Por Julio Cortés
“O antifascismo só consegue misturar dois fenômenos: o ‘fascismo’ propriamente dito, e a evolução do capital e do Estado em direção ao totalitarismo. Ao confundir estes dois fenômenos, ao substituir a parte pelo todo, se mistifica a causa do fascismo e do totalitarismo, e um acaba reforçando o que o outro queria combater” (Gilles Dauvé, Fascismo/Antifascismo)
Hugo Herrera e sua projeção não totalmente errônea
Antes do primeiro turno presidencial, o famoso filósofo de direita Hugo Herrera (“El triunfo de Kast”, 06 de Novembro de 2021, coluna publicada no El Mostrador) anunciava como o mais provável era o triunfo de Kast, seguindo um argumento pseudo-dialético tipo yin e yang, em que a “mudança” expressa na Convenção Constitucional necessitava do contrapeso de um governo neoconservador.
“O dilema é entre a mudança fundamental (constituinte) acompanhada da ordem (=Kast), ou a mudança fundamental (constituinte) acompanhada de ainda mais mudanças, lideradas pela gangue de jovens belos, mas desordenados, essa aglomeração de jovens que, onde governa, introduz, para melhor ou para pior, ainda mais incomuns mudanças [1]”
A cuidadosa análise telúrica terminou com esta longa e sombria previsão:
“Tudo isso, certamente, não se pode ignorar — repito — é que a política é imprevisível, ali se faz o que se pode, e às vezes mais do que aquilo que os próprios atores imaginaram. Boric poderia dar, por exemplo, uma virada radical para o centro, indo para os quadros da Concertación e traindo o Partido Comunista, transformando-se em um candidato de reformas aparentemente sensatas e claramente empáticas com os grupos pobres que anseiam por crescimento, e especialmente com as massivas e precárias classes médias emergentes, angustiadas com o risco de se tornarem pobres: com toda a gama que inclui “pequenos-burgueses”, consumidores de baixa renda, cidadãos alienados no atual mundo mercantil e “rostos pobres”, etc. Deve-se recordar, ademais, que ele já deu esse giro anteriormente, ao aderir ao acordo do 15 de Novembro. Kast, por sua vez, poderia um dia perder a compostura e acentuar suas pretensões mais rudes de um Estado policial. O conflito Mapuche poderia aumentar, com confrontos massivos e ninguém sabe o que poderia acontecer. Ou o Norte se veria dominado por imigrantes e protestos massivos. Também é possível que a direita do “Chile Podemos +” sofresse um colapso nas eleições parlamentares e que o espírito de derrota acabasse dominando toda a candidatura de outrora. Pode ser que apareça de último momento algum triste acontecimento ignorado por algum dos candidatos ou por alguém muito próximo a eles. Enfim, pode ser, pode ser: que o inimaginado aconteça e altere fundamentalmente a situação. Mas, pela maneira como as coisas vão indo, Kast tem maior chance de ganhar.” [2]
O que finalmente aconteceu após a vitória de Kast no primeiro turno (e o “empate” que ocorreu em nível parlamentar) incorpora outro aspecto mais ou menos “inimaginável”, que ao meu ver acabou sendo o fator chave para a vitória de Boric no segundo turno: o “outubrismo” se colocou em quase toda a campanha, nas ruas e nos memes [3], enquanto o “novembrismo” se estendia, dando poderosos sinais de moderação para o centro e a ex-Concertación, e deixava em segundo plano as birras de Jadue e do PC e a falta de jeito já endêmica no meio do FA (com a anti-campanha involuntária realizada primeiro por Depolo e Olivia, e depois por Lorenzini e Aguilera). Como resultado, a versão chilena do PODEMOS, imposta no 19D, é como uma espécie de Concertación 3.0, que inclui o PC e a Frente Ampla, e também os “antifas”, as feministas e os setores anarquistas locais que, ou vêm votando com entusiasmo há anos [4], ou se incorporaram a esta atividade recentemente pela primeira vez nas suas vidas.
O outubrismo salvando o novembrismo (mais uma vez)
Para atrair o outubrismo e seu setor mais duro — os black blocks e a chamada “ultraesquerda” e a esquerda revolucionária “tradicional” ao Chanfreau —, se empunhou mais uma vez o slogan do “antifascismo”.
Esse recurso é o mais forte com que se conta nestes ambientes. Artilharia pesada. Quase o equivalente a quando, em nível de política de Estado, se declara um estado de sítio ou a “guerra contra um inimigo poderoso que não respeita nada nem ninguém”.
Foi ultra eficaz. Ainda que esses setores sejam numericamente pequenos, são muito ativos, e me atrevo a afirmar que saíram dali em grande parte os votos necessários para apoiar a quem, até pouco tempo atrás, era visto como o pior traidor da história, o traidor que merecia desprezo e até ofertas de “sangue por sangue” (como já foi expresso em seu momento de porta-voz da extinta Lista del Pueblo).
De toda maneira, e indo para além destas subculturas que vêm sendo pouco influentes a nível micropolítico ou molecular, tudo indica que o mesmo povo que fez a insurreição de Outubro não teve maiores dúvidas e assumiu que para barrar o retorno do pinochetismo ao poder era necessário votar em Boric. Resta saber se no processo foi-se apaixonando efetivamente pelo candidato e pelo que ele representa, em uma espécie de versão da “a alegria está chegando” do séc. XXI, ou se o voto foi entendido apenas como uma medida tática para não se retroceder e continuar lutando.
Por enquanto, o mapa eleitoral da Região Metropolitana mostraria que o voto anti-Kast foi uma vitória popular. O voto da direita foi encurralado em suas usuais colunas, de maneira mais dramática que a representação que fizeram na “ação artística” em que eles “embelezaram” e puseram grama em um setor do que ainda chamam de Plaza Baquedano, menor que o resto e apontado, claro, ao Oriente.
1989: Espero que isto não seja um deja vu
Espero estar enganado, mas sou pessimista: o peso da memória dos acontecimentos vividos entre 1988 e 1990 me leva a isso. Nesses tempos, tanto a rendição aberta que aceitava ao itinerário constitucional de Guzmán/Pinochet, como o voto no golpista Aylwin se justificavam em um suposto “antifascismo”, como um ato para afastar os militares do poder. A campanha de Aylwin dizia “sem medo, sem ódio, sem violência”. A esquerda agregava “sem nojo”, e a maior parte foi às urnas marcar essa linha. Nesse momento, o “bloco socialista” caía e o neoliberalismo reinava sem contrapesos desde esse simbólico 1989: um 68, mas ao contrário.
“Deve-se optar pelo menos pior”, nos diziam; votar em Aylwin para derrotar Buchi, “o candidato da continuidade”. A partir de 11 de Março de 1990, isso se transformou em “não vamos nos mobilizar muito por enquanto, porque isso abre espaço para que o governo e os militares possam voltar”. Não se criticou Aylwin pelo Massacre do Farol de Apoquindo e nem pela criação de um escritório de Segurança Pública. “Os milicos eram muito piores. Ou não?”. Do “avançar sem comprometer” fomos para o “avançar na medida do possível”, e assim foram os 30 anos de vida entre uma transação atrás da outra, “democracia de acordos” e uma eterna “pós-ditadura” que ainda não acabou.
Os protestos contra essa ordem só começaram a ganhar força em 2001, em um ciclo que, com marcos subsequentes como a rebelião pingüina de 2006, os movimentos de 2011, rebeliões locais (Aysén, Freirina, Chiloé, Magallanes) e a explosão feminista, que nos levaram à grande insurreição de Outubro de 2019, e depois a um Acordo pela Paz, e a pandemia nos fez chegar a esse complexo momento atual.
O “triste acontecimento”: a morte de Lucia Hiriart e os pedidos por sua não-comemoração
Onde o oráculo de Hugo Herrera chegou é o ponto mais estranho, quando os fatores que poderiam impedir o triunfo previsto de Kast apontam a possibilidade de que algum “triste acontecimento” ignorado por algum dos candidatos surgisse de última hora. Quando li isso, no 06 de Novembro, um calafrio passou pela minha espinha, mas ainda que eu tivesse consultado alguns especialistas, não consegui concluir nada muito claro.
A dúvida me foi esclarecida imediatamente durante a tarde de quinta-feira, 16 de Dezembro, quando li as notícias — primeiro nas “redes sociais” e depois na má dita imprensa — : “A velha morreu!”, todo o onipresente símbolo do mal na minha infância na ditadura, e à qual tive medo de presenciar cara a cara desde 1981, durante uma visita de Pinochet a Punta Arenas. Ela percorreu os corredores da zona franca com luzes, câmeras e agentes da CNI, cumprimentando efusivamente todas as crianças que cruzavam seu caminho. Foi até onde estavam eu e meu primo Ernesto, olhando-a com espanto, pois mesmo com nossa idade de 10 anos sabíamos exatamente quem ela era. Fugimos a tempo de evitar o espantoso aperto de bochechas que ela dava em cada criança que cumprimentava.
A velha morreu! A tirana morreu. E morreu impune, claro que sim. Já que no Chile a responsabilidade pela violação aos Direitos Humanos é sempre apenas uma coisa de “vadios”, e nunca do “alto comando”.
Apesar disso, era claro que com sua morte finamente uma grande e terrível época havia chegado ao fim.
A morte dessa figura tão sinistra da “ditadura cívico-militar” (e acrescentaria: empresarial, policial, midiática, religiosa, etc.) não poderia senão fazer recordar exatamente o que é o pinochetismo, o que esse fez com o país e a impunidade quase absoluta que aproveitaram até agora pelos seus crimes e sua corrupção sistêmica.
Sem dúvidas esse “triste acontecimento” afetou a corrida presidencial de Kast. Não apenas por ter impulsionado, na reta final, uma já notável participação do eleitorado de esquerda e progressista habitual, ou da juventude em geral e as suas dissidências, mobilizadas nem tanto a favor de Boric, mas “contra o fascismo”. Além disso, Kast se viu obrigado a ignorar Lucía e, com ela, toda a ditadura cujo legado ele era o mais ferrenho defensor, o que o distinguia dos esforços relutantes por “desfascistizar” aquela direita UDI/RN (criada na década de 80 como sustento ao regime de Pinochet), que se rebatizou de “centro-direita” e exibia um suposto setor liberal (EVOPOLI, Ciudadanos e outras tentativas frustradas).
O pinochetista republicano teve que dizer à sua ex-primeira dama: “se te conheço, não me lembro”. É algo muito forte. Mas sacrifícios são algo que se faz constantemente na chamada realpolitik (âmbito de atuação que eu prefiro chamar de “política burguesa”), e no segundo turno vimos sacrifícos em ambos os lados. Dentro da esquerda ficará na memória como alguns democratas “antifascistas” clamavam desesperadamente por não se comemorar tanto o ocorrido, e difundiam a habitual advertência de que sempre que você sair para a rua, corre o risco de a polícia tirar seu cartão para impedir que você vote em prol da democracia [5].
A nova ultradireita como inimigo interno de Kast
Assim, Boric finalmente conseguiu o que parecia impossível: chegar muito perto do centro, crescendo ao mesmo tempo em direção à extrema-esquerda à custa de memes e muita chantagem antiabstencionista. Não há uma enquete MORI para isso, diria que entre 70 e 80% dos que nunca votaram por convicção baixaram a bandeira negra e se aproximaram de uma urna para votar. Alguns até se entusiasmaram no processo. Não os culpo. Também são traços da realpolitik.
Mas um fator que sem dúvidas contribuiu de maneira decisiva nessa derrota eleitoral de Kast veio das suas próprias panelas: os youtubers “patriotas” da rejeição: espécie similar à dos “encapuzados” da ultraesquerda — sempre muito estigmatizados antes de serem admirados inclusive pelos progressistas e pela social-democracia, quando apareceram como “Primeira Linha” —, mas no outro lado do espelho: os extremos da nova direita.
Johannes Kaiser e Sebastián Izquierdo fizeram mais danos que vários “antifas pelo menos pior” juntos. Alguém disse que os conceitos “machista” e “misógino” não são suficientes para traduzir os ditos grosseiros desses personagens, um dos quais é agora deputado da República. E de toda a quantidade de atrocidades que foram ditas durante anos por várias horas na semana, o que saiu foram apenas algumas amostras de um universo de estupidez e violência verbal muito maior. Alguns antifascistas se dedicaram a monitorar emissões: é um trabalho ingrato, mas muito importante de ser realizado seriamente se estivermos preocupados em desativar a reação e não apenas usar o álibi do “antifascismo” como imagem mobilizadora para fazer as pessoas irem votar.
El Partido de la Gente: o lema “nem esquerda, nem direita” como alerta do fascismo old style
O clássico fascismo que foi expresso durante o século passado no período entreguerras não apareceu como um fenômeno “das direitas”, mas como algo desconcertado e desafinado na oposição já denominada como esquerda e direita. Por isso, essa distinção que surgiu na Assembleia Nacional Francesa de 1789 permaneceu no tempo até hoje, mas com constantes mutações.
Assim, Mussolini elogiava a anarquia até 1919, e Hitler logo se proclamou como “anticapitalista”. Em ambos os casos, esta fachada de não ser “nem de esquerda, nem de direita” se completava com um discurso aparentemente revolucionário, que diferencia o fascismo do que é a direita tradicional, meramente reacionária ou conservadora. Neste sentido, o fascismo é ao mesmo tempo arcaico e modernista. Por isso é que costuma ser bastante confuso quando irrompe e, assim, consegue cumprir uma função que a direita assumida e apresentada como tal não pode cumprir: restaurar a ordem com autoridade através da violência de um movimento de massas, ou, como o fascista espanhol Ramiro Ledezma disse uma vez: “derrotar o marxismo de maneira revolucionária”.
Nem todos os fascismos que continuaram aparecendo se referem de maneira fiel a esse modelo, mas uma característica sempre muito reconhecível é um jargão “antipolítica” e a proclamação de ser uma “terceira via”. Tudo isso é plenamente realizado pelo Partido de la Gente, e resta estudar em maior profundidade seus distintos grupos internos, ideologias e composições de classe. Também não é irrelevante que tenham nas suas fileiras Gaspar Rivas, deputado eleito que continua a ser o seu elo com o Movimento Social Patriótico, um grupo neofascista bastante organizado que não se declara de direita, saudou a eclosão do 18-O [6] e não apoiou a opção de rejeição, mas é fortemente antimigração, antifeminista, antiliberal e um inimigo absoluto da autonomia mapuche.
Um feito positivo é que o suposto “terceiro posicionismo” do PDG foi quebrado no dia anterior às eleições, quando seu líder apostou ruidosamente em Kast e perdeu. Deve-se estar atento a como seguem evoluindo suas lutas internas.
Saberemos derrotar o fascismo?
Temos claro que Boric não era “comunista”, e na verdade já nem mesmo o Partido Comunista do Chile o é, pois há muito tempo passou a ser um partido social-democrata de esquerda, parte essencial do Partido da Ordem. A luta armada contra a ditadura nos anos 80 por meio da FPMR não muda essa caracterização, a qual vêm renegando tanto o partido quanto o presidente eleito.
O que é um pouco mais difícil é caracterizar o que são Kast e o Partido Republicano. Muitos especialistas debatem se esses seriam da extrema-direita, de uma direita populista radical, ou de uma forma neo ou protofascista [7].
Em primeiro lugar, como foi destacado por Sergio Grez, mais que uma “maré reacionária”, deve-se destacar que o que vemos durante 2021 é o reordenamento da direita tradicional sobre seu eixo pinochetista, liderado por Kast e seu partido.
O pinochetismo é sem dúvida autoritário e reacionário, além de moralmente conservador, mas apesar de ter sido apoiado por fascistas não é tão claro que além do “terrorismo de Estado” (que compartilha com outros regimes autoritários/reacionários que não necessariamente são fascistas) é possível definir como fascismo isso que Hayek classificou em algum momento como “ditadura liberal”. Na época, o MIR preferia falar de “ditaduras de gorilas” para designar as juntas militares latino-americanas. A expressão “antifascista” foi levantada pelo PC para justificar a necessidade de uma nova aliança “frente-populista”, incluindo a DC e os “militares democráticos”, tal como explicou claramente seu secretário geral Luis Corvalán no fim dos anos 70.
Porque, assim como não existe apenas um fascismo, também existem várias formas de antifascismo. Para começar, o mais comum é o que os democratas liberais sustentam, abusando do conceito de “fascismo” há décadas, para estigmatizar inimigos tão diversos como o Islã e qualquer forma de oposição crítica à democracia capitalista, incluindo todas as posições revolucionárias. Se durante a segunda metade do século XX se meteu tudo isso no saco do “totalitarismo”, a partir dos atentados do 11 de Setembro de 2001 os analistas e políticos gringos resgataram o conceito “fascista” para aplicá-lo contra todos os seus inimigos.
A segunda grande variedade de antifascismos é a das Frentes Populares: colaboração de classes entre partidos operários e burgueses “democráticos”, postergando toda transformação radical sob o pretexto de combater o fascismo primeiro. A fórmula foi aprovada na França, no Chile e na Espanha, com diferentes e desconcertantes resultados. Na Espanha em particular, a Frente Popular se encarregou, a partir de Julho de 1936, de enterrar todas as conquistas revolucionárias, liquidar a vanguarda perante a ação conjunta do stalinismo e do Estado burguês, dissolver as milícias e reconstituir o exército, para perder definitivamente a guerra em 1939.
O caso da Frente Popular Chilena desde 1938 é particularmente interessante, pois com a desculpa do antifascismo a esquerda apoiou Pedro Aguirre Certa (do Partido Radical), fazendo vista grossa acerca do feito de que ele havia sido Ministro do Interior no governo de Arturo Alessandrini, durante o Massacre de San Gregorio, ocorrido entre 3 e 4 de Fevereiro de 1921 no referido escritório de salitre perto de Antofagasta.
Mais surpreendente é ter em conta que o fascismo que se pretendia combater no Chile estava sendo representado pelo Movimento Nacional Socialista, que após o massacre do seguro do trabalhador, ocorrido pouco antes dessas eleições, ao se ver frustrado em sua intenção de golpe de Estado para por de novo Ibañez como ditador no comando do país, acabou dando uma volta tão grande que conseguiu com seus votos dar a vitória a Aguirre Cerda. Depois disso, os nacional-socialistas chilenos liderados por Jorge González Von Marées aderiram de fato à Frente Popular, após mudar seu nome para Vanguardia Popular Socialista.
Mesmo assim, para a história e a mitologia esquerdista tradicional, o único traidor desse período foi Gabriel González Videla!
O “antifascismo” que acabamos de ver em ação entre o primeiro e o segundo turno também alcançou resultados surpreendentes: quando o povo votou em Gabriel González Videla em 1946, não sabiam que pouco depois ele os trairia ao ditar a “Maldita lei”. Gabriel Boric, por sua vez, foi apoiado sem grandes problemas dois anos após trair a rebelião popular, assinando o Acordo do 15N e promovendo a “Lei Antibarricadas”. Tudo isso parece ter sido perdoado e até recordado de má vontade agora, tal como em 1989, quando quase ninguém se divertiu com o slogan “não se esqueça, foi Aylwin quem chamou Pinochet”.
Deve-se destacar que ao contrário de seus eleitores, Boric nunca se referiu a Kast como um fascista. Mas o mais notável é que poucas horas após “derrotar o fascismo” o presidente eleito em seu discurso chamou todos para contribuir e colaborar, incluindo José Antonio Kast. A verdade é que não consigo imaginar os partidários que derrotaram o nazi-fascismo há 70 anos com grande custo humano — e não apenas com puros memes — convidando nazistas e fascistas a colaborar com a reconstrução de seu país. “Não enforquem Mussolini e se esqueçam dos Julgamentos de Nuremberg: eles também têm que colaborar porque este novo governo é de todos”.
Conclusão
Deve-se opor a todas as formas de reacionismo. Isso está claro. Mas deve-se ter cuidado com a ativação de alertas antifascistas antes do tempo, sob a pena de finalmente incorrer na história de Pedrinho e o Lobo.
O antifascismo que nos interessa é o que é consciente de que o fascismo não se opõe à democracia liberal, mas a completa. Como disse Gilles Dauvé, não existe uma alternativa entre “fascismo e democracia”, pois a dominação capitalista percorre permanentemente por uma mistura de ambas opções, enfatizando uma ou outra segundo as necessidades de acumulação e valorização do capital. Este antifascismo atual, cujo antecedente de médio prazo seriam as lutas autônomas dos anos 80, tem o potencial de ser diferente das formas prévias às quais me referi. Na verdade, quero crer que seu símbolo — uma bandeira negra ao lado de uma bandeira vermelha — expressa seu conteúdo simultaneamente anticapitalista e antiautoritário.
Se não assumirmos esse vínculo do fascismo como um dos sub-produtos do capitalismo em tempos de crise, a esquerda revolucionária e o anarquismo estarão condenados a seguir sendo o vagão da burguesia progressista e do projeto de renovação neoliberal que o Apruebo Dignidad e seus aliados neo-concertacionistas expressam.
Notas
[1] https://www.elmostrador.cl/noticias/opinion/columnas/2021/11/06/el-triunfo-de-kast/
[2] Ibid. Os destacados são nossos.
[3] Para uma análise empática do fenômeno veja: https://ficciondelarazon.org/2021/12/10/aldo-bombardiere-castro-memes-por-boric-la-esperanza-transformadora/
[4] Justificando seu democratismo na suposta flexibilidade dos “princípios anarquistas”. Tal flexibilidade amorfa justificaria até o aparecimento dos chamados “anarcocapitalistas”, ou não?
[5] Conselho: num controle de identidade não é necessário entregar o bilhete de identidade. Basta entregar qualquer documento oficial.
[6] Isso foi apontado pela Juventud Social no 19 de Outubro de 2019: “O Chile morreu com a ditadura, mas hoje renasce. Nós somos o Chile. Jovem Chileno, pegue sua bandeira e saia à rua para reconquistar sua pátria, isso é só o começo de uma luta por tudo.” Pouco depois, eles adicionaram apelos para proteger os negócios do bairro contra “vândalos anarquistas” (https://twitter.com/jsocialpatriota).
[7] Discordando de sua definição enquanto “extrema direita”, veja: https://www.pauta.cl/politica/cristobal-rovira-partido-republicano-chile-kast-no-extrema-derecha.
Traduzido do espanhol para o português pelo Passa Palavra. Veja o texto original aqui.
As fotografias que ilustram o texto são da autoria de Sergio Larrain (1931-2012).