Por Malvina Pretória Samuelson
Um jornal brasiliense noticiou um acidente de trânsito entre duas carroças em Arapuá (MG). Um carroceiro leiteiro é surpreendido por outra carroça descontrolada e o choque acontece, quase atingindo um ciclista na via. As carroças ficaram danificadas, nenhum litro de leite foi desperdiçado, os cavalos não se machucaram porém o leiteiro se feriu e foi hospitalizado. Já o carroceiro que perdeu o controle do cavalo fugiu do local do acidente. Apesar da tragédia, o próprio tom da notícia sobre algo inusitado tem algo de bizarro: um acidente entre duas carroças em pleno 2021, em um Brasil onde não é raro de se ver, sobretudo nos interiores, veículos de tração animal.
Coincidentemente, no mesmo dia — na verdade minutos após eu ler essa notícia — um amigo me enviou um vídeo de uma campanha de uma agência municipal de meio ambiente sobre o Dezembro Verde. Trata-se de uma campanha de conscientização contra abandono, abusos e maus-tratos a animais domésticos, mas que também abrange os chamados animais de produção. Sobre esses últimos, no vídeos são chamados de “vítimas desse crime”, ao mesmo tempo em que a imagem que aparece é de três crianças pilotando uma carroça carregada de recicláveis e de tração a cavalo. Seriam então essas crianças criminosas? O vídeo continua com mais imagens de cavalos de carroça e conta a história da eguinha Branca, encontrada em situação de abandono e recolhida pelo centro de zoonoses que a acolheu e a tratou, recuperando-a e dando-a um novo lar onde estaria livre de abusos. No fim do vídeo é pedido que as pessoas, ao presenciarem maus-tratos a animais, registrem e denunciem à agência municipal de meio ambiente, guarda municipal ou polícia militar (alguém já viu como a PM trata os animais de sua cavalaria adestrando-os para serem armas de guerra?).
Falei a esse meu amigo que concordo que nenhum animal deve passar por maus-tratos, claro. Isso me lembra uma cena de Crime e Castigo em que Raskólhnikov, bêbado com um só copo de aguardente, adormece na relva e em um pesadelo é transportado para sua infância, onde presencia alguns camponeses ébrios espancando uma égua que não tinha capacidade de fazer mover a tieliega cheia de gente. Entretanto fui um pouco além da questão dos maus-tratos a animais e opinei que veículos tão arcaicos como as carroças demonstram miséria em um Brasil que já poderia ter superado isso. O Lula, quando presidente, enquanto um gestor que pretendia modernizar o capitalismo brasileiro, se gabava vaidoso de que no nordeste muitas pessoas trocavam o jegue pela motocicleta. O mínimo que deveríamos esperar de um Brasil que pretende avançar na indústria 4.0 seria que os carroceiros já estivessem motorizados, mas a tração animal ainda é bastante utilizada, pois ainda há muita pobreza. Até aí eu e meu amigo estávamos concordando, mas eu insisti que o ponto central da coisa toda não são os maus-tratos aos animais, mas a condição social do carroceiro que o faz trabalhar com tais meios. Lembrei que nas grandes cidades há os catadores de recicláveis que puxam suas carrocinhas pesadas. É tração humana, bem pior que tração a cavalo!
Motorizar os carroceiros, mas como? Eles não devem ter condições para comprar um veículo automotor, e o poder público dificilmente estaria disposto a comprar camionetas para esses trabalhadores sobretudo sem uma pressão vinda por luta. Se estivessem motorizados, poderiam fazer fretes mais rentáveis, mas inicialmente não deixariam de trabalhar com atividades menos rentáveis — transporte de recicláveis, entulhos, leite, milho, terra e esterco etc. — e com o preço do combustível do jeito que está, seria insustentável para tais trabalhadores. Daí o mais lógico seria trabalhar com o mais barato: continuar usando e abusando do cavalo que consome apenas água, capim, palha de milho e ainda fornece o esterco que pode ser vendido como adubo. Insisti que a questão central não devem ser os maus-tratos aos animais, e que campanhas como a da agência municipal teriam como resultado apenas a penalização do trabalhador que já se encontra em situação de pobreza. Uma prisão, multa e apreensão do animal só aumentaria a miséria do trabalhador que, na primeira oportunidade, procuraria adquirir outro cavalo para continuar seu ofício. Como melhorar as condições sociais desses trabalhadores carroceiros para que saiam dessa situação tão arcaica? Só que meu amigo já havia encontrado sua conclusão:
— Mas tem como ser carroceiro sem abusar, espancar… “Saca”?
As imagens que ilustram este artigo são desenhos de Pablo Picasso, ensaios para o quadro “Guernica”.
“Carroceiros fazem uma manifestação, na Avenida Afonso Pena, no Centro de Belo Horizonte, na tarde desta terça-feira (19). Eles são contra o projeto de lei 142/17, que “dispõe sobre a criação do programa de redução gradativa do número de veículos de tração animal e humana” na cidade.” – https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2021/01/19/manifestacao-de-carroceiros-fecha-o-transito-no-centro-de-belo-horizonte-a-cidade-e-nossa-roca.ghtml
Mobilização dos carroceiros que aconteceu no ano passado em Belo Horizonte. As discussões foram acirradas nos grupos de esquerda sobre como se posicionar frente ao protesto, se deveria prestar solidariedade, denunciar ou simplesmente ignorar (o que acabou acontecendo no final das contas).
De qualquer jeito, me chamou a atenção na última eleição o grande número de candidatos que eram contra os maus tratos aos animas, mesmo em partidos (e vindo de figuras) abertamente conservadores e da direita mais abjeta. Inclusive aqui na cidade tem uma vereadora cujo feudo é justamente a denúncia de maus tratos a animais e a manutenção de abrigos, etc. Me parece um grande acobertamento (greenwashing é o temo na moda, né?) de certas posições com um verniz ambientalista. Afinal, nenhum animal deve ser maltratado, mas maltratar trabalhador é comum e não causa tanta indignação.
O texto da Malvina e o comentário do Carioca me fizeram lembrar de um Flagrante Delito publicado neste site, cujo título é Criança de rua; o mesmo pode ser visto aqui https://passapalavra.info/2013/05/77773/
O texto e o primeiro comentário tocam num assunto que há uns dois anos tenho em mente escrever um breve artigo mas que pelo jeito nunca me dou o trabalho de ir além do título:
“O que o burro nos ensina”
Pois hoje em dia são os burros que podem nos ensinar sobre economia política e luta de classes.
O burro nos ensina que se você não for explorado por um capitalista tem mais chance de ter direitos hoje em dia, ou pelo menos avançar neles.
Em várias cidades do Brasil os burros de carga, de carroças, possuem direitos trabalhistas superiores aos da reforma trabalhista do golpe neoliberal de 2016. Jornada máxima de 8 horas diárias, uma hora de descanso, limite de carga não superior ao peso do corpo.
O burro de carga em Belo Horizonte possui direito de não carregar mais do que seu próprio peso corporal, enquanto eu não tenho esse direito, uma vez que na CLT o peso máximo para carregamento continua sendo de 60kg (mais do que meu peso corporal). Evidentemente os capitalistas fizeram questão de não “modernizar” essa parte da legislação. Aliás, os patrões conseguiram que a ABNT suspendesse uma norma técnica de ergonomia que falava em 23kg, que é uma valor de referência utilizado internacionalmente.
Hoje em dia a mente “identitária”, que é a mente neoliberal, chamaria o burro de privilegiado, o que é uma forma de dizer que em vez do trabalhador humano ter os mesmos direitos, devem ser retirados os do burro.