Por Passa Palavra

Um debate que muito tem ocupado os fóruns digitais também se fez presente dentro do coletivo do Passa Palavra. Decidimos torná-lo público, na expectativa de que estimule novas reflexões.

Robson
Então, acredito que podemos dar início a esse debate pelo reconhecimento do que devia ser óbvio, o fato de que isso que estamos vivendo não é um fenômeno circunstancial, de um ou outro país, e claro, não começou com Bolsonaro. Alguém como Bolsonaro pôde vencer em 2018 porque estávamos, desde 2015, talvez, em um processo de acirramento da violência política contra os trabalhadores e a esquerda. Tem um levantamento feito no comissariado da ONU para os Direitos Humanos que mostra que entre 2015 e 2019 em média, no Brasil, um ativista foi executado a cada oito dias. Acrescentem a isso o aumento sem precedentes de armas de fogo nas mãos de civis. É curioso notar também que a partir de 2015 a cobertura vacinal começou a cair no país. Doenças já erradicadas, como o sarampo, acabaram voltando. Pode ser que o Lula vença ano que vem, seja com Magazine Luiza de vice, seja com Alckmin, pouco importa, mas é difícil imaginar que esse quadro vá ser dissipado facilmente. O governo Bolsonaro é um consórcio de elementos bem diversificados que extrapolam muito o bolsonarismo, mas enquanto movimento ele está aí, não conseguiu se institucionalizar enquanto partido, o Aliança pelo Brasil, mas tem alguma organicidade se manifestando em frentes que são difusas, irregulares, com policiais, caminhoneiros, mineradores,… Parecem não ter ainda muito fôlego, mas isso é uma coisa que pode virar rápido nesse ambiente que a gente vive, estimulado pela “democracia por agressão”, como escrevemos. É um cenário muito perigoso para os trabalhadores e a esquerda, o que se soma à exasperação de fome, desemprego e miséria.

Rudson
Algo que uma questão central no mundo hoje, mas não no Brasil, é a questão dos imigrantes, sempre muito explorada politicamente. Por que esse fluxo migratório agora para Belarus? Uma coisa é a reação do governo bielorruso às sanções internacionais que vem sofrendo, mas o que tem levado essa enorme massa a deslocar-se, buscando uma vida melhor na Europa? Também para os EUA foi retomado com maior intensidade o fluxo migratório. No Brasil não é um problema inexistente, mas é uma questão secundária, não mobiliza o debate público. Mobilizava mais no passado, em especial contra nordestinos em migração para outras regiões, como a sudeste. Mas não é hoje um eixo de discussão e identidade política.

Falando de Brasil, Bolsonaro veio com uma promessa fascista de reestruturação do Estado. Mas ele é uma pessoa completamente inepta e agora está na mão do Centrão. Precisamos entender como foi que isso aconteceu, como o seu projeto foi derrotado. O Centrão vai tentar tirar tudo o que puder tirar de Bolsonaro e colocá-lo no bolso.

Quanto às eleições de 2022, tenho dúvidas que o Lula vença. Só mesmo no ano que vem é que vamos conseguir avaliar melhor. Qual será o papel do Sérgio Moro?

Em termos de Europa, aquilo que expressava a extrema-direita, aquelas figuras que se destacavam, centralizavam as referências, estão perdendo espaço. Na França a Le Pen vai perdendo espaço para o Éric Zemmour, na Itália se dá o mesmo, com os Irmãos da Itália rivalizando com a Liga. O reforço do fascismo radical na Europa parece ter como um de seus eixos o Vox na Espanha. Este parece ser o núcleo, o vetor mais forte do fascismo radical, e Bolsonaro, que antes se ligava mais ao Bannon, está indo nessa maré, buscando uma aproximação com o Vox. Existe um processo de afirmação de um fascismo radical que alega que o fascismo conservador está tentando se integrar ao status quo, tornando-se moderado. O mesmo tipo de acusação é feita ao próprio Bolsonaro, pela base radical decepcionada com os desdobramentos das manifestações do 7 de setembro. Como Bolsonaro vai responder a isso?

Bolsonaro vai para o último ano do governo sem ter realizado a maior parte de sua própria agenda. No máximo, a questão ambiental. Em políticas para a educação, na agenda de costumes… ele não avança, acumula derrotas. O Auxílio Brasil é uma tentativa de retomar a popularidade, de ampliar uma base proletária, mas quando pretende colocar em prática seu projeto ideológico depara com derrotas, impostas tanto pelo Congresso quanto pelo Judiciário, pelos governadores, pelas Forças Armadas e outras instituições. Para fazer frente a isso tentou prosseguir a tática de promover o caos, mas as instituições reagiram firmemente e, sobretudo depois do 7 de setembro, se acomodou numa posição em que fica refém do Centrão e perde apoio de sua base radical.

Robson
Um dos pontos importantes do trabalho do Benjamin Teitelbaum, no livro Guerra pela eternidade, foi ter chegado a alguns elos formados entre a extrema-direita no mundo – passando por Hungria, Rússia, EUA, Brasil, Inglaterra, Itália – e ter identificado algumas lógicas e propostas que são caras aos movimentos fascistas e populistas de direita hoje. O Teitelbaum entrevistou o Olavo de Carvalho, é uma conversa em que fica clara a necessidade de destruir as universidades, o financiamento da cultura,… Também no governo Trump houve o cuidado cirúrgico na indicação de ministros não só ineptos mas sobretudo adversários dos programas estruturais de suas pastas. Então, não concordo que o governo Bolsonaro acumule derrotas nas suas pautas estratégicas, porque a destruição também faz parte desse processo.

O olavismo foi responsável pela indicação de pelo menos dois ministros, o Ricardo Vélez que ficou pouco tempo no Ministério da Educação, e o Ernesto Araújo, que ficou no Ministério das Relações Exteriores “até ontem”, sem se preocupar em fazer do Brasil um país pária no cenário internacional “globalista”. A força do olavismo e mesmo do bolsonarismo dentro do governo e do Estado não tem qualquer comparação com o que acontece há muito mais tempo na Hungria ou na Nicarágua, em que as instituições públicas – universidades, judiciário, parlamento,… – parecem totalmente instrumentalizadas ou em um forte processo de instrumentalização pelo grupo político à frente do Estado, além das perseguições à imprensa e oposição e aos trabalhadores. Mesmo que os marcos ideológicos não sejam tão claros e coesos aqui, a destruição está na ordem do dia por aqui, é programática.

Não é desimportante também a verborragia, os enunciados absurdos, que chocam e pautam a imprensa e a oposição. Esse empenho na farsa, no engodo, mesmo com os recuos sistemáticos, alimenta cotidianamente o próprio campo e vai criando uma plasticidade, uma aceitabilidade para o fascismo. Foi assim na própria Alemanha Nazista, antes de que eles tivessem força política real os nazistas alimentaram a sua base com engodo e isso contribuiu politicamente com a formação de um campo social e militar imbatível.

Quanto ao Congresso, é no mínimo controversa essa fragilidade. Se entendemos que se trata de um consórcio de muitas forças políticas, de muitos interesses em jogo, é fato que o partido bolsonarista (que nem conseguiu se estruturar, foi um fiasco, mas que não deixa de ecoar em vários partidos) não canta de galo, mas o governo tem tido votações favoráveis.

Rudson
Quanto às pautas de costumes, a politização das Forças Armadas, etc., Bolsonaro não conseguiu realizar de forma concreta estas agendas. O que ele fez de modo mais profundo talvez tenha sido o desmonte das políticas de proteção ambiental, mas com um alto custo em dinheiro e em prestígio internacional. Não conseguiu organizar um partido próprio. Ele é presidente e não consegue organizar um partido! Muita gente se elegeu na onda bolsonarista, depois não quis integrar um partido com o presidente do país. E Bolsonaro também não conseguiu tomar o controle de um partido já existente. O bolsonarismo, é claro, representa uma ameaça, mas também é caótico, fragmentado, cortado por divisões internas.

Ruan
Do ponto de vista ideológico, no sentido forte, no Chile e na Argentina temos o ultraliberalismo ou paleolibertarismo se aliando com os movimentos populistas da direita tradicional. É o encontro entre pautas antiestatistas liberais com valores da extrema direita tradicional.

No Brasil, o apelo proletário veio pela pregação anticorrupção, conservadorismo, a “defesa da família”, dos “bons costumes”, enquanto o apelo burguês veio pelo liberalismo, com Paulo Guedes, mesmo sendo um outsider. Acreditava-se em reformas profundas, Estado mínimo, etc. Mas o fim do teto fiscal é uma marca estatista clara. Vemos assim que os ultraliberais e anarcocapitalistas não se criaram politicamente no Brasil. Aí também se dá o giro ao centro.

No Chile essa turma pode chegar a 20% dos votos, podem até ganhar, mesmo que há pouco tenha havido uma grande rebelião popular. Lá, como em talvez toda a América Latina (à exceção do Brasil), a agitação anticomunista em torno dos medos de “virar” Venezuela e Cuba é muito forte.

Falando de Cuba e Venezuela, Pablo Stefanoni (historiador e jornalista argentino) escreveu sobre o uso de criptomoedas nesses países e em outros lugares em que as condições de vida a instabilidade financeira fazem com que essas moedas tenham um apelo maior. Têm tido sucesso os criptojogos, sendo que um dos principais hoje, um dos que faz mais sucesso, foi desenvolvido por uma empresa vietnamita.

E assim chegamos a um cenário desenhado e defendido pelos anarcocapitalistas, um ambiente social e econômico ultrafragmentado. Será que isso tem relação com a economia da viração? Será isso uma tendência de novas relações sociais e dinâmicas de trabalho? Isso pode eventualmente se encontrar com a política, e com a política da extrema-direita. Qual será o resultado?

Raniellen
E as redes sociais, como elas têm afetado esse campo político? Cresce o uso do Telegram, que permite mais funções e grupos muito maiores que o Whatsapp. Assim eles estão chegando nas juventudes. No Chile a campanha da extrema-direita com o Kast foi feita pelo TikTok. É um apelo muito forte junto aos jovens. Na Argentina isso também acontece em torno do Milei. A extrema-direita está se projetando como “descolada”.

Têm sido feitos estudos mostrando que em redes como o Twitter, mas não somente aí, o debate político tende para a direita. Como as empresas interpretam isso? Em que medida atuam para isso?

Tem também, ainda, o Facebook, com grupos fechados que são o puro desfile de racismo, xenofobia e tudo o que existe de mais reacionário, em espaços de muita “intimidade” e confiança.

Ruan
Importante acrescentar que existe uma baixíssima integração da população ao sistema político no Brasil. Dentre os partidos, só o PT tem algum enraizamento social. É muito difícil fidelizar eleitores, criar um grande sentimento e movimento nacionais.

Robson
Um elemento pontual que pode ser acrescido no rol de dificuldades específicas que os movimentos de extrema-direita têm para se criar no Brasil é o relativo sucesso da vacinação contra a covid-19. Parece que aqui antivaxx não se cria. Não temos, como os EUA, 40% da população decidida a não se vacinar. É muita loucura, 40%, em cima de uma população nacional que está entre as maiores do mundo! Somos mais pragmáticos? Ou somos incapazes de desprezar uma boa e longa fila? Será também por isso que o André Esteves, do banco BTG, naquela conversa com investidores que circulou pelas redes, não leva a sério o bolsonarismo? A performance econômica do Brasil, comparada a de outros países da região, como a Argentina, não está tão mal.

Rudson
Pela estrutura descentralizada do sistema de saúde no Brasil, a performance da vacinação tem muito mais relação com os estados e municípios. Esse índice de vacinação deve muito mais aos demais entes da federação, não ao governo federal, que tentou sabotar os esforços de contenção da disseminação da covid-19. E aqui, como em vários outros pontos, a gente precisa dimensionar o Estado Amplo e o Estado Restrito. O grosso da vida segue apesar dos governos. A Bélgica, por exemplo, já ficou mais de 600 dias sem governo, o parlamento sem conseguir chegar a um acordo e compor um governo, e a vida segue. O Estado Amplo mostra que consegue dirigir a sociedade.

O grande capital no Brasil desconsidera o bolsonarismo. Há pouco a Petrobrás reagiu imediatamente às acusações de Bolsonaro relativas ao aumento dos preços dos combustíveis, veiculando comerciais de TV rebatendo diretamente as acusações do presidente. As grandes empresas, por sua vez, mantêm-se alheias à ideologia bolsonarista e promovem o identitarismo que, claro, atende melhor aos seus interesses. Bolsonaro foi apoiado pelo grande capital, mas para que pudesse implementar as reformas econômicas defendidas pelo empresariado e pelas instituições de governança global, mas a verdade é que o PT poderia implementar essas mesmas reformas e de forma mais competente, afinal as políticas econômicas do PSDB foram em grande medida mantidas nos governos petistas, não houve uma ruptura com as políticas econômicas de interesse do grande capital. Nas eleições os capitalistas investem sempre naqueles que têm chances de vencer, de ambos os partidos em disputa, preparando o terreno para manter as melhores relações com quem quer que vença.

As obras utilizadas para ilustrar este artigo são de Käthe Kollwitz (1867-1945).

1 COMENTÁRIO

  1. Entendo mais da Extrema Direita do que da Extrema Esquerda. Cada dia que passo neste mundo,menos compreendo a extrema esquerda,ou o que ainda for este nomeado por esse nome.

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