Por Soraia Arruda e Ramon Vesolon

No dia 31 de março os mineiros da Companhia Siderúrgica Nacional iniciaram uma greve nas minas Casa de Pedra em Congonhas (MG), e Pires em Ouro Preto (MG). Eles estão no período de negociação do acordo coletivo e a empresa tenta impor um reajuste abaixo da inflação oficial. Na Usina Presidente Vargas em Volta Redonda (RJ), os metalúrgicos que operam os andaimes da manutenção decidiram no dia 05 de abril interromper o trabalho e começar a lutar na siderúrgica por conta própria. Eles foram seguidos pelos portuários dos terminais de carvão e conteiners do Porto de Itaguaí, que também paralisaram.

Um dia antes, um grupo criado numa rede social ia agrupando pessoas de vários setores da usina em Volta Redonda. Elas estavam furiosas e queriam greve. Centenas de mensagens explanavam um sentimento há tempos viralizado dentro da fábrica: “estamos fartos, cansamos de ser escravos!”. A proposta dos administradores do grupo era iniciar uma paralisação na segunda-feira, dia 11. Mas o clima estava quente e a maioria não queria esperar. “Por mim não aguardava nada, estamos cansados de aguardar e sempre levar chumbo com essas votações compradas”[1]. “Já estamos esperando há três anos, amigo, vamos esperar mais o que?”

Dias atrás, o presidente do grupo Vicunha, acionista majoritário da CSN, Benjamin Steinbruch, fazia um pronunciamento público exibindo o lucro de 13,6 bilhões de reais em 2021. O valor é o recorde dos 80 anos da empresa e vem junto com a ampliação do império do grupo com novos negócios em vários setores. O salário dos trabalhadores, porém, não é reajustado há quatro anos e vem derretendo com a defasagem interna e a inflação que, como qualquer trabalhador sabe, aumenta para níveis muito superiores ao oficial.

Benjamim ficou famoso na época da reforma trabalhista por uma fala em entrevista à Folha de São Paulo: “O Brasil mudou, as condições de emprego mudaram e a gente tem que se adaptar (…) A jornada pode ser flexível, a idade pode ser flexível, trabalhar mais jovem (…) Por exemplo, aqui a gente tem uma hora de almoço, normalmente não precisa de uma hora de almoço, porque o cara não almoça em uma hora. Você vai nos Estados Unidos e vê o cara almoçando com a mão esquerda e operando a máquina com a direita.”

Na página da CSN nos destaques está a propaganda da vantagem em ser “um dos menores custos de produção mundial”. Dentro da fábrica as pessoas amargam o que é viver a tradução dessa economia em condições miseráveis de trabalho e sobrevivência. Os salários estão entre os mais baixos da indústria desse porte no país [2][3] e é menor que o do comércio local e que vários outros setores que geralmente pagam menos.

A equação não bate e o anúncio dos lucros soou como um deboche para quem se arrasta entre a privação e o endividamento. No grupo de mobilização da greve entre o desabafo e a agitação para a luta circulam links de empréstimo fácil. Um trabalhador conta que o filho de um colega dorme num colchonete porque não tem condições de comprar um colchão agora. Não é possível gastar um centavo a mais além do estritamente básico com o que eles ganham. Alguns já quase não têm o que comer.

Nessas condições a revolta se espalhou pela fábrica e apesar da consciência dos riscos de uma greve selvagem num espaço extremamente controlado, alguém dizia enquanto se somava à paralisação naquela manhã: “único medo que tenho é ter esse salário defasado para sempre”.

Da “CSN mãe” à “lata velha” sanguessuga: um império da superexploração

A CSN foi concebida como a “menina dos olhos” do processo de desenvolvimento nacional, com basicamente duas funções: ser a impulsionadora do avanço econômico como grande produtora de aço para a industrialização e construção da infraestrutura do país e criar um modelo para a domesticação dos trabalhadores através de políticas de bem-estar social e controle sindical.

O esquema queria contemplar os interesses do capital e dos trabalhadores e possibilitar uma acumulação estável, sem conflitos. Não demorou para isso se mostrar impossível. A primeira geração de trabalhadores se formou identificada com a CSN, que invadiu todas as dimensões da vida das pessoas, organizando a cidade em função da empresa. Com o tempo esse controle estável e, principalmente, a identificação dos operários com a CSN foi se perdendo. Visando apenas a produção em maior escala, as gestões eliminaram a perspectiva de bem-estar social. Os trabalhadores mais jovens se desligaram da noção de “família siderúrgica” e passaram a se ver como “operários metalúrgicos”.

A crise econômica da década de 1980 impulsionou a primeira greve na história da empresa, que estourou em 1984 e foi o ensaio para outra greve em 1988, uma das maiores e mais potentes da história do país. Depois do assassinato de três trabalhadores a CSN e a cidade de Volta Redonda se transformaram num imenso campo de batalha em que por mais de 20 dias ocorreram confrontos diretos entre a população auto-organizada e as forças repressoras do Estado.

Após a privatização da companhia ocorreu uma onda de demissões que mudou a forma de organização da empresa, pondo fim a qualquer resíduo do laço paternalista entre a companhia e os trabalhadores. Aprofundou-se um modelo de capitalismo selvagem. A agressividade dos gestores se deu em duas dimensões: a CSN deixou de ser uma empresa voltada apenas para a extração de minério de ferro e produção de aço e se expandiu para outros ramos de negócios como logística, cimento e energia.[4]

Em outra frente investiu na ampliação drástica da exploração dos trabalhadores.

“Esse cara, o Benjamim, comprou a CSN sem pagar um centavo, para começar a pagar depois de 30 anos. O cara é o maior escravizador de mão de obra, escraviza mesmo os funcionários. Hoje não existe amor. Hoje quem manda é o dinheiro. Nós funcionários somos apenas uma matrícula. A gente tem o menor salário do mercado, tem um cartão alimentação que não da para comprar nada, já faz seis sete anos que a empresa paga abono ao invés de pagar uma PLR justa. Temos um plano de saúde péssimo, tiraram o do Bradesco que era nacional. Também o nosso abono é diferente de supervisores para cima, a gente tava pegando aí dois mil, três mil reais, enquanto um engenheiro, um supervisor tava pegando cem mil, oitenta mil, entendeu? Um peão aqui dentro ganha menos que os da terceirizada. Mecânico da CSBI ganha 2.400, aqui é 1.640. A empresa é uma sucata, direto morre gente aí dentro. Não recebemos por periculosidade. Insalubridade recebemos de salário mínimo, numa empresa risco 4. [5] Antes da paralisação um trabalhador aposentado perdeu a mão aqui dentro, nem noticiado no jornal foi. A empresa não investe, só sucata”.

Outro trabalhador diz: “Estamos trabalhando por dois, dobrando todo dia, tem gente ai que trabalha na folga…” A situação é tão extrema que algumas pessoas chegam a encarar a possibilidade de demissão como alforria.

Sindicato? Para quê sindicato?

Esse arranjo de exploração intensiva ao mesmo tempo em que impulsiona a acumulação vai gerando um fosso na vida das pessoas… uma hora a corda arrebenta. O sindicato depois de longa trajetória de atuação em favor da empresa (além dos acordos aprovados por fraude que vão rebaixando ano a ano as condições de trabalho, vendeu em 2017 a supressão do turno de 6 horas, conquistado na greve de 88) já não tem nenhuma confiança ou expectativa dos trabalhadores. “Há muitos anos Silvão e cia está no modo Judas, vendendo a galera por 30 moedas de prata”.

As oposições sindicais [6], alheias ao movimento dos trabalhadores, foram pegas de surpresa enquanto se preparavam para as próximas eleições e deram a largada na disputa pela direção do movimento. Quando viram o bonde andando, tentaram frear. Para elas era preciso esperar, cumprir o protocolo institucional e seguir suas instruções. O cabeça de uma das chapas num áudio que circulou entre os trabalhadores disse:

“Existe a forma correta de se resolver a situação. A Oposição Metalúrgica do Sul Fluminense, a verdadeira oposição metalúrgica, está junto com os trabalhadores nessa luta e entende que as orientações que estão sendo passadas para vocês com relação a paralisação dia 11 de tirar comissão para conversar com a empresa, essas orientações que estão sendo repassadas por um grupo de pessoas utilizando o nome da oposição metalúrgica é um suicídio. É uma política errada e existe uma forma correta de se fazer isso dentro da lei. Nós da verdadeira oposição do sul fluminense temos o caminho de se resolver isso dentro da lei…”

Após essa fala um trabalhador responde:

“Só tem que alertar esse senhor ai que falou da perseguição, que perseguição o peão já sofre o ano todo, passou da roleta a gente já sofre perseguição, e não adianta ficar ameaçando com a dificuldade do peão não, vocês tem que parar de falar bonito e ir para frente da turma que está aí, ó! É parar de falar bonito, tem que ficar é com a turma aí, para não deixar que nada aconteça com eles, porque está todo mundo aí brigando pelos direitos. Ninguém está fazendo baderna aqui não, todo mundo trabalha, dá o sangue, quantas pessoas já perderam a vida aqui dentro e fica por isso mesmo? Não vem usar da nossa família, da nossa dificuldade para botar a gente para trabalhar não, para de falar bonito e vai para frente”

Seguindo essa linha de desprezar aquilo que foge do controle do grupo, as oposições seguiram tentando fazer recuar a movimentação auto-organizada em seu aspecto mais promissor, a perda do medo. Depois de quase três décadas de desmobilização e apassivamento do movimento dos trabalhadores no país, algumas experiências começam a fugir do controle e ensaiam perder o medo que nos amarra e nos faz aceitar uma vida que não é vida. Diante disso elas tentam apagar o fogo e salvar a ordem, assim como no âmbito geral a esquerda tem feito, tentam repor as expectativas em crise na salvação pelas instituições. Fazem isso porque precisam manter as bases que querem gerir e por instinto de auto-preservação jamais colocariam suas estruturas em risco para levar o movimento até onde os trabalhadores estivessem dispostos.

Mas no meio do caminho desses profetas do passado, atravessou a fúria de quem já não tem tanto a perder e se dispôs a assumir o risco. A consciência de que “ninguém fará por nós o que nós precisamos fazer” levou os trabalhadores do andaime/manutenção a se lançarem na batalha. Atropelaram os que defendiam “esperar a hora certa e fazer as coisas do jeito certo”. “Não existe momento certo, existe o momento de se unir”.

Ohhh… O peão voltou, o peão voltou…

“Uma semana antes da paralisação geral, a GMR tinha feito uma paralisação entre eles, questionando algumas coisas da forma de trabalho deles lá. Na semana seguinte foi criado o grupo. A gente nem sabe por quem foi criado aquele grupo, só que foi entrando um monte de peão lá dentro. Aí foi quando fizemos o pedido de paralisação. Isso foi num domingo. Na segunda o andaime tinha resolvido que ia parar. Só que o andaime já tinha mais de dois meses que eles tavam falando, vamos parar, nóis vai parar, só que não parava. Quando a GMR parou eles não ficaram sabendo então não apoiaram. Dessa vez o andaime parou, mas eles [os chefes] tentaram fazer uma pressão neles para que eles voltassem a trabalhar. Só que eles não cederam e quando deu o horário do almoço eles foram caminhando para SOM [Superintendência de Oficinas Mecânicas], para fazer a paralisação lá. Quando eles chegaram lá, outras áreas tinham visto no grupo que eles tinham parado na área deles e já estavam lá na Som parados também. Algumas outras áreas igual a GMC, a GMR, já tinha um pessoal parado. A GMN, que são gerências[7] lá dentro. O andaime veio andando, um supervisor falou que ia pedir um ônibus para eles almoçarem lá na SOM. Eles falaram, não, nós vamos a pé. E quando eles foram vindo a pé, eles foram vindo chamando a galera, ‘ou, vamo parar, vamo parar!’ e a galera saiu da área, abandonou o serviço e foi fazer a paralisação. Na segunda foi mais ou menos, na terça começou a chegar mais gente, na quarta foi a inflamação, onde a usina sentiu o baque, tinha uma paralisação bem grande lá dentro”

Desde então os trabalhadores entravam na empresa, abriam o ponto e se reuniam no pátio da SOM. Lá aconteciam as reuniões para definir os acordos e os passos do movimento. Foi eleita uma comissão de negociação e definida uma manifestação em direção ao sindicato para apresentar a proposta dos trabalhadores (30% de aumento, 10% do lucro total como PLR (Participação de Lucros e Resultados) e não como abono e valor igual para todas as funções, plano de saúde nacional, volta da hora extra mensal e 800 reais de vale alimentação). Eles saíram em marcha pela cidade aos milhares cantando “ôôô, o peão voltou, o peão voltou”… No outro dia houve uma rodada de negociação e a votação da proposta feita pela empresa. Dessa vez ela aconteceu na praça Juarez Antunes, local escolhido pelos trabalhadores, não dentro da empresa como o sindicato costuma fazer para fraudar o resultado. Aos gritos de “a robalheira acabou” e “a mamata acabou” os votos foram apurados com o resultado de 6.040 pessoas dizendo não ao acordo e 39 dizendo sim.

Com a imensa demonstração de força e capacidade de mobilização nesses primeiros dias de paralisação, a empresa começou a jogar pesado para impedir quem ainda não tinha parado de parar e pressionar quem estava parado a voltar. Reforçou a pressão e a intimidação dos supervisores de área. Comprou colchões para os trabalhadores dormirem dentro da fábrica e não correrem o risco de não conseguirem entrar no outro dia caso houvesse piquetes. Enviou marmitas para alguns setores para as pessoas comerem dentro do setor para que elas não circulassem pela planta e entrassem em contato com o movimento. E depois começou a demitir. Demitiram toda a comissão de negociação. Ao todo foram demitidas até agora cerca de 400 pessoas. Os efeitos disso foram desmobilizadores e as pessoas foram voltando a trabalhar.

Apesar disso, a comissão demitida segue mobilizada buscando a reintegração dos demitidos e ajudando na mobilização no interior da fábrica. A tensão continua forte. Nessa sexta (22/04), a empresa apresentou nova proposta, tão miserável quanto as anteriores e o clima é de rejeição. Vários trabalhadores nesse momento sinalizam a decisão de retomar a greve e discutem a ampliação da mobilização.

O desfecho dessa mobilização está em aberto. A empresa tenta vencer os trabalhadores pelo cansaço com um jogo fake junto com o sindicato que finge pautar o aumento enquanto a empresa finge que está cedendo em algo. A intenção é aproveitar a situação de aperto e endividamento dos trabalhadores para empurrar outro acordo infame. Mas sobretudo ela busca desmoralizar o movimento e a força autônoma que os trabalhadores demonstraram ser possível criar. Para eles essa moda não pode pegar.

Se há algo em que se apostar nesses tempos de imensa dificuldade em enxergar algum futuro, é na coragem e na rebeldia de quem se cansou de esperar por alguém que salve ou que resolva aquilo que só nós podemos fazer por nós mesmos. As experiências de mobilização autônoma dos trabalhadores têm crescido nos últimos tempos. Há poucas semanas foram os garis do Rio de Janeiro e frequentemente tem se mobilizado os trabalhadores de aplicativo e os rodoviários. Isso num contexto em que as greves em geral vem se ampliando. Articular essas experiências e buscar os caminhos para aprofundar seus aspectos anti-sistêmicos pode ser uma luz no fim do túnel. A rebeldia, a solidariedade entre os grevistas e o controle do próprio trabalho, que confrontam elementos fundamentais para a reprodução do capital como a passividade, a competição e a dominação são alguns deles.

Notas

[1] As falas reproduzidas aqui foram retiradas do grupo de mobilização ou de conversas com trabalhadores da empresa.
[2] Auxiliares têm o salário de R$1.350,00; mecânicos e soldadores R$1.640,00; operadores nível 1, R$1.400,00, nível 2 R$1.680,00 e nível 3 R$1.860,00
[3] O salário médio nacional de um Operador na Gerdau, siderúrgica concorrente da CSN, é de R$ 2.896 por mês. O salário mensal de um Operador na Gerdau varia de R$ 1.447 a R$ 6.870.
[4] Além da usina de Volta Redonda, a empresa possui cinco unidades industriais, sendo duas delas no exterior, Portugal e Alemanha; minas de minério de ferro, calcário, dolomita e estanho; uma distribuidora de aços planos; terminais portuários; participações em ferrovias; e participação em duas usinas hidrelétricas; conta com mais de 30 mil trabalhadores, e está presente em 18 Estados do Brasil; tem ações vendidas Bolsas de Valores de São Paulo (B3) e de Nova York (NYSE).
[5] “As empresas classificadas como GR4 são as de risco alto, ou seja: seu ramo de atividade expõe os funcionários a riscos frequentes. Dos quatro graus de risco, esse é o que exige um maior número de obrigações legais relacionadas à saúde e segurança do trabalho.” https://amgsaude.com.br/blog/qual-o-grau-de-risco-da-minha-empresa-#:~:text=Grau%20de%20risco%204%20(GR4,sa%C3%BAde%20e%20seguran%C3%A7a%20do%20trabalho.
[6] Uma divisão recente na Oposição Sindical Metalúrgica do Sul Fluminense resultou na criação de um outro grupo que se reivindica também como oposição.
[7] GMC – Gerência de manutenção central; GMR – Gerência de manutenção de reparos; GMN – Gerência de Manutenção de ponte rolante; GMER – Gerência de manutenção de execução e redução.
[8] Os trabalhadores exigem que a participação nos lucros sejam pagas como PLR e não como abono porque como abono abate-se 27% do valor do imposto de renda.

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