Por Giovanni Souza Martinelli*

Um tal romancista italiano, Luigi Pirandello, em um conto intitulado Tragédia de Uma Personagem, assinara que “é fácil, de fato, a gente querer ser isto ou aquilo; mas trata-se de saber se podemos ser como desejamos”. Esta sentença alude ao que Marx afirmara em seu Contribuição para a Crítica da Economia Política: “do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela ideia que de si mesmo faz, tampouco se pode julgar uma tal época de transformações pela consciência que ela tem de si mesma”. Estes dois pensadores mostram-nos que é insuficiente permanecermos presos à consciência dos indivíduos. Necessitamos, através da análise das relações sociais concretas, explicar a totalidade que envolve os discursos. Na atual conjuntura, observar-se-á, aos montes, análises que colocam os discursos como verdadeiros, sem constatar se isto ou aquilo é verossímil através da análise da realidade concreta. A análise cujo fio condutor são os discursos dos indivíduos, sem se remeter à totalidade das relações sociais, apenas poderá conduzir-se a uma mediocridade. Ainda pior seria se o fio condutor fosse discursos de indivíduos previamente medíocres, o que não poderia deixar de culminar em um poço ainda maior de mediocridade.

Estamos num prenúncio da eleição presidencial no Brasil. O ano de 2022 promete ser o ano em que as lutas de classes serão arrematadas e amortecidas pelo discurso eleitoral e pelas disputas interpartidárias. O ano de 2022 será bastante semelhante àqueles anos de eleições — que ocorrem de dois em dois anos —, no entanto, terá suas especificidades: pandemia; ascensão da moral conservadora falsamente polarizada com sua própria imagem espelhada — a moral progressista —; e, o mais importante, um declínio da acumulação de capital que exige dos futuros burocratas estatais certa competência (o que, para a tristeza dos burgueses, está em falta).

Sem embargo, o imbróglio eleitoral gera o imbróglio das (falsas) análises de conjuntura — que são muito mais conjecturas do que propriamente análises de conjuntura, uma vez que é uma tarefa árdua conseguir encontrar, nestas, reflexões aprofundadas sobre os acontecimentos. Estas tentativas de análises se tornam mais diversas na medida em que se aproximam as eleições — Enrico, em um bar, da mesma forma que aposta no Grêmio em detrimento do Internacional, se tratando do futebol brasileiro, me informa que apostará em um determinado candidato como futuro presidente da nação; Luca, preocupado com a falta de movimento em seu negócio, acaba compartilhando suas reflexões sobre qual o melhor candidato para o cargo. Na Televisão e na Internet já observamos dados estatísticos dos possíveis candidatos e análises de cientistas políticos que, retirando as palavras rebuscadas, suas análises possuem o grande mérito de serem tão profundas quanto as de Enrico e Luca.

Nas plataformas anarquistas e autonomistas também podemos perceber o surgimento de notas e teses sobre a conjuntura. E visando contribuir com o avanço dessas análises, reflito aqui sobre o chamado “conjunturalismo”. O conjunturalismo é uma falsa análise da conjuntura, dado que não analisa o que a gerou e nem suas tendências e contratendências, apesar de se colocar como uma real análise. A conjuntura seria um conjunto de acontecimentos atuais de uma determinada localidade gerados pelas lutas de classes contemporâneas e sua análise seria a explicação da mesma. Uma explicação tem como propósito demonstrar o conjunto de determinações que geraram um fenômeno específico, sobretudo, sua determinação fundamental. Uma real análise, por sua vez, se ampara na historicidade, totalidade e radicalidade. Sem explicação não há análise e sem ela não há, obviamente, análise de conjuntura. Logo, o que encontramos na maioria das “análises” de conjuntura? Ilusões expressas através do conjunturalismo, que não deixam de ser diferentes formas assumidas pelo fetichismo da conjuntura, isto é, são ilusões específicas que isolam um conjunto de acontecimentos atuais daquilo que efetivamente o gerou — as relações sociais concretas determinadas fundamentalmente pelas lutas de classes. Por isso, torna-se necessário refletir sobre algumas das principais peculiaridades do conjunturalismo. A mediocridade da análise engendra a análise da mediocridade.

I. Conjunturalismo Descritivista

O conjunturalismo descritivista é aquele que se limita apenas a descrever certos acontecimentos, sem efetivar uma análise sobre estes. Logo, a inalterada descrição se coloca como suficiente para guiar ações, opiniões etc. No entanto, deve-se perceber que a escolha dos acontecimentos descritos é igualmente produto de uma predisposição mental de quem realiza a descrição. Na contemporaneidade, existem diversos acontecimentos que são impossíveis de serem descritos em sua totalidade. A escolha desse ou daquele acontecimento a ser descrito é produto de interesses, sentimentos, valores, modo de vida etc. Não podemos esquecer que quem pretende realizar uma análise de conjuntura é um ser humano, ativo e concreto, que pertence a uma classe social específica e possui igualmente interesses específicos. Conscientemente ou não, a escolha dos acontecimentos descritos perpassa estes interesses.

A determinação preponderante para o conjunturalismo descritivista é o cotidiano, grifado pela naturalização, simplificação e regularidade. E o cotidiano, no capitalismo, é determinado pela sociabilidade gerada pelo modo de produção capitalista circunscrito, em si, pela competição, mercantilização e burocratização, bem como pelo modo de vida de cada classe social. Então, o cotidiano de um lojista, por exemplo, pode o levar a descrever as ações de políticos empenhados em aumentar os impostos sobre a mercadoria vendida. Isto, para ele, já seria uma satisfatória análise de conjuntura, dado que seu interesse seria a redução de impostos. Portanto, o conjunturalismo descritivista está preso no âmbito das representações cotidianas.

O interessante do conjunturalismo descritivista é evidenciar seus limites: a) a descrição de acontecimentos não é suficiente para explicar a conjuntura; b) com a descrição ocorre uma naturalização da sociedade capitalista, uma vez que não se questionam as relações sociais concretas; c) a inalterada descrição é um reducionismo da realidade, que culmina em apresentações de problemas e, por sua vez, suas soluções sempre se dão no interior da sociedade capitalista; d) a mera descrição é também anistórica, pois o conjunto de acontecimentos atuais seria resultante de fatos dados, como se fossem naturais, mera vontade de alguém ou de acidentes fortuitos. O fetichismo da conjuntura, neste caso, dá-se pela naturalização fornecida pelo cotidiano, colocando os acontecimentos como naturais e simples, gerando um certo pragmatismo.

II. Conjunturalismo Oportunista

A determinação medular do conjunturalismo oportunista é a tentativa de satisfazer interesses particulares através da manipulação. Esta forma de conjunturalismo é bastante comum nas análises dos partidos políticos em geral e movimentos sociais reformistas. Estes, por exemplo, tentam elencar acontecimentos (que podem ser falsos), visando manipular sentimentos com o objetivo de aglutinar apoio. Esta forma de fetichismo da conjuntura isola acontecimentos (seja a intolerância de alguém frente a grupos sociais, perigos de um suposto “comunismo”, de um suposto “fascismo” etc.) para justificar alguma organização, perspectiva política ou até ações individuais.

É crucial alertar que a base social do conjunturalismo oportunista são interesses de classe, mas interesses que precisam de apoio para poderem ter condições de serem satisfeitos. Isto é, o propósito da análise seria apenas convencer as pessoas — geralmente as classes inferiores — a aderirem a algum projeto que não é verdadeiramente de seu interesse, gerando a dissimulação e a contradição entre objetivos declarados e verdadeiros. O conjunturalismo oportunista intensifica, oculta, inventa acontecimentos para mobilizar apoio e concretizar objetivos próprios, particulares.

III. Conjunturalismo Ideológico

O conjunturalismo ideológico é mais complexo por este ser influenciado por ideologias (pós-estruturalismo, multiculturalismo, funcionalismo, estruturalismo etc.). No entanto, apesar de ser mais complexo, ainda é um fetichismo da conjuntura, isto é, não é uma análise dos acontecimentos que leva em consideração a forma particular que os mesmos se inserem na totalidade, que é a sociedade, e nem leva em consideração a historicidade desses acontecimentos.

A base social do conjunturalismo ideológico é a classe intelectual. A partir de sua própria bagagem cultural, o ideólogo busca realizar análises de conjuntura, dando a aparência de uma análise profunda, que na realidade é superficial. Nesta forma de fetichismo, o que impera é colocar determinações que não são fundamentais como se fossem, realizando uma verdadeira inversão da realidade a partir de alguma ideologia. Isto é, pode-se colocar a cultura (pós-estruturalismo), organizações políticas (ciência política), os problemas psíquicos (psicologia) etc., como a determinação fundamental para a conjuntura, sendo que todas essas determinações não são fundamentais. Ao efetivar esta inversão da realidade, ocorre o ocultamento da determinação fundamental que são as lutas de classes. O que é percebido como determinação fundamental (e que na realidade não é) dependerá do ideólogo e da ideologia que o influencia. Por esta razão, o conjunturalismo ideológico se caracteriza por ser anistórico, reducionista e antinômico.

Por exemplo, pode-se analisar o discurso (suposta determinação fundamental) de Bolsonaro chegando à conclusão que o mesmo é nocivo para as “subjetividades” humanas e, por isso, temos que combatê-lo em prol de uma concepção que faria bem para as “subjetividades humanas” (antinomismo). Nesta análise, a intolerância presente no discurso de Bolsonaro transmuta-se em “nocividade para a subjetividade”, algo não definido e abstrato, sendo esta a principal determinação para combatê-lo (reducionismo). No entanto, o discurso de Bolsonaro está inserido nas relações sociais concretas, isto é, o seu discurso não está apartado das lutas de classes. Bolsonaro tenta justificar suas ações através do combate à moral progressista, no intuito de continuar gerindo o Estado burguês, que nada mais é que o comitê de negócios da burguesia. Devemos combater Bolsonaro não porque o mesmo é “nocivo para as subjetividades humanas” (dado que a “subjetividade” não existe concretamente, pois o que temos é consciência, sentimentos, valores etc.) e sim porque ele é representante do bloco dominante, interessado em reproduzir a sociedade capitalista, isto é, a dominação e exploração. Estes objetivos reais de Bolsonaro, no final, não se diferenciam em nada dos objetivos e interesses do bloco progressista (PT, PSOL, partidos leninistas, movimentos sociais reformistas etc.), que mesmo apesar do discurso cheirar à moral progressista ou ser “politicamente correto”, querem igualmente conquistar o poder estatal e reproduzir a dominação e exploração burguesa.

IV. Conjunturalismo e Lutas de Classes

Estes três exemplos apontam para a existência do fetichismo da conjuntura. De acordo com Marx, o fetichismo é um fenômeno da consciência que é gestado pelo trabalho alienado, isto é, o controle do trabalho do trabalhador gera determinações sobre nossa consciência. É através da divisão social do trabalho (principalmente a divisão entre trabalho intelectual e manual) — imprescindível para o controle do trabalho do trabalhador — que é engendrado o fetichismo. Toda a sociedade, não apenas a classe produtiva, sofre com a alienação do trabalho, sendo esta reproduzida para a totalidade das relações sociais. O fetichismo, apesar de nascer em nossa consciência, foi concebido nas relações de produção, circunscritas pelo trabalho alienado.

Em relação ao fetichismo da conjuntura, suas determinações residem nos interesses gerados pelas classes sociais. A análise de conjuntura se torna fundamental para, por exemplo, os partidos políticos traçarem estratégias visando conquistar o aparato estatal. Devemos relacionar sempre uma tentativa de análise de conjuntura com as lutas de classes e perceber a qual classe social esta está expressando. Até as tentativas de análises presas nas representações cotidianas expressam interesses de classe. Da che pulpito viene la predica! É essencial ir além das aparências e enxergar os acontecimentos atuais como particularidades de uma totalidade concreta. A totalidade concreta, em nosso caso, é a sociedade capitalista.

Logo, uma forma de evitar o conjunturalismo é apreender o que é a sociedade moderna e, apenas depois disso, podemos efetivar uma real análise de conjuntura. Devemos entender o atual regime de acumulação, a acumulação de capital, a radicalidade das lutas de classes, o Estado burguês, a hegemonia burguesa etc. Após a compreensão da sociedade moderna e de sua atual fase é que podemos relacionar o conjunto de acontecimentos atuais com esta totalidade concreta. Unicamente assim, podemos escapar do fetichismo da conjuntura, uma vez que seremos capazes de não isolar a conjuntura do que efetivamente a engendrou.

Para não cair no alçapão do conjunturalismo, o melhor remédio é a perspectiva do proletariado. O conjunturalismo se baseia em interesses de classes particularistas ou ambíguos. Então, através das lentes da classe que tem o potencial revolucionário de nossa época é que se fundamenta uma análise que possui radicalidade (que vai até a raiz), totalidade e historicidade. Uma análise, portanto, que escaparia do conjunturalismo, se entrelaçando materialmente com o projeto revolucionário.

Nota

*Email: [email protected]

As obras utilizadas para a ilustração deste artigo são do pintor estadunidense Bradley Walker Tomlin (1899-1955).

3 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns ao sr. Giovanni pelo excelente texto!

    Gostaria apenas de fazer uma observação: o autor diz existir “tipos” de conjunturalismo: descritivista, oportunista e ideológico. No entanto, o conjunturalismo não é um ou outro, mas pode ser mesclado. Pode ocorrer de ser descritivista e oportunista; oportunista e ideológico; ideológico e descritivista etc. Esses “tipos” de conjunturalismo beira mais ao método weberiano do que ao método dialético.

  2. Meus cumprimentos, Paulo H.!
    Grato por seu elogio.

    Respondendo a sua observação: o método dialético possui algumas categorias, tais como essência e existência. Eu apontei que a essência do conjunturalismo é isolar os acontecimentos atuais do que o gera efetivamente. E existem diversas formas (e não “tipos”) disso ocorrer.
    A essência do conjunturalismo seria o fetichismo da conjuntura e a forma disso se manifestar varia.

    Você está correto, no entanto, de mencionar que o conjunturalismo se manifesta “mesclado”, mas o que defendi é que a determinação fundamental de como o conjunturalismo se manifesta são os interesses de classe e a bagagem cultural de quem a realiza. Isto é, a determinação existencial e formal do conjunturalismo e não sua essência.

    Para facilitar o entendimento, podemos citar alguns exemplos: quando um partido político publica uma análise de conjuntura, este foi possível devido seus interesses de conquistar o poder estatal. Essa é a determinação existencial do conjunturalismo. Sem o interesse de conquistar o poder político, esta análise simplesmente não existiria.

    Da mesma forma, poderíamos citar um professor universitário: este poderia analisar a conjuntura e afirmar que o Partido dos Trabalhadores seria o melhor partido, pois este supostamente investiu na Universidade pública etc. Sem o interesse de classe desse professor, não existiria tal análise de conjuntura.

    O meu método não é weberiano exatamente pelo fato que eu demonstrei as FORMAS de manifestação do conjunturalismo (e nem foram todas, foram as principais). E demonstrei que as FORMAS de manifestação são determinadas pelos interesses de classe e pela bagagem intelectual.

    Se a análise de conjuntura têm como interesse satisfazer interesses de classe particulares através da manipulação, esta é oportunista.

    Se a análise de conjuntura é ancorada no cotidiano, esta tende a ser descritivista.

    Se a análise tem como ponto de partida e inspiração uma ideologia, esta é ideológica.

    Não estou afirmando que se for ideológica, não haverá “descritivismos”, mas estou afirmando que se a ideologia for a determinação formal para a análise, esta é ideológica.

    Não estou afirmando que um partido político não pode realizar uma análise oportunista através de uma ideologia, mas estou afirmando que se o oportunismo for a determinação existencial para esta análise, esta é oportunista.

    Obrigado por sua observação.

  3. Interessante sua resposta. Estou satisfeito.
    Apenas é lastimoso, no entanto, que você não incorporou esses esclarecimentos metodológicos ao seu texto. É imprescindível.

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