Por Charles Júnior
Crítica ao curso Como Funciona a Sociedade do 13 de Maio – Núcleo de Educação Popular
“All in all it’s just another brick in the wall.
All in all you’re just another brick in the wall.”
Another Brick In The Wall – Pink Floyd
A arma da crítica é nossa mais poderosa arma na luta teórica, geralmente empunhada/usada quando necessitamos analisar por onde passamos e o que fizemos, nós eu, nós vocês ou nós classe. Assim, nos perguntamos: por que não deveríamos efetivar uma crítica minuciosa a tudo que criamos? Partindo de nós, até os processos que, hoje, nos parecem atuais, ou melhor, em pleno vigor. Por que não? Seria por respeito ao “patrimônio da classe” [1] que deveríamos engolir absurdos? [2]
Neste momento histórico, em que a Social Democracia suga a tudo e a todos, como um buraco negro, pensamos diferente: tudo deve ser revisitado e criticado. Todos os caminhos percorridos e os sonhados devem ser analisados e reanalisados, autores outrora expurgados e silenciados, os rotulados como esquerdistas incrédulos na revolução, devem ressurgir. Para isso, retornemos à teoria de Marx e Engels, Rosa, Bordiga, Serge e demais revolucionários, no pleno sentido da prática e teoria, como base de reflexão, para garantir a ciência viva do proletariado. Enfim, é nisso que investiremos nossas forças.
Assim, resolvemos fazer uma crítica a um dos instrumentos criados pelo programa democrático e popular, o 13 de Maio – Núcleo de Educação Popular, especificamente ao principal curso de formação da entidade, o curso “Como Funciona a Sociedade 01” (CFS1). Escolhemos este curso por três motivos:
1. ser o curso base da entidade – o abre alas para todo o rol de cursos;
2. não termos quaisquer análise sobre a entidade e seus cursos, e;
3. ser a entidade composta de militantes imbuídos na crítica do programa dominante da esquerda, o programa democrático e popular.
A forma de exposição será a mais simples possível. Passaremos por um breve histórico da entidade, em seguida exporemos o pensamento do proletariado – nossa base – fechando com algumas reflexões. Para isso, destacaremos as passagens e movimentos da entidade e, abaixo, a teoria que nos embasa seguida de nossa crítica. No final deste ensaio exporemos nossas conclusões.
Vamos à peleia.
Inicialmente, nossa reflexão é referente a uma parte do curso CFS1 [3], especificamente como é explicada a formação das classes sociais, do Estado e da propriedade privada [4] nas primeiras sociedades de classes, através da dinâmica central do segundo dia do curso, a ilha. Posteriormente, iremos mais a fundo no processo de desenvolvimento desse núcleo de educação popular, especificamente na cisão entre formação política e trabalho direto.
Ressaltamos que nossas reflexões só foram possíveis graças a dois belíssimos trabalhos. O primeiro, de Paulo Tumolo, Da contestação a conformação – A formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista e o segundo de Cyntia de Oliveira e Silva, O resgate da trajetória histórico-política do 13 de Maio NEP – Núcleo de Educação Popular. O segundo nos proporcionou acesso à história do 13 de Maio – NEP, indo muito além do que é contado pelos professores/acadêmicos que agora o compõem, e pelos antigos militantes. Além disso, utilizamos o roteiro do curso CFS1 enviado por uma amiga.
Outro ponto é que tentamos ser o mais claro e simples possível, mas necessitamos fazer os autores falarem, a teoria do proletariado tem que ser exposta como ela é, sem intermediários.
Breve histórico do Núcleo de Educação Popular
Criado no último ascenso do proletariado brasileiro, especificamente em 1982, na rua 13 de Maio, de acordo com um de seus criadores teve seu nome ligado ao dia em que foi criado, 13 de maio. Composto por militantes “demitidos” da FASE, tem como principal características não “adequar” seus métodos e teorias a possíveis restrições de organizadores ou às necessidades de patrocinadores. Nos anos iniciais constituiu a primeira secretaria de formação da CUT-SP. Considerando a tentativa do homem forte da CUT-SC, Jorge Lorenzetti, de apagá-los da história como 1a secretaria de formação da CUT-SP, tudo indica que tiveram atuação brilhante. [5]
Dentre os seus cursos, destacamos o curso Como Funciona a Sociedade 1 – CFS1. Ele é a base para participação em qualquer outro e apresenta a primeira percepção de mundo para os participantes, ou melhor, primeiro esclarecimento do que é o mundo por trás das aparências. Por isto será nosso foco de análise.
Pilares
Segundo o professor José Paulo Netto, em sua clássica aula sobre método em Marx [6], o marxismo tem 3 pilares fundamentais:
1. Dialética
2. Perspectiva da revolução pelo proletariado
3. A teoria do Valor Trabalho
“Pilares que só subsistem se se mantiverem os três”. A velha e boa unidade entre teoria e prática, “sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário”, disse Lenin em “Que Fazer?” [7]. Ou como Engels, na genial “A Guerra Camponesa na Alemanha”: “luta econômica, luta política e luta teórica”. Uma unidade indivisível, necessária para elaborar uma crítica, a partir dessa concepção teórica da realidade, a qualquer formação social.
Mas vamos além, a obra de Marx e Engels é imprescindível para análise da formação social capitalista. Mais especificamente, e indo direto ao ponto, como entender a formação das classes sociais sem os clássicos A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado e o Anti-Dühring, ambos de Engels? Como analisar as classes sociais sem o Manifesto Comunista? Obras simples, que são a base de nosso pensamento. É claro que se pode inventar a roda ou buscar refúgio em novíssimos pré-modernismos [8], em Hegel, mas, a opção nossa é partir do todo acumulado.
Voltemos.
O Curso
O CFS1 e a formação das classes sociais, Estado e da propriedade privada
Abaixo expomos parte do roteiro que trata da transformação de uma sociedade sem classes em uma sociedade com classes. Vejamos.
“4) A propriedade e as Classes [9]
O objetivo desta parte é questionar como a sociedade que funcionava desta maneira foi acabar como a nossa. O monitor então pergunta: O que teria mudado?
Normalmente neste ponto emerge de novo o senso comum e as respostas costumam seguir esta ordem:
– mudou pelas ideias, surgiu algum espertinho, maldoso ou sacana. O monitor não desmente de imediato e propõe que aquele que sugeriu esta via tente realizá-la com a turma. Ele então terá que convencer o grupo que agora é diferente e eles deverão trabalhar para ele. O monitor pergunta: Como o grupo irá responder? E lembra que o grupo está acostumado a fazer tudo em conjunto. Dessa forma, o grupo não aceita a proposta. O monitor então pergunta novamente se não for pelas ideias, como foi?
– mudou criando uma nova regra.
O monitor novamente coloca na roda o participante que indicou tal possibilidade e propõe “agora fica decretado que todos os participantes trabalham para fulano”. E aí? – pergunta o monitor. Da mesma forma que o anterior, o monitor coloca para o grupo se eles vão aceitar esta nova regra, lembrando qual é a maneira que o grupo vem decidindo as coisas do dia a dia. O monitor continua perguntando como foi que mudou as relações sociais para se transformarem em sociedades de classe. Neste momento, o monitor pode deixar os participantes opinarem e sempre fazer com que eles concretizem suas opiniões para o grupo buscando qual será a solução que o grupo dará para tal problematização. O monitor frisa então para o grupo que permanecendo as mesmas regras e formas de decisão, muito provavelmente nada muda. Como fazer para mudar então? Neste ponto, o monitor argumenta que a minoria deve ter algo que a maioria não tenha para obrigá-la a trabalhar para eles, não qualquer coisa, mas algo essencial à sobrevivência do grupo que esteja controlado pela minoria. Até agora nada do que a minoria pensou controlar tinha esta característica
Uma Minoria Controla As Fontes De Água
A minoria comunica ao grupo a nova situação e este tem que pensar uma forma de reagir. Como são a maioria, o grupo decide normalmente atacar a minoria e recuperar o que era de todos. Faça com que retomem os meios e derrotem a minoria. Discuta se é legitimo o que fizeram. Não teriam usado de violência? É justo usar da violência para retomar o que é do grupo?
O grupo minoritário se reúne de novo para avaliar a situação. O monitor reforça o fato que por eles serem minoria precisariam de algum instrumento que evite que a maioria recupere pela força o que a ela pertence. Em pouco tempo, o grupo chega à ideia de que é necessário um corpo armado para defender sua “propriedade”. Seguindo a forma de conduzir a dinâmica, o monitor escolhe alguém (os dois ou três mais fortes do grupo) para representar este corpo armado e avisa a turma que ele agora tem armas que o grupo não tem.
O monitor frisa que a partir do momento que a minoria dominou as terras ou a técnica de irrigação e da barragem, por exemplo, (meios de produção fundamentais à sobrevivência de todos) é que ela pode submeter a maioria. O monitor então confirma nesse momento em que a minoria está para se submeter:
“E AGORA: QUEM TRABALHA? DE QUEM SÃO OS MEIOS NECESSÁRIOS PARA A PRODUÇÃO? COMO SERÁ DISTRIBUIDO O QUE FOI PRODUZIDO?”
Diante das respostas, o monitor constata que agora naquela sociedade existem CLASSES!” [grifos do original] [10]
Seguindo o roteiro, o monitor percebe que aflora o senso comum, o que deve ser feito e o que pode acontecer. A conclusão está no próprio roteiro: “Não teriam usado de violência? É justo usar da violência para retomar o que é do grupo?” [grifo nosso]
O Estado, a exploração do homem pelo homem e as classes sociais surgiram a partir da violência. Um grupo minoritário, através das armas (corpo armado), usurpou os meios de reprodução da vida.
A teoria do proletariado e a formação das classes sociais
Em 1878, Friedrich Engels publica o Anti-Duhring [11], um clássico da teoria proletária. Declaradamente, o texto trata de um contraponto a teoria do Sr. Duhring, que, naquele momento, era propagandeada com entusiasmo por Bernstein e a camarilha reformista do SPD. [12]
Vejamos alguns extratos da seção segunda, denominada Economia Política, especificamente os capítulos “sobre a violência”. Primeiro a posição do Sr. Duhring, em seguida a de Engels.
“…A configuração das relações políticas é historicamente fundamental, e as dependências econômicas nada mais são que um efeito ou caso especial, sendo, portanto, sempre, fatos de segunda ordem. […] o elemento primário deve ser encontrado no poder político imediato e não no poder econômico indireto“. (palavras de Duhring, extraída do Anti-Duhring) [13]
Vejamos como Engels rebate esses argumentos e insere considerações sobre o “sistema filosófico integral” desse senhor.
“Ainda que os argumentos fossem baratos como amoras, o Sr. Dühring não nos forneceria nenhum em apoio à sua tese. Para que fornecê-los se tudo está tão suficientemente demonstrado pelo famoso pecado original, em que víamos Robinson escravizar “Sexta-feira”? Esta escravização era um ato de violência e, portanto, um ato político. E, como esse ato de dominação é o ponto de partida e o fato fundamental de toda a história até os nossos dias, introduzindo nela o pecado original da injustiça, embora um pouco atenuado ao se converter mais tarde “nas formas bem mais indiretas da dependência econômica”, e, como desse avassalamento primitivo brota toda a “propriedade baseada na força”, que vem até hoje imperando, é evidente que os fenômenos econômicos têm a sua raiz em causas políticas e, mais concretamente, na violência. E quem não se conformar com essas deduções é um reacionário camuflado.” [14] [grifo nosso]
(…)
Vamos analisar, entretanto um pouco mais de perto, essa onipotente “violência” do Sr. Dühring. Robinson escraviza “Sexta-feira”, “com a espada na mão”. Sim, mas onde arranjou essa espada? Que se saiba, até hoje, as espadas não brotam, como árvores, de nenhum lugar da terra, nem mesmo nas ilhas imaginárias onde vivem os Robinson. [grifos nossos]
Por ironia do destino, os companheiros do 13 de Maio utilizaram a ilha imaginária de Robinson Crusoé e de Mr. Duhring, o mesmo alvo de Engels em sua crítica.
Mais à frente, no fechamento da implacável crítica, Engels completa:
“Para o Sr. Dühring, a violência é a maldade absoluta. O primeiro ato de força é, em sua Bíblia, o pecado original, reduzindo-se todo o seu arrazoado a um sermão jeremíaco sobre o contágio do pecado original em todos os fatos históricos, e sobre a infame deturpação de todas as leis naturais e sociais por esse poder satânico, que é a força. Sabemos nós que a violência desempenha também, na história, um papel muito diferente, um papel revolucionário; sabemos que ela é, também, para usar uma expressão de Marx, a parteira de toda a sociedade antiga, que traz em suas entranhas uma outra nova: que é ela um instrumento por meio do qual se faz efetiva a dinâmica social, fazendo saltar aos pedaços as formas políticas fossilizadas e mortas. Mas, a respeito de tal aspecto, nada nos diz o Sr. Dühring. Reconhece unicamente, entre suspiros e gemidos, que, para derrubar o regime de exploração, não há outro remédio senão usar a violência: desgraçadamente, acrescenta, pois o emprego da violência desmoraliza sempre a quem a utiliza.” [15]
A priori, o que salta aos olhos é a conclusão do roteiro: “violência”. Claro, junto do antagonismo a Engels.
Em “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, de Engels (inclusive indicada como bibliografia nos cursos CFS1), o autor descreve o desenvolvimento de algumas sociedades, a saber: a iroquesa, a grega, a ateniense, a romana, a celta e a germana. E, obviamente, em nenhuma das análises e sínteses das sociedades que trata, Engels se contradiz. Indo além, demonstra o desenvolvimento das gens e tribos, chegando ao Estado. Sempre pelo desenvolvimento das relações de produção da vida. Há violência, mas posteriormente ao desenvolvimento econômico, para garantir as trocas, a propriedade privada e a integridade da tribo.
Outro ponto que indagamos é a percepção do participante do curso. O que se passaria na cabeça dele após a conclusão que a violência pariu as classes sociais e a propriedade privada (concomitantemente o germe do Estado)? Seria o homem mau? Ou o homem nasceu bom, mas a sociedade o corrompeu?
Indo além, se a sociedade irá se corromper, o que podemos fazer para nos preparar? O que pode impedir esse “pecado original”? Um aparelho de opressão de uma futura classe opressora? Seria a manutenção ou criação de um aparelho “acima” das classes para manutenção da ordem? Ou melhor:
“Os oprimidos lutando por ser, ao retirar… [do opressor] o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão.” (Freire, 1987) [16] [grifo nosso]
Conclusão
Fechando esta primeira parte do texto, acreditamos que ilustramos bem nossa divergência com a tese da violência utilizada pelos monitores do 13 de Maio – NEP no CFS1 e pelo Sr. Duhring (que, ao que tudo indica, anda por aí até hoje em sua ilha imaginária gritando: “Que país é esse?!”).
Mesmo que nossas palavras sejam confusas, temos a certeza que as de Engels não são e que depois de mais de 30 anos de vida ainda persiste a tese contratualista dentro do núcleo de educação popular, ou seja, permanecem divulgando os “valores” social democratas.
Deixemos Engels e agora vamos aos rumos que o núcleo tomou.
Continua em “Os doze, digo, quatro trabalhos de Hércules…”
Notas
[1] Que classe, né?
[2] As relações entre o erro e o conhecimento são ainda demasiado obscuras para que se possa pretender regulá-las [sempre serão, creio eu] para que se possa regulá-las com autoridade; sem dúvida, são necessários aos homens longos encaminhamentos através das hipóteses, erros e tentativas de imaginação para chegar a extrair daí conhecimentos mais exatos, em parte provisórios: pois existem poucas exatidões definidas. Isso significa que a liberdade de pensamento parece-me ser um dos valores mais essenciais. E também um dos mais combatidos. Incessantemente encontrei por toda parte o medo ao pensamento, o recalcamento do pensamento, como um surdo desejo totalmente generalizado de fugir ou reprimir esse fermento de inquietude.” (Victor Serge. Memórias de um revolucionário. Cia das letras, p. 428) [grifo nosso]
[3] O curso é dividido em 2 dias. No 1o dia o objetivo central é, através da dinâmica da fábrica, entificar a compreensão de mais-valia, exploração, porque o rico fica rico, etc.
[4] Em Lessa, Sérgio. A família monogâmica, o autor acrescenta a família monogâmica.
[5] Ver Tumolo, 2002.
[6] Video 1, minuto 18. disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tTHp53Uv_8g&t=2371s
[7] Há de se concordar, O que Fazer? e “Estado e a Revolução” são obras primas do pensamento de esquerda (ou comunista).
[8] Como muito bem caracterizou João Bernardo em O Estado Totalitário.
[9] Extraído da apostila/roteiro do curso como funciona a sociedade 01 – CFS1.
[10] Roteiro atualizado do CFS1/2019 enviado para o autor em 2020
[11] Anti-Duhring. Friedrich Engels. 1990, Ed Paz e Terra.
[12] Partido Social-Democrata da Alemanha.
[13] Anti-Duhring, p. 137.
[14] Idem, p. 145
[15] Idem, p. 161
[16] Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido. 1987. Paz e terra. Disponível em http://www.tlaxcala-int.org/upload/telechargements/150.pdf. Acessado em 1 de maio de 2019.
A charge em destaque pertence à série de tiras Calvin and Hobbes, de Bill Watterson (1958-). As demais artes que ilustram o artigo são da autoria de Charles Rogers Grooms (1937-).