre tantas outras adjetivações negativas, pela cúpula dirigente não somente do Partido Comunista da França (PCF), mas de outros países ocidentais como Itália e Portugal, onde tais partidos detinham um grande prestígio e influência devido a sua longa resistência ao fascismo. A greve geral selvagem de maio-junho de 1968 na França, assim como o movimento da autonomia italiana de 1967-1977 e a revolução portuguesa de 1974-1975, para ficarmos com apenas três casos importantes, sofreram uma combativa oposição não apenas de gaullistas, democratas-cristãos e salazaristas, como de seus respectivos partidos comunistas. Estariam as novas gerações de militantes comunistas finalmente interessadas e dispostas a fazer um reexame do papel reacionário desempenhado pelos comunistas em diversas crises revolucionárias do século XX? Claro que não, afinal, “os partidos comunistas só podem controlar as organizações de massa, jamais pode interligar-se com elas. Sua centralização, sua concepção de dirigente e sua visão organizatória impedem sua identificação real com a classe”.[2]

Apesar de se referir à palavra de ordem soixante-huitard no título do artigo, seu autor sustenta uma perspectiva muito mais moderada. Para ele, o horizonte revolucionário não está inscrito numa realização do impossível, mas numa transformação do “possível em real”, e isto por meio de uma “mediação da política revolucionária”, em suas palavras. Entretanto, o real significado histórico desta palavra de ordem representava, para os seus criadores, justamente a necessidade de se insurgirem contra todas as mediações políticas, inclusive as ditas revolucionárias, sindicais e partidárias, em especial os aparelhos da Confederação Geral do Trabalho (CGT) e do PCF. De acordo com o relato de Michel Leiris, escritor próximo do surrealismo e do Colégio de Patafísica, a fórmula “Sejam realistas, exijam o impossível” foi criada coletivamente no seio do Comitê de Ação Escritores-estudantes, sediado nas dependências do Censier (edifício situado na região sudeste do Quartier Latin, anexo à Faculdade de Letras da Universidade de Paris).[3] Tal palavra de ordem teria sido inspirada, segundo outro protagonista daqueles acontecimentos, pelo discurso de um sindicalista vinculado à CGT que, hegemonizada pelo PCF, no início da crise revolucionária advertia aos operários de que era preciso “ser realista, e não exigir o impossível”.[4] Outra fonte de inspiração possível, porém não comprovada por nenhum ator diretamente vinculado ao movimento, também poderia residir na declaração do anarquista russo Mikhail Bakunin a respeito da revolução detonada em Paris em fevereiro de 1848, onde “o inacreditável tornava-se habitual” e “o impossível, possível”.

Entretanto, mais do que rastrear suas origens, nos interessa compreender o sentido sociopolítico de tal palavra de ordem no contexto de sua emergência. De acordo com o relato de outro integrante dos variados Comitês de Ação confederados no Censier em maio-junho de 1968: “essas novas formas de ação procuravam contornar as tentativas de ‘recuperação’ das organizações e dos aparelhos político-sindicais, de maneira a preservar o máximo possível a autonomia (a auto-organização) de um duplo movimento social e cultural, cuja irrupção e a dinâmica, investido de uma espontaneidade e de uma autonomia bastante valorizadas pelos ativistas de 68, eram largamente estranhas, senão francamente hostis aos métodos organizacionais e aos modos de funcionamento dos ditos aparelhos. Aparelhos os quais, seguramente, revidavam contra esses ‘esquerdistas’, ‘provocadores’ e ‘grupúsculos irresponsáveis’”.[5] Um panfleto do dia 21 de maio, assinado pelo Comitê Trabalhadores-estudantes, defendia que “somente a espontaneidade do conjunto de trabalhadores permite atingir os resultados mais radicais, que nenhuma capela, nenhuma das velhas organizações, nenhum partido, nenhum novo patrão poderá explorar para obter vantagens pessoais”.[6]

Diferentemente, portanto, da perspectiva defendida pelo autor do artigo, para quem os “anos 1960”, a “época das revoluções”, teria sido marcada por acontecimentos em que os partidos comunistas desempenharam um importante papel, tais como “a derrota do nazifascismo, até as revoluções Chinesa, Coreana, passando pela vitória do Vietnã na grande Batalha de Dien Bien Phu”, os acontecimentos mais presentes na memória dos revolucionários de maio-junho de 1968, para além da greve geral de 1936, das manifestações argelinas no início da década de 1960 e das mobilizações mundiais contrárias à guerra no Vietnã, também eram os levantes operários e estudantis de Berlim oriental (Alemanha), Poznan (Polônia) e Budapeste (Hungria) no ano de 1956. Tais movimentos precipitariam a crise conclusiva do movimento comunista internacional, que seria também fortemente condicionada pela morte de Stálin, em 1953, e pela realização, em 1956, do XX° Congresso do PC da URSS, que marcará o processo de desestalinização do partido. “Na década de 1950, sobretudo a partir do seu final, e durante os vinte anos seguintes, as lutas operárias começaram a impor, na prática, a questão do controle e da autonomia. Num número cada vez maior de casos, e que alcançaram várias vezes a amplitude de verdadeiras revoluções, foram os próprios trabalhadores de base a tomar a iniciativa do processo e mantê-lo sob a sua orientação, não o alienando para os dirigentes sindicais ou partidários […] E isso sucedeu tanto na esfera do capitalismo de Estado – em Berlim, na Hungria, múltiplas vezes na Polônia, na Checoslováquia, na Iugoslávia, na China, durante o processo complexo da Revolução Cultural – como na esfera do capitalismo democrático – nos Estados Unidos e no Canadá, na França, na Espanha, na Itália e em Portugal, como em alguns países da América Latina”.[7] Poderíamos acrescentar o caso brasileiro a esta listagem de exemplos históricos, como as greves de Contagem (MG) e Osasco (SP) em 1968, as greves operárias desencadeadas em maio-junho de 1978 em São Paulo, Guarulhos e novamente Osasco, até o retorno das experiências das “comissões de fábricas” no final da década de 1980, na região do Grande ABC paulista, principalmente em São Bernardo e Diadema. Saliento o “retorno”, pois como demonstra o estudo de Valdemar S. Pedreira Filho,[8] as tentativas de auto-organização da classe operária brasileira se manifestaram no país pelo menos desde 1919, atingindo fases ascensionais também entre 1945-1946 e 1965-1968.

 

Jamais deixamos de exigir o impossível (1)

 

O artigo “Quando deixamos de exigir o impossível” exprime, afinal, uma determinada concepção de revolução, de matriz político-militar e voltada à tomada do poder estatal que, apresentada como a única existente no período em questão, manifesta um ponto de vista parcial, para não dizer dogmático, pois exclusivamente identificado com a historiografia oficial dos partidos comunistas. É por este motivo que, a despeito do flerte com a palavra de ordem “Sejam realistas, exijam o impossível”, processos revolucionários nos quais se manifestaram com força a luta prática dos trabalhadores contra os sindicatos, partidos, capitalistas e o seu Estado, contrariando os princípios tradicionais de organização e ação bolchevique e socialdemocrata, simplesmente desaparecem do quadro das revoluções dos anos 1960 e 1970 traçado por seu autor.

Sabemos que, nas sociedades capitalistas, o possível se encontra submetido ao permitido. Pois, se o desenvolvimento das forças produtivas possibilita a realização de novas formas de vida, contudo, estas permanecem impedidas pelas relações de produção capitalistas existentes. Entretanto, sabemos também que “as condições materiais (incluindo as condições culturais) influenciam o que pode e o que não pode ser feito, mas não o determinam em nenhum sentido unívoco”.[9] Afinal, mulheres e homens sempre sonharam sonhos “impossíveis” que, em períodos de ascensão revolucionária, foram materializados pela ação coletiva, dando corpo a seus desejos e expectativas. É nesses momentos que os seres humanos se tornam sujeitos potenciais da história, contrariando a condição de espectadores que os senhores de todas as épocas lhes impõem. Se seus objetivos parecem irrealizáveis, ou impossíveis de se atingir em períodos de refluxo ou descenso revolucionário, isto não significa que seus desejos e expectativas de autoemancipação tenham sido abandonados. “Palavras como ‘possível’ e ‘impossível’ têm uma dimensão histórica e uma dimensão imediata. O que hoje é impossível pode tornar-se realizável amanhã (…) Declarar uma revolução ‘impossível’ pode, em determinadas circunstâncias, contribuir para a impedir”.[10] É por esta razão que, segundo um relato de Phil Mailer, autor de Portugal: a revolução impossível? (1977), “houve debates infindáveis, que atravessaram continentes, sobre se a palavra [impossível] devia ser seguida de um ponto de interrogação”,[11] no título do seu livro. Já no artigo em questão, a opção por não usar o ponto de interrogação no título possui um claro significado: “deixamos de exigir o impossível” – e ponto. Ocorre aí uma recuperação neutralizadora da palavra de ordem de 68, pois não somente abstrai completamente o seu real significado histórico, como também inverte o seu sentido. Na crise revolucionária de maio-junho, o PCF esteve mais próximo dos gaullistas que dos estudantes e trabalhadores em greve, dos movimentos feminista e homossexual que, naquele período de abertura política e cultural, passavam a formalizar suas organizações. O PCF, que desde a greve geral de 1936 havia optado por ser um partido da ordem, se aproxima do gaullismo durante o período da Resistência, a partir de 1943. Em 1944, De Gaulle anistia o dirigente comunista Maurice Thorez, que por sua vez estabelecerá um acordo com o general em torno de um programa político, econômico e social que, até 1946, estabelecerá os pilares da Seguridade Social francesa. Este pacto tácito é conhecido na França como “gaullo-comunismo”, e tem sido requentado recentemente por políticos, empresários e intelectuais neoliberais para justificar o desmonte do que ainda resta do seu Estado de bem-estar, já bastante enfraquecido desde a década de 1990. No entanto, a crítica que aqui se delineia à aproximação entre comunistas e gaullistas, repousa sobre bases sociais e políticas opostas tanto à herança do gaullo-comunismo quanto do neoliberalismo. Sua origem é de base proletária e antiautoritária, se inscreve nas correntes antileninistas do movimento revolucionário das décadas de 1960 e 1970. Estas, por sua vez, atualizariam, no contexto dos “trinta anos gloriosos” (1945-1975), alguns princípios de luta do sindicalismo revolucionário, que desempenhou um importante papel nas grandes greves operárias da primeira década do século XX, bem como das esquerdas comunistas do período entreguerras. Não é por acaso que Jean Rabaut (1974), em seu estudo sobre a atuação dos “esquerdistas” franceses entre 1929-1944, deu a ele o seguinte título: Tout est possible! [Tudo é possível!].

Lênin foi o principal mentor e articulador da exclusão das alas minoritárias que ainda carregavam a ilusão de “exigir o impossível” por dentro do movimento comunista internacional, em sua dupla forma de organização, sindical e partidária, durante o período de bolchevização ou “russificação” da Terceira Internacional, sobretudo a partir de 1921. Tal processo foi centralmente motivado pelo questionamento que as alas minoritárias do movimento, principalmente de países ocidentais como Holanda, Alemanha, Inglaterra e Itália, voltavam contra a legitimidade da “política de compromisso” leninista. Há cerca de cem anos, no panfleto Esquerdismo: doença infantil do comunismo (1920), preparado para o II Congresso da Internacional Comunista, Lênin dirigia-se principalmente contra “os esquerdistas da Alemanha”, que “tomaram o seu desejo, a sua atitude político-ideológica pela realidade”. Na crise francesa de maio-junho de 1968, o movimento inverteria o sentido da crítica leniniana em seu favor, ao convertê-la nas palavras de ordem “Tomem seus desejos pela realidade” [Prenez vos désirs pour la réalité], ou “Não tomem seus desejos por banalidades” [Ne prenez pas vos désirs pour des banalités].

No léxico da tradição comunista, desde Marx e Engels, dá-se o nome de “utopismo” aos projetos de transformação social cuja realização é considerada impossível pela “análise materialista” do partido, que assim define o que é possível e o que não é de se realizar em nome do proletariado. Trata-se da lei de bronze do “realismo” e do “realizável”, em oposição, portanto, ao princípio utópico-concreto da esperança, conforme a formulação do teórico-crítico alemão Ernst Bloch. No panorama político do século XX, por diversas vezes e em diferentes países, os dirigentes comunistas lutaram para enquadrar ou reprimir abertamente as aspirações, sonhos e desejos de emancipação proletária que ultrapassavam os limites daquilo que o partido definia como possível e realizável. É preciso enfatizar, portanto, que os comunistas nunca “deixaram de exigir o impossível”, como o autor insinua em seu artigo, pois na crise revolucionária francesa de 1968, quando essas palavras de ordem foram lançadas, os comunistas se empenharam sobretudo para impedir a união entre as forças revolucionárias, estudantil e operária, que não apenas exigiam mas, principalmente, ousavam realizar o impossível. “Utopia? Aborde a questão como quiser. A nossa única alternativa é ousar o impossível ou viver de rastos”.[12]

 

Jamais deixamos de exigir o impossível (1)

 

2. Uma variante comunista da ideologia neoliberal do “fim da história”

 

O autor inicia seu artigo manifestando um romantismo nostálgico, ao afirmar que “parte substancial do que consideramos hoje pensamento crítico é produto de agendas de pesquisa, conceitos e teorias surgidos ou enriquecidas ao máximo nos anos 1950, 1960 e 1970 do século passado”, fruto de um “tempo glorioso” que simplesmente “acabou”. Além disso, conclui que “os últimos suspiros revolucionários foram a vitória do Vietnã sobre os Estados Unidos (1975), a Revolução Nicaraguense (1979), a Revolução de Saur no Afeganistão (1978) e a Revolução de Bukina Fasso (1983)”, esboçando uma espécie de versão comunista da ideologia nipo-americana do “fim da história”: “muitos riem do ‘diagnóstico’ e do triunfalismo expresso pelo ideólogo estadunidense. Eu, pelo contrário, acho que Fukuyama acertou”.

Se é inegável, por um lado, que o colapso do bloco capitalista de Estado entre 1989 e 1991, deixou para trás um campo de ruínas material e ideológico, ao varrer para a lata de lixo o já estilhaçado quadro de referências da esquerda tradicional, favorecendo, assim, a contrarrevolução neoliberal; por outro lado, não é menos verdadeiro que “a queda do comunismo de Estado revelou claramente a submissão da consciência política do movimento operário organizado aos princípios autoritários do socialismo, os quais se impuseram por décadas como a única alternativa ao sistema capitalista, como ‘O’ comunismo”.[13] De acordo com Immanuel Wallerstein, existe uma relação de continuidade entre as crises globais de 1968 e 1989, na medida em que “a revolução de 1968 sacudiu a fé no reformismo, incluindo-se o reformismo a que se chamava de revolucionário”.[14] Entretanto, a versão comunista do “fim da história”, baseada na suposição de que a implosão do bloco capitalista de Estado não teria provocado, no plano político, senão a afirmação de “um compromisso abstrato com a democracia e com o socialismo democrático”, oculta um dado importante da realidade histórica. Nesta última virada de século, renasceu em diversos países do mundo um forte movimento social de contestação à globalização neoliberal, como se viu nos protestos contra o encontro da Organização Mundial do Comércio, no ano de 1999, realizado em Seattle (Estados Unidos), contra a Cúpula das Américas, realizada em Québec (Canadá), e contra o G-8, em Gênova (Itália), no ano de 2001. Como não reconhecer a potência transformadora para uma libertação da “imaginação política”, manifesta nos protestos globais desencadeados no início da década de 2010, do norte da África (Tunísia, Egito, Líbia, Iêmen) à Europa ocidental (Inglaterra, Espanha e Grécia), dos Estados Unidos ao Brasil de junho de 2013 e das jornadas anticopa de 2014? Como não saudar a onda de protestos populares que varreu diversos países entre 2018 e 2019, da França ao Chile, de Hong Kong ao Equador, chegando às insurgências nos Estados Unidos e na Guatemala, no Peru e na Polônia, mesmo em um contexto de exceção como o de 2020?

O mesmo Wallerstein reconheceria, neste retorno da luta de classes revolucionária, especialmente na ebulição da chamada “primavera árabe”, ecos da “revolução-mundial” de 1968.[15] Para o sociólogo estadunidense, o significado da “corrente 68” reside justamente nos processos de libertação das chamadas forgotten people, “todas aquelas que foram oprimidas por causa de sua raça, de seu gênero, de seu pertencimento étnico, de sua sexualidade – com efeito, de sua alteridade”.[16] Também para os situacionistas, uma corrente fundamental da revolução-mundial de 1968, particularmente na França e na Itália, esta revolução visava a uma “descolonização total da vida cotidiana”. Portanto, não a uma parcial “autogestão do mundo existente pelas massas, mas à sua transformação ininterrupta”.[17] Como dizia um dos mais influentes membros da corrente situacionista, a ideologia neoliberal do “fim da história” não passa de “um agradável repouso para todo poder presente”,[18] inclusive em sua nova variante comunista.

 

Jamais deixamos de exigir o impossível (1)

 

Notas

[1] Paul Mattick. Biografia de Anton Pannekoek (1873-1960), 1960.
[2] Maurício Tragtenberg. “O partido único”. Folha de S. Paulo, 25/05/1981.
[3] Frêle Bruit [1976]. Paris: Gallimard, 2003, p. 898.
[4] Dionys Mascolo. Relatos reunidos por Maranne Alphant. “Une présence secrète”. Libération, 29/01/1984.
[5] Fernando Medeiros. “Genèse et projet des Cadernos de Circunstância”. Pedro Alcântara da Silva e Filipe Carreira da Silva. Ciências Sociais: Vocação e profissão: homenagem a Manuel Villaverde Cabral. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2013, p. 217.
[6] “Panfleto do Comitê de Ação do Anexo Censier” [21 mai. 1968]. Erick Corrêa e Maria Teresa Mhereb (orgs.). 68: como incendiar um país. São Paulo: Veneta, 2018, p. 168.
[7] João Bernardo. Estado: a silenciosa multiplicação do poder. São Paulo: Escrituras, 1998, p. 23.
[8] Comissões de Fábrica: um claro enigma. São Paulo: Entrelinhas/Cooperativa Cultura da UFRN, 1997.
[9] Maurice Brinton. “Posfácio”. Phil Mailer. A revolução impossível? Lisboa: Antígona, 2018, p. 378.
[10] Ibidem, p. 377.
[11] Mailer, 2018, p. 9.
[12] Raoul Vaneigem. “Ousar o impossível ou viver de rastos”. Flauta de luz – Boletim de Topografia, nº 7, abr. 2020, p. 184.
[13] Charles Reeve. O socialismo selvagem. Ensaio sobre a auto-organização e a democracia directa nas lutas de 1789 até aos nossos dias. Lisboa: Antígona, 2019, p. 279.
[14] “A reestruturação capitalista e o sistema mundial”. Perspectivas. São Paulo, n° 20/21, 1997/98, p. 261.
[15] Cf. “The contradictions of the Arab Spring”. Aljazeera, 14/11/2011.
[16] Tout se transforme. Vraiment tout? Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, 2013, p. 23.
[17] Internacional Situacionista. “Definição mínima das organizações revolucionárias” [15 mai. 1968]. Corrêa e Mhereb, 2018, p. 144.
[18] Guy Debord. Comentários sobre a sociedade do espetáculo, 1988, § XI.

 

A autoria das pinturas que ilustram o artigo é do artista português João Alves.

 

1 COMENTÁRIO

  1. Erick, a respeito da sua afirmação de que o governo português proibiu greves durante a quarentena, copio a resposta do João Bernardo a um comentário que eu havia feito reproduzindo essa mesma informação:

    “Emerson,

    Essa informação é falsa. O decreto que instalou o estado de emergência em Portugal não suspendeu o direito de greve. Permite ao governo suspender greves. Porém, desde o início da pandemia, a única intervenção governamental numa greve, aliás antes da declaração formal do estado de emergência, ocorreu numa greve dos estivadores do porto de Lisboa, em que foi imposta a requisição dos serviços mínimos, por se tratar de um ramo central na distribuição de bens. Note-se que a lei que autoriza a requisição dos serviços mínimos existe desde há muito na legislação portuguesa, e não se deveu ao estado de emergência, que só no dia seguinte recebeu a aprovação parlamentar.

    O estado de emergência foi aprovado no parlamento pelos votos favoráveis de todos os partidos, excepto as abstenções do Partido Comunista e de um partido ecologista ligado ao Partido Comunista, da Iniciativa Liberal (um partido da extrema-direita defensora do Estado mínimo) e de uma deputada independente.”

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