Por Passa Palavra
Passados aproximadamente dois anos e sete meses, a coluna Diabo da Economia chega ao fim no Passa Palavra.
Já havíamos tornado pública a nossa dificuldade em encontrar colunistas que fizessem análises baseadas em fatos, que adotassem perspectivas anticapitalistas e fugissem aos lugares-comuns. No artigo Nosso problema com o Diabo da Economia, aludimos ao fato de que a esquerda atual vive praticamente de costas para os debates e processos econômicos, interessando-se, em vez disso, pelos mais variados temas.
Com isso, as intervenções da esquerda, ou passam longe da economia, ou tangenciam-na, sem nunca chegar aos seus fundamentos, suas raízes, ao núcleo do sistema de relações sociais que a esquerda pretende (ou pretendia) combater. E o resultado disso é que os processos econômicos seguem seu curso, independentemente de nossa vontade, relativamente imunes às nossas ações, reiterando e ampliando problemas para os quais não encontramos soluções. Nos mantemos incapazes de avançar análises fundamentadas em dados concretos e que não se reduzam à exegese de textos sagrados.
A economia se desenvolve, complexifica, toma rumos inesperados, redistribui riqueza e poder, renova as classes dominantes, reconfigura a classe trabalhadora, altera as relações de poder entre centro e periferia, inverte tendências históricas, faz convergir processos aparentemente inconciliáveis, gera rupturas imprevisíveis, avoluma os problemas enfrentados diariamente pela classe trabalhadora, sem que a esquerda contribua para o esclarecimento desses problemas. Pelo contrário, mais confunde do que esclarece.
O Passa Palavra não deixará de ser um espaço aberto a análises econômicas anticapitalistas, inovadoras e baseadas em dados concretos, mas a falta de pessoas aptas e dispostas a assumir a coluna, mantendo uma regularidade de contribuições, nos obriga a dar adeus ao projeto.
Mas não o faremos sem antes tentar refletir sobre os fatores que nos obrigam a tomar essa decisão:
1. Originariamente, a esquerda preocupava-se sobretudo com os temas econômicos. Isto devia-se ao facto de o objectivo da esquerda ser a remodelação das relações de produção, entendidas como relações econômicas. As divergências e por vezes antagonismos surgidos no seio da esquerda deviam-se às diferentes propostas de remodelação das relações de produção, mas o fator em comum era a noção de que o objetivo era essa remodelação.
2. Na segunda metade do século XX o terceiro-mundismo começou gradualmente a alterar o objetivo originário da esquerda, substituindo a emancipação dos trabalhadores pelo desenvolvimento nacional. A partir de então, os temas econômicos foram gradualmente substituídos pelos temas geopolíticos e a economia foi substituída pelos jogos de poder.
3. Mais recentemente, o processo de desnaturação dos objetivos originários da esquerda culminou com os identitarismos. A remodelação das relações de produção foi substituída pela mudança de pessoas no interior das hierarquias econômicas e políticas existentes, de modo que umas “identidades” fossem substituídas por outras “identidades”. Esta renovação das elites teve como resultado, como tem sempre, consolidar as hierarquias enquanto hierarquias.
4. O golpe mortal na esquerda dedicada à remodelação das relações de produção foi desferido quando a noção de “exploração” foi substituída pela noção de “vitimação”. O sujeito histórico deixou de ser a classe explorada e passou a ser a identidade vitimada. Daí a competição entre as “identidades” para saber qual é a mais vitimada.
5. Para a esquerda originária, a classe explorada era portadora da capacidade de remodelar as relações de produção. Para os identitarismos as “identidades” mais vitimadas merecem ascender ao lugar das velhas elites. Assim, a estrutura das hierarquias mantém-se e, portanto, as relações de produção mantêm-se.
6. Em consequência, os temas econômicos foram substituídos pelos jogos de poder da geopolítica e pelo moralismo politicamente correcto dos identitarismos.
Por essas razões, deparamos com uma grande escassez de pessoas de esquerda interessadas em, e capazes de, com regularidade, analisar e desvelar as contradições de uma economia cada vez mais complexa e cada vez mais alheia às nossas intervenções políticas e ideológicas.
É uma pena, pois assim fica cada vez mais difícil compreender plenamente, e sobretudo transformar, o Diabo da Economia.
Saluti!
Dedicarei-me aos fatores elencados pelo Passa Palavra em relação ao fracasso do Diabo da Economia.
1 – O objetivo da esquerda era a remodelação das relações de produção? Isto depende de como: a) compreende-se o que é a esquerda e; b) o que é remodelar as relações de produção. Eu discordo da sentença da qual afirma que remodelar as relações de produção era objetivo comum de toda “esquerda”, mas, pelo contrário, acredito que apenas os marxistas e os anarquistas revolucionários tinham em comum este objetivo. O próprio conceito de “relações de produção” sempre foi utilizado por estas duas tendências do movimento revolucionário e era negado pela quase totalidade da esquerda. Desde sempre, compreender as relações de produção para, assim, ter a capacidade de transformá-las foi sempre um esforço de alguns poucos militantes se enxergarmos essa questão de um ponto de vista histórico: poucos indivíduos na história se dedicaram a este empreendimento e poucos deles conseguiram efetivamente avançar nesta discussão. Marx, Labriola, Anton Pannekoek, Paul Mattick, João Bernardo, Tragtenberg e Nildo Viana foram alguns dos poucos que conseguiram apreender tanto a essência quanto a manifestação concreta das relações de produção capitalistas. O que ocorreu, em minha opinião, foi que, após Marx, os pensadores vindouros dedicaram-se a avançar naquilo que Marx não avançou, o que significa estender a compreensão para além do modo de produção e se dedicar também ao Estado, Sociedade Civil, Organizações Revolucionárias (comunistas de conselhos), a cultura, dentre outros temas. Concluíram, então, que as relações de produção exerciam grande determinação sobre as demais relações sociais, ou seja, as lutas de classes se generalizavam para além das relações de produção, o que torna necessário também compreender a essência de como isto se efetiva. Vejo que o problema não foi a focalização dos revolucionários nos fenômenos que estão além das relações de produção, mas sim o esquecimento da conexão indissolúvel entre as relações de produção e os fenômenos dos quais agora focalizam. Marx compreendeu a essência das relações de produção capitalistas, mas não escreveu muito sobre sua manifestação concreta, que se altera ao longo da história capitalista. Os revolucionários passaram a se preocupar com os fenômenos além das relações de produção, mas não realizaram o caminho inverso: como a manifestação concreta das lutas de classes determinam o restante das relações sociais. Enxergar o modo de produção capitalista atualmente tal-qual como Marx ilustrou em O Capital é enxergar o modo de produção capitalista de forma petrificada, como se a essência dele se manifestasse igualmente em qualquer período histórico. ESSE É O REAL PROBLEMA COM O DIABO DA ECONOMIA!!!!!!!!!!!
2- O “terceiro-mundismo” realmente foi aquilo que fez com que se substituísse a economia por jogos de poder e temas geopolíticos? Também devo discordar disso. Podemos perceber que mesmo antes do terceiro-mundismo, a geopolítica e os jogos de poder eram de interesse dos Lassallianos, Kautiskistas, Leninistas, etc. Desde o primórdio da esquerda houve a tentativa de substituir as relações de produção por relações econômicas entre os países. Acredito que o Passa Palavra pinta com cores róseas a antiga esquerda/esquerda originária e esquece que o problema do diabo da economia sempre foi um problema, e que este problema se manifesta de diferentes formas ao longo da história do capitalismo.
3 – Atualmente, o identitarismo reina sobre o capitalismo contemporâneo. E, devo concordar com o Passa Palavra, o identitarismo é o principal obstáculo atual do qual impede a dedicação dos revolucionários ao diabo da economia. Mas, por qual razão isto ocorre? Com certeza o identitarismo coloca questões frente aos revolucionários que devem ser respondidas. Para combater a hegemonia do identitarismo no interior da sociedade, deve-se combater o identitarismo também em seu próprio terreno. Isto impõe aos revolucionários dedicarem sua caneta à crítica das lutas identitárias. Essa é uma imposição de focalização dos identitários sobre os revolucionários. No entanto, devemos nos atentar que a crítica, apesar de ter como ponto de partida o terreno dos identitários, deve-se ir além e retornar sempre para o objetivo de remodelar as relações de produção. Este é o principal desafio colocado em frente àquele que visa contribuir para com o Diabo da Economia. Por qual razão os revolucionários, contudo, ficam no terreno dos identitários e não se dedicam às relações de produção? Exatamente por conta da luta dos próprios identitários contra os revolucionários: acusações de “economicismo” e que a teoria e a verdade estão a serviço do poder é uma das formas de marginalizar o Diabo da Economia. Vejo que, até então, os identitários estão conseguindo uma vitória sobre os revolucionários. Mas, para isso se alterar, não vejo como ponto positivo o fim do Diabo da Economia. Por isso, defendo a continuidade, mesmo que ainda não encontramos alguém disposto a enfrentar estes obstáculos, que são realmente difíceis de superar e que persiste desde o início da esquerda. Em minha visão, a própria existência do Diabo da Economia, mesmo que sem contribuições, é um protesto contra essa situação deplorável que se encontra a compreensão das relações de produção. Pelo menos, a existência do Diabo da Economia nos coloca diariamente o desafio de pensar sobre essa nossa limitação, pois nossa limitação é colocada em evidência com ela. A inexistência dessa seção, significará, talvez, uma falta de incentivo, desafio, etc., para os revolucionários voltarem a se dedicar às relações de produção. A própria discussão que agora temos é produto da existência do Diabo da Economia.
Esse final de semana o próprio Passa Palavra publicou um artigo mais que importante que trata das relações de produção: https://passapalavra.info/2022/04/143449/
Tratar da remodelação das relações de produção é tratar das lutas sociais, se a perspectiva é anticapitalista.
Além de um chamado para apoiar uma importante luta em andamento, ele serve como alerta aos economistas e afins na esquerda que normalmente fazem uma associação bastante mecânica entre indústria e “emprego de qualidade”. Se esquecem que se por um período histórico a industrialização se relacionou a melhores empregos isso se deveu às lutas dos trabalhadores. Sem uma classe trabalhadora com força nem benzendo uma fábrica com água benta de São Bakunin ela vai gerar “empregos de qualidade”.
existem vários economistas ou autodidatas que “dominem o conhecimento nessa área e saibam trabalhar com dados econômicos, tratem a economia como uma ciência e fujam aos lugares-comuns e à reiteração de “leis” de funcionamento do capitalismo enunciadas há mais de 150 anos.”, eles só não fazem parte do Passa Palavra.
aqui um exemplo: https://criticadaeconomia.com/2022/04/netflix-banho-de-sangue-em-wall-street/
Não sou (era) um frequentador assíduo do Passa Palavra, algo que pretendo mudar hoje. Entretanto, entrar aqui e já ver a morte de uma proposta dessas é aterrador.
Não sou especialista em economia. A bem da verdade sou apenas certificado pelo mercado CEA, CFP, CFG e CGA. Certificações que se somam a uma perspectiva que se chocam com os caminhos da esquerda ortodoxa.
Mas se me permitem, meus caros, posso me comprometer a pensar em novas perspectivas , através de uma matemática e uma lógica social derivadas do que sei pela minha prática enquanto agente do mercado financeiro e leitor dessas novas e intrigantes filosofias sociais como a ANT e etc.
Em 4 comentários, 2 são assinados (heteronimicamente?) por Giovanni Souza Martinelli e João Martinez. Coincidências acontecem, diria um ocasionalista ingênuo.
E o Souza? Presume-se que seja um comborço dichavado, como na estória da refrega entre o Pigmeu Sentão e o Fantasma Cagão…