Por João Bernardo

«Morri sempre morri muito», escreveu Miguel Serras Pereira a abrir um poema sobre o amor, e insistiu no começo da estrofe seguinte «Morro sempre morro muito», para terminar a última estrofe «Morri muito morri sempre / nem a morte sobrevive». A morte está entrelaçada com o amor na poesia portuguesa, não existe um sem a outra. Na segunda metade do século XV João Roiz de Castel-Branco foi um daqueles que abriu na música da linguagem os caminhos que levaram a Camões, e num poema célebre traçou o que haveria de ser o tema inesgotável da cultura de um povo.

Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.

Partem tão tristes os tristes,
tão fora d’esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Amália Rodrigues canta Partindo-se, de João Roiz de Castel-Branco,
com música de Alain Oulman.
Na guitarra está Fontes Rocha e na viola Pedro Leal
.

Escrevi que na poesia portuguesa o tema do amor se entrelaça com o da morte, mas é mais do que isso, porque os dois temas se fundem e confundem, a ponto que falar de um é nomear o outro. Como é possível que seja este o eixo, ou antes o âmago, da cultura de um povo? «Que povo é este, que povo?», perguntou Vasco de Lima Couto há mais de meio século, e fazer a pergunta é confessar que se ignora a resposta.

Que povo é este, que povo,
Que compra os rios que tem?
Que vende a terra pequena
E não sabe donde vem?

Que povo é este, que povo,
Que respira sem garganta?
Que chora porque tem frio
Mas não tem sol quando canta?

Que povo é este, que povo,
Que é poeta e se alimenta
De tanta maré vazia
No mar que ele próprio inventa?

Que povo é este, que povo,
Que tenta um sonho esmagado?
É o povo donde eu venho
Todo por dentro amarrado!

António Mourão canta Que povo é este, que povo, de Vasco de Lima Couto,
sobre uma música tradicional de fado,
embora se engane na primeira estrofe e troque «
compra» e «vende».
Ignoro quem está na guitarra e na viola
.

A revolução encetada com o 25 de Abril de 1974 encheu o país de cantores heróicos, quero dizer, vates de heroísmos imaginados e revoluções idealizadas. Como eu os detestava! Banhámos numa onda de apelos e palavras-de-ordem, em verso e com acompanhamento instrumental, recheados de optimismo e da promessa que o sofrimento pessoal iria acabar — como se toda a infelicidade viesse só da exploração! Já Ivan Karamazov, num dos seus sonhos, entendera o enorme peso da liberdade, o sofrimento trazido pela responsabilidade de ser livre. Numa humanidade sem sofrimento, em que as mulheres e os homens fossem inteiramente felizes, não haveria estímulo para mudar as situações, para inovar, para criar algo que se pretendesse melhor ou, pelo menos, diferente. Nada distinguiria essa sociedade dos formigueiros e das colmeias. O fim do sofrimento é a mais perversa distopia que alguém pôde conceber. Seria o fim da história, a liquidação do futuro. Em 1975 comecei a esboçar um panfleto em que contrapunha aos lugares-comuns dos bem-aventurados cantores de hinos as angústias seculares do fado, que era então denegrido e marginalizado. Imaginara até um título, Cartas de Bizâncio Cercada pelos Bárbaros, mas não tive ocasião de escrever o panfleto, porque aqueles novos bárbaros foram afastados pelo golpe da direita militar em 25 de Novembro de 1975, vencidos pelos velhos bárbaros que, valha-lhes isso, tinham a qualidade talvez única de gostar do fado. E o povo, esse, permaneceu o mesmo, «todo por dentro amarrado».

Pelo tema e pela tristeza subjacente, aquele poema de Vasco de Lima Couto soa-me muito perto de outro, de Pedro Homem de Mello.

Povo que lavas no rio,
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão.
Pode haver quem te defenda,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida não.

Fui ter à mesa redonda,
Beber em malga que esconda
O beijo de mão em mão.
Era o vinho que me deste
Água pura, fruto agreste,
Mas a tua vida não.

Aromas de urze e de lama,
Dormi com eles na cama
Tive a mesma condição.
Povo, povo eu te pertenço
Deste-me alturas de incenso,
Mas a tua vida não.

Amália Rodrigues canta Povo que lavas no rio, de Pedro Homem de Mello,
com música de Joaquim Campos.
Na guitarra está José Nunes e na viola Castro Mota
.

E assim como Vasco de Lima Couto, quando escrevia «Que povo é este, que povo […] É o povo donde eu venho», sentia a proximidade e ao mesmo tempo a distância, também Pedro Homem de Mello clamou «Povo, povo eu te pertenço / Deste-me alturas de incenso / Mas a tua vida não». No Povo que lavas no rio, porém, com o tema de um povo a que se pertence mas cuja vida não se consegue obter entrelaça-se um tema menor, o do amor entre homens. A «malga que esconda / O beijo de mão em mão» e «Aromas de urze e de lama, / Dormi com eles na cama / Tive a mesma condição» foram linhas ousadas demais para o fascismo puritano de Salazar. Mas o principal, a tensão em que se tece todo o poema, é o refrão «Mas a tua vida não», marcando a distância no exacto momento da proximidade. É isto o amor, qualquer amor, o próprio lugar do sofrimento. «Il n’y a pas d’amour heureux», «nenhum amor é feliz», escreveu Aragon, que foi muitíssimo melhor poeta do que comunista.

A proximidade e a infinita distância, sinónimos do amor, são o grande tema do fado, o amor infeliz, o que significa o amor e a morte, morte imediata ou adiada pela separação, e aquela distância é o mar e o marinheiro que o percorre. «Disse-te adeus e morri», escreveu Vasco de Lima Couto, ecoando, cinco séculos depois, João Roiz de Castel-Branco, quando dissera acerca dos seus olhos, no momento da despedida, «da morte mais desejosos / cem mil vezes que da vida». E pairando acima de tudo, bela e inalcançável numa elegância desenhada em curvas simples, a gaivota.

Disse-te adeus e morri.
E o cais, vazio de ti,
Aceitou novas marés.
Gritos de búzios perdidos
Roubaram dos meus sentidos
A gaivota que tu és.

Gaivota de asas paradas
Que não sente as madrugadas
E acorda à noite a chorar.
Gaivota que faz o ninho
Porque perdeu o caminho
Onde aprendeu a sonhar.

Preso no ventre do mar,
O meu triste respirar
Sofre a invenção das horas,
Pois na ausência que deixaste,
Meu amor, como ficaste,
Meu amor, como demoras.

Amália Rodrigues canta Disse-te adeus e morri, de Vasco de Lima Couto,
com música de José António Sabrosa.
Nas guitarras estão Domingos Camarinha e o conjunto de guitarras de Raul Nery
e na viola está Castro Mota
.

Não existe amor sem separação, por isso não existe amor sem dor, e quando não é a separação da distância, do mar, da viagem, é a separação no exacto instante do amor, «eu te pertenço […] Mas a tua vida não». A irredutível individualidade, momentaneamente superada na fusão do orgasmo, e de cada vez reafirmada numa individualização sempre mais cruel. No poema que desencadeou esta deambulação, Miguel Serras Pereira falou «do rio que esconda-te ou dês-mo / és tu até ao mais fundo / a menos que seja eu mesmo». O amor tenta iludir a solidão, e a solidão regressa forte e consigo traz a distância e a morte do amor. Uma vida condenada ao sofrimento, fadada pelo fado, num sofrimento herdado de toda uma linhagem de mágoas anteriores, o que é isto senão um enorme cansaço?

Por trás do espelho quem está
De olhos fixados no meus?
Alguém que passou por cá
E seguiu ao Deus-dará
Deixando os olhos nos meus.

Quem dorme na minha cama
E tenta sonhar meus sonhos?
Alguém morreu nesta cama
E lá de longe me chama
Misturada nos meus sonhos.

Tudo o que faço ou não faço
Outros fizeram assim
Daí este meu cansaço
De sentir que quanto faço
Não é feito só por mim.

Ana Moura canta Cansaço, de Luís de Macedo,
com música de Joaquim Campos.
Na guitarra está José Elmiro Nunes, na viola Jorge Fernando e na viola baixo Filipe Larsen
.

Luís de Macedo, o poeta de Cansaço, diplomata na embaixada de Portugal em Paris, teve no fado uma presença discreta, mas imperecível, porque foi ele quem em 1962 apresentou a Amália, grande senhora desde há muito consagrada, o jovem Alain Oulman, filho de franceses mas português de nascimento, e deste encontro resultou a renovação musical do fado.

Mas se viver é iludir o sofrimento, porquê então não pôr fim a tudo, por que motivo o amor e a morte são o tema do fado e o suicídio não? «Gostava até de matar-me», confessou o muito jovem, tão jovem, Reinaldo Ferreira.

Quem dorme à noite comigo?
É meu segredo, é meu segredo!
Mas se insistirem lhes digo.
O medo mora comigo,
Mas só o medo, mas só o medo!

E cedo, porque me embala
Num vaivém de solidão,
É com silêncio que fala,
Com voz de móvel que estala
E nos perturba a razão.

Que farei quando, deitado,
Fitando o espaço vazio,
Grita no espaço fitado
Que está dormindo a meu lado,
Lázaro e frio?

Gritar? Quem pode salvar-me
Do que está dentro de mim?
Gostava até de matar-me.
Mas eu sei que ele há-de esperar-me
Ao pé da ponte do fim.

Amália Rodrigues canta Medo, de Reinaldo Ferreira,
com música de Alain Oulman.
Amália é acompanhada pelo conjunto de guitarras de Raul Nery
.

E percorri assim, ao longo dos poemas e do fado que os cantou, a comum angústia deste povo, «todo por dentro amarrado», e de cada um dos seus homens e mulheres, que sabem que o medo os há-de esperar «ao pé da ponte do fim».

 

A fotografia que encabeça o artigo deve-se a Gérard Castello-Lopes (1925 – 2011).

10 COMENTÁRIOS

  1. O autor me levou a lugares que nunca imaginei, e me fez aprender. O fado nem de longe se compara com a “nova música sertaneja” brasileira, a “sofrência”, produção fordista de dor de corno fingida. Obrigada!

  2. Caro João Bernardo, reparo, surpreso, duas coisas: a) que a música de Alain Oulman, cantada por Amália Rodrigues, exclui a terceira estrofe do poema Medo, de Reinaldo Ferreira; b) ao ler o primeiro parágrafo, e o poema Partindo-se, eu já fiquei esperando que em determinado momento encontraria Fado da tristeza, com letra de Manuela Freitas e música de José Mário Branco; o que não ocorre.

  3. Maria Adelaide,
    Agradeço muito as suas palavras. Levar alguém a viajar por lugares que nunca imaginara é o maior elogio que poderia fazer, a mim e sobretudo ao fado. Mas essa viagem depende sobretudo da disponibilidade do viajante, e não falta quem não queira sair do mesmo lugar.

    Fernando Paz,
    Eu escolhi exclusivamente fadistas, e o José Mário foi muitas coisas, mas não foi um fadista. O fado pertence àquilo que eu chamo música popular erudita. Popular, porque nasceu entre a ralé do porto de Lisboa e até há pouco tempo era cantado somente por essa ralé e por alguma nobreza que gostava de se acanalhar. Erudita, porque obedece a normas estritas, aliás muito diferentes para o fado feminino e o masculino. A dificuldade da música erudita é que ela tem de ser maximamente expressiva dentro de uma grande restrição formal. Quem sabe? Talvez eu prolongue este artigo com outro.
    Quanto ao facto de Amália não ter cantado o poema inteiro, faz parte das liberdades que os fadistas sempre tomaram, e não só os fadistas. Na canção francesa, ou mais exactamente parisiense, Brassens e Léo Ferré fizeram o mesmo, para não citar outros. Tomam o esqueleto do poema, e a alma do poema é dada pela música e pela voz.

  4. Falando da “nova música sertaneja”, esses dias o Youtube me sugeriu um vídeo em que a ex-empresária da “cantora” Anitta apontava o poder econômico em volta do sertanejo (atual), que é basicamente o poder do agronegócio e que tem comprado espaço em detrimento de artistas de outros estilos musicais.
    No Brasil o crescente domínio do PIB e da balança comercial pelo agronegócio, concomitante à desindustrialização do país, têm já suas claras implicações culturais e políticas. Culturais tanto na música que o agro irradia até para as grandes cidades (até mesmo parao Rio de Janeiro), quanto no conservadorismo e reacionarismo comparados ao relativo progressismo de uma hegemonia econômica urbano-industrial.
    As consequências políticas já estamos vendo. Junto com a ampliação de evangélicos neopentecostais há décadas, é praticamente uma questão matemática que, a não ser que surjam contratendências inesperadas, o Brasil caminhe, seja linearmente ou seja em espiral, para futuro consolidado de uma sociedade muito mais reacionária nos costumes e na política do que as gerações vivas conheceram.

  5. Isto é extraordinário! Escrevo um artigo sobre fado e poesia portuguesa e colocam um comentário sobre música sertaneja. Parece que tudo vale, que tudo serve para tudo. Seria bom que os comentários dissessem respeito aos artigos, mas talvez seja pedir demais.

  6. O Fado,e não apenas a extraordinária Amália, é daquelas coisas que o lado de cá do além mar não conhece, que nossa carga de preconceitos e “ismos” diversos produzem o pior tipo de estranhamento. A cultura brazuca acha normal o samba atravessar os mares, mas sequer se dá o tempo pra escutar o Fado, que tanto nos informa sobre a gente mesmo. Valeuzão João pelo texto e todas a poesia.

  7. Muito embora o próprio autor reforce se tratar de um artigo sobre fado e poesia portuguesa, não parece o caso de sê-lo.

    Pois, claro que é! Mas nem só. E muito menos o é em suas profundezas. Lá onde as palavras expressam muito mais do que se pretendeu dizer.

    O texto nos fala sobre derrotas e cansaço. Este tem sido o fado do povo, qual povo seja este.

    No fundo do fundo da tristeza do sonho esmagado, como um grito se ouve o murmúrio sufocado de uma revolução fracasada.

    Um pequenino Portugal, na beira da Europa, ao contemplar a imensidão do mar ousou encarar seus perigos e desafios, para assim inventar a moderna civilização trans-oceânica.

    Mas em si mesmo se quedou, todo amarrado por dentro, quando navegar mais e mais era preciso. Restou a nostalgia de um futuro que poderia ter sido, mas nunca mais foi.

    Porém nem toda infelicidade vem só da exploração.

    Há uma dor inseparável da vida. E a ela todos estamos fadados. Não há para ela consolo, por isto o fado só pode cantar para confirmar essa dor.

    Há também o medo da solidão daquele inexorável encontro ao pé da ponte do fim. Ali nos encontramos com nossa outra metade.

    Morremos sempre. Morremos muito. Talvez, quem sabe, nem a morte sobreviva.

    O que acontece com um fado, ao deixar de soar?

  8. arkx Brasil pergunta: «O que acontece com um fado, ao deixar de soar?» A resposta foi dada por uma grande fadista, Maria Teresa de Noronha, no fado Saudade das Saudades, que começa assim: «Cansada de ter saudades / tudo fiz para esquecer / e hoje tenho saudade / de saudades já não ter.»

    Quem sabe, talvez eu escreva outro artigo sobre o fado, mas só o fado?

  9. Tão tristes os fados…
    Mas se ouvem fados no Brasil? Não somos nós o país do Carnaval?
    Tão alegres os brasileiros! Risonhos, extrovertidos, comunicativos.
    Não sei… É bem possível tratar-se de outro modo de ser triste.

    Recordo-me dos portugueses de minha infância. Na periferia da periferia, eram-me criaturas rudes e toscas, como os tamancos que calçavam.
    Pensava: “Que povo é este?”.
    Ah! Décadas depois em Lisboa: suaves azulejos.

    E os cravos vermelhos, inesquecíveis. Tanto mar então nos separava, e como queríamos estar próximos.
    Logo os cravos murcharam. Antes mesmo que por cá, as flores viessem a desabrochar.
    Porém nossa primavera nunca chegou. Quanta saudades dela temos…

    Que povos são estes? Para além do passado colonial, algum destino nos une? Algum fado?

  10. Brasileiros… como de hábito, a confundir e a nomear “fado” qualquer canção portuguesa… Um bem-haja a quem partilhou este post.

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