Por Isadora de Andrade Guerreiro

Na última coluna fiz a transcrição, traduzida e editada, de uma fala da professora e ativista argentina Verónica Gago realizada em dezembro, em Buenos Aires, no contexto das análises sobre os 20 anos do estallido, naquele país, causado pela crise da dívida externa. Verónica partiu da incômoda observação de que a Argentina de hoje passa por uma conjuntura com elementos objetivos tão graves quanto naquele momento, muitos deles parecidos, sem que isso signifique a mesma consequência nas lutas — perguntando-se se estariam vivendo um “2001 sem 2001”, ou seja, uma repetição da crise, em outro momento, sem as revoltas populares que irromperam nas ruas. Segundo ela, o retorno da (mesma) crise aparece com novos elementos, que precisam ser lidos de maneira estratégica, para que possamos atuar de acordo com as dinâmicas atuais. Eu gostaria, nesta coluna, de fazer alguns comentários sobre seu ponto de vista, olhando para a conjuntura brasileira — traçando suas convergências e algumas divergências.

Da explosão à implosão dos conflitos

A hipótese central de Verónica é a de que a crise, no seu giro atual, em vez de explodir nas ruas, implode para dentro do espaço doméstico ou, mais precisamente, para a esfera de reprodução social de maneira mais ampla — e aqui a dimensão socioterritorial é central. Entendo que este é um ponto importante, que mostrou sua relevância também durante a pandemia: o espaço da reprodução tem tamanhos e dinâmicas sociais diferentes para as diversas classes. E o conflito dentro da esfera da reprodução também acaba ganhando contornos específicos para cada uma das classes.

Nas elites, parece-me que há certa (aparência de) autonomia das unidades domésticas unifamiliares, na medida em que seus ganhos diretos e lugar de proprietárias são muito mais do que suficientes para sua autossustentação. No entanto, a pandemia trouxe à tona nossas históricas relações escravistas, deixando exposta a ferida da dialética senhor-escravo (Hegel): a aparente autonomia do senhor mal esconde sua total dependência do escravo — tornado empregado(a) doméstico(a) — nas tarefas mais simples do cotidiano intramuros. Invisíveis socialmente, numa primeira fase foram infectados pelos patrões vindos do exterior e, numa segunda, trazidos para dentro da casa grande para serem “protegidos” e trabalharem 24hs por dia — uma gigante reversão neocolonial nas relações de trabalho, particularmente das mulheres, que também tem a ver com o argumento de Verónica. Interessante que o tema central dos conflitos, aqui, seja a “liberdade”.

Tal invisibilidade se viu também inclusive nos setores médios que se fecharam em casa em home-office, mas sem dispensar a empregada doméstica que, afinal, “é da família”. Aparecem aí as especificidades destes setores, que parecem ter uma dependência, na sua reprodução, maior dos laços familiares diretos, para os quais a herança em vida é fundamental — na compra da casa, no carro particular, na escola privada, no convênio médico etc., que conformarão a base segura na qual seus salários terão maior potencialidade de compra. Para estes, os conflitos durante a pandemia foram muito ligados às questões familiares e ao home-office.

No caso das classes populares, a pandemia deixou evidente a dinâmica histórica instalada: a reprodução social não se reduz nem apenas à casa, nem à família direta, mas ao território de moradia. “Fique em casa”, para elas, sempre significou “fique no seu bairro” — e com sua família, mesmo morando em outros bairros, o que também significa uma conexão direta de territórios populares. Não é à toa que “família” passou a ser também a denominação das muitas relações comunitárias, da igreja evangélica ao mundo do crime, são todos “irmãos”. O uso de máscara se dá majoritariamente na hora de sair do bairro, sendo as ruas locais como corredores internos da grande senzala que sustenta a todos. Os conflitos, aqui, parece que se intensificaram na expansão miliciana e no poder evangélico, plasmado no negacionismo e no empreendedorismo popular.

Seria importante perguntarmo-nos sobre o significado político desta passagem entre a explosão e a implosão dos conflitos. Pois os conflitos que se dão, ou se iniciam, na esfera da reprodução social, têm grande tendência a se fecharem em si mesmos, seja na especificidade da pauta, seja na incapacidade de saírem dos limites dos espaços e dinâmicas internas às diferentes classes — não alcançando, justamente, a forma de um conflito entre classes. Não raro durante a pandemia os debates pareciam de surdos-mudos, explicitando que as questões de cada classe se afastaram tanto que os conflitos não têm nem mais meio comum onde se dar. Perdem seu espaço de confronto, dentro da abstração da vida em quarentena por aplicativo.

Da exclusão à inclusão pela hiperprecarização

Segundo Verónica, um dos elementos do novo giro da crise seria a passagem das lutas contra a exclusão, plasmadas no desemprego, a um contexto de inclusão por hiperprecarização, na qual lidamos com a sobreocupação (superposição de jornadas de trabalho). Mais uma vez, trata-se da expansão do modelo do trabalho feminino [1] que, desde as senzalas, não difere esfera produtiva da reprodutiva. Como bem lembra Verónica, esta não separação é uma característica própria da superexploração do trabalho na América Latina: quando a média dos salários não é suficiente para repor o custo de reprodução do trabalhador — transformando-se em fundo de acumulação para o capital —-, o tempo de produção continua na esfera da reprodução, da construção da casa à máscara caseira, incluindo fórmulas que curam/previnem COVID benzidas na igreja local.

Lúcio Kowarick, no final da década de 1970, cunhou o termo “espoliação urbana” para descrever este mecanismo próprio da América Latina, que tornou possível o desenvolvimento industrial na região: a funcionalidade dos espaços precários de reprodução social na cidade para a acumulação do capital. Embora longínquo no tempo, o mecanismo permanece em funcionamento, acumulando novas camadas de violência. O que se acostumou chamar “informalidade” (numa época democrática amante da formalidade jurídica e da economia de mercado), não tinha este nome, estando muito mais articulado às formas de vida que se organizam, de maneira flexível, às necessidades de sobrevivência — estas, historicamente determinadas, ligadas às dinâmicas de acumulação do capital. Um trecho de seu livro mostra estas dinâmicas, a partir das relações em torno do trabalho feminino adaptado às novas necessidades urbanas:

“Laurinda está em São Paulo desde 1972. Pouco após a chegada, mudaram-se para a favela da Cidade Jardim. Construíram um barraco. Mas Daniel [seu último ex-marido] a abandonou e ‘vendeu o barraco comigo dentro. Aí seu Zé e João construíram outro para mim’. Passa a cozinhar para ele e mais três peões. Eles compram a comida da qual Laurinda e as três filhas comem e recebe 20 cruzeiros de cada um por mês. Prepara o jantar e a marmita do almoço, lava a roupa e costura. É a partir destas articulações que organiza a sua vida. Conhece bastante bem a necessidade da ajuda mútua. ‘Seu Zé é um amigo. Ele come mas eu não cobro. Mas o Bigode (irmão de Daniel) nunca ajudou. Mata a fome e vai. Nunca neguei um prato de comida para o Daniel. Este mundo anda e desanda. Não se sabe o que vai acontecer amanhã. Ele pode ajudar. Fazer bem não ocupa lugar. Se amanhã ou depois caio na cama vem ele aí e faz o mesmo. Por isso nunca nego apanhar água e lavar a roupa.’ Mas as formas de sobrevivência mudam quando Laurinda casa-se com João: ‘ficava mais fácil e mais econômico’. Muda-se para outro barraco trazendo as filhas. Já então não cozinha nem lava mais as roupas dos peões: ‘João não quer. Não fica direito’. Continua a cozinhar para Seu Zé e para um irmão de João: ‘sem cobrar’.” (KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.121 e 124)

Neste trecho fica visível que a conformação do espaço da reprodução social nas classes populares é muito maior do que a família direta, sendo dependente das relações comunitárias no território e do “trabalho sem forma”. De maneira muito mais consolidada e até mesmo com formas identificáveis e legisláveis — as relações do mundo do crime ou as articulações das igrejas, por exemplo — tais articulações da família/bairro permanecem sendo elemento fundamental da acumulação capitalista na América Latina. Assim, não é possível separar produção de reprodução social na região, nas análises e nas lutas.

A pandemia não inventou esta aproximação da precariedade do trabalho e da moradia, apenas a deixou mais evidente: as lutas no período estiveram diretamente vinculadas à esfera da reprodução social (a luta contra os despejos, entre outras), mesmo quando pareciam estar vinculadas à esfera da produção (como no caso dos entregadores de aplicativo, por exemplo) — e tal separação estrita é cada vez menos estratégica. No contexto brasileiro, podemos inclusive relembrar que as Jornadas de 2013 se iniciaram com a pauta dos transportes, seguindo tendência internacional de revoltas populares similares — atualmente seguidas pelo caso da revolta contra o preço do gás no Cazaquistão.

Assim, as discussões sobre exploração no trabalho — atualmente pautadas pela precarização — não podem esquecer que a espoliação urbana é inescapável como parte desta lógica e, estrategicamente, muito próxima dos conflitos candentes da cada vez maioria dos trabalhadores, cujos contornos da questão trabalhista são difusos e misturados com a esfera doméstica. A expansão da “uberização” do trabalho se dá conjuntamente com a expansão de novas ocupações, cada vez mais organizadas de maneira empreendedora, na impossibilidade da continuidade da autoconstrução de fim-de-semana, como na década de 1970.

Do autoempreendimento à dívida

Retornando à análise de Verónica, ela dá mais um aperto no giro da crise e chega ao endividamento doméstico. Este ponto é central e extremamente distante das discussões e lutas brasileiras. É o ponto em que nossas conjunturas são convergentes e nossas lutas, muito divergentes. Para além dos mesmos elementos objetivos que se repetem no tempo, temos também elementos objetivos que se repetem no espaço — no caso, Brasil e Argentina — sem que as lutas sejam consequências diretas e objetivas dos mesmos. A questão da dívida — externa e doméstica — também é central na conjuntura brasileira. No entanto, suas consequências nas lutas são muito diferentes.

No Brasil, esta relação direta que Verónica faz entre violência e dívida simplesmente não é uma pauta de luta coletiva. Muito menos a relação entre a dívida estatal e a doméstica — a despeito do fato de que cada vez mais o Estado está passando suas dívidas para as famílias. Há um degrau muito alto entre a abstração da noção de dívida e a violência cotidiana nos territórios. Claro, o endividamento informal, com agentes do território, é uma regra — geradora de violência direta e bem pouco abstrata. Há, inclusive, um desejo compartilhado de poder dever aos bancos, pois estes não matam — ao menos diretamente. O que tem ocorrido, na verdade, são os agentes da informalidade se parecerem cada vez mais com os bancos e, estes, com os agentes da informalidade. Por um lado, temos ouvido relatos de tomadas de casas pelo crime local por conta de dívidas (ação normalmente feita por bancos); e, por outro, os bancos com interesses cada vez maiores por popularização e facilidades de empréstimo sub-prime — inclusive com a entrada de fintechs no ramo.

Nada disso se transforma em luta coletiva, na medida em que são relações tratadas como uma espécie de infortúnio individual, de pessoas que não conseguiram ser “trabalhadoras o suficiente” — uma ideologia, aliás, bem consolidada pelos evangélicos. Não há um entendimento de que o endividamento é estrutural — principalmente quando o trabalho produtivo não deixa mais tempo para o reprodutivo, vide, mais uma vez, os entregadores de aplicativo. A consequente mercantilização da esfera reprodutiva tem aberto espaço para novas forças adentrarem nos territórios populares, como as milícias, cujas bases econômicas, políticas e sociais se dão em torno das articulações da reprodução social no território. Assim, estes estão sendo disputados por forças milicianas que não se diferem, na sua forma, de forças econômicas formais: empreendedoras e desreguladas.

Não diferem, inclusive, das recentes formas da política pública: empreendedoras e desreguladas. O que vemos no Brasil de hoje é muito parecido com o que Verónica descreve para a Argentina: são as políticas públicas focalizadas aquelas responsáveis por construir o entrelaçamento dos “invisíveis” com as finanças, ou seja, com o endividamento. Falei anteriormente sobre bancarização popular, seja do ponto de vista do Auxílio Emergencial, seja das políticas urbanas, como é o caso reiterado da moradia e, mais recentemente, dos transportes. Ao invés de lutas que questionem o endividamento, nesses casos, parece que temos classes populares felizes pela sua recente inclusão.

A historicidade das lutas

Vemos então que as lutas não são respostas diretas a questões objetivas — nem teóricas, nem práticas. O gás caro pode significar queda de governo num país e auxílio-gás em outros — acompanhando o auxílio aluguel, auxílio emergencial etc. Portanto as lutas são construções históricas e sociais. Assim, na década de 2000, enquanto a Argentina se reestruturava em um populismo refém de uma revolta popular, no Brasil passamos pelo governo lulista sem enfrentamento com este tipo de forças populares. Quando elas surgiram, em 2013, foi o começo do fim.

A dívida, neste aspecto, não é assunto para os brasileiros pois a pauta da nossa esquerda governista foi continuar implantando uma esfera pública financeirizada, vista como salvadora dos nossos males históricos. O endividamento como forma de sobrevivência, no entanto, extrapola as relações estritas e formais de cidadania, simplesmente pelo fato de que elas nunca existiram de maneira expandida e universal no país. Mas sua forma se universalizou, se expandiu nos territórios populares na medida em que o tempo da auto reprodução social foi cada vez mais consumido como tempo produtivo para o capital diretamente. A “disputa de tempo”, à qual Verónica se refere em sua fala, ganha ares de tragédia: sem alternativa, o endividamento é a única saída pois lida com o comprometimento de um futuro que é a única coisa que resta — mesmo dentro da total deriva da vida popular. Talvez, por esta incerteza mesma, seja um ativo valioso, cuja mediação é extremante violenta — e cada vez mais mediada por pessoas próximas, “desde abajo” (termo usado por Verónica), da própria comunidade.

A questão central destas relações serem tão truncadas — e talvez por aí tenhamos alguma resposta sobre isso não virar pauta de luta coletiva — parece-me ser o fato de que são relações muito amarradas no desenvolvimento estrutural brasileiro dependente da espoliação urbana — ou às formas de sobrevivência das classes populares que subsidiam o desenvolvimento capitalista, como visto na citação acima de Kowarick e que persistem até hoje. Pois são relações presentes dentro das classes populares, tomadas como necessárias para sua própria sobrevivência. Os agentes da violência sempre foram parte do Estado, mas estão cada vez mais entronizados como parte da própria comunidade: é ela mesma que aluga quartos, que controla a jurisprudência e a violência local, que empresta dinheiro, que arranja o emprego…

Então, Verónica, dentro desta conformação de implosão dos conflitos, que tendem a se restringir a este espaço de reprodução, como organizar as classes populares muitas vezes contra elas mesmas, contra suas formas de sobrevivência? Ou melhor, como conseguir elevar o conflito acima da sua dimensão doméstica? O que fazer quando os proprietários das moradias de aluguel são as próprias famílias depauperadas pelos baixos salários? Quando o necessário endividamento local conforma submissão absoluta aos mesmos que violentam as famílias? Como falar sobre mobilização contra o Estado ou as elites, quando a opressão vem dos próprios vizinhos, na implosão dos conflitos? Quando muitas vezes vem de você mesmo, quando se trata da individualização de riscos do empreendedorismo?

A imagem da implosão como nova forma da crise é muito forte, e deve ser pensada de maneira estratégica, mas deixa dúvidas sobre as táticas a serem adotadas. Pois estas sempre esbarram no limite das próprias formas de sobrevivência, dos conflitos internos

à própria classe — transformando o potencial político da espoliação urbana em uma guerra particular. Como fugir desta armadilha, sem deixar seu caráter estratégico de lado?

Notas

[1] Não é à toa que Ludmila Abílio, para chegar às análises sobre trabalho uberizado, passa antes pelo trabalho tipicamente feminino em seu “Sem maquiagem: O trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos”.

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