Por Thiago Canettieri
Dando continuidade ao formato de debate que pretendo manter na Coluna Cidades, convidei desta vez o colega Thiago Canettieri para dar sua contribuição, desenvolvendo o comentário que ele fez ao meu último texto, no qual trazia a instigante formulação de uma “forma-periferia”. Espero que possamos dar corpo ao debate por aqui! Isadora Guerreiro
O capitalismo cresce por elaboração de periferias — assim Chico de Oliveira [1], em sua Crítica da Razão Dualista, oferecia uma síntese de suas reflexões. As periferias não eram, para ele, uma expressão de um atraso ou arcaísmo que seria superado pelas ondas de modernização no país. Ao contrário, para o autor, a modernização dependeria da manutenção e reprodução daquilo que aqui vamos chamar de “forma-periferia”.
Entendo a forma-periferia como uma forma social histórica e espacialmente determinada que organiza a totalidade concreta do capital. Se a forma-valor foi o que “enformou” a sociabilidade propriamente capitalista, ela não se consolidou da mesma maneira em todos os lugares. Nos países periféricos esta forma nunca se realizou plenamente, mas, nessa condição truncada, produziu o que chamamos aqui de forma-periferia.
Para Chico de Oliveira, o funcionamento do capitalismo periférico, em seu próprio desenvolvimento, gerava um excedente de força de trabalho que se reproduziria a partir da manutenção de formas não-capitalistas. Havia assim, para o autor, uma unidade de contrários, uma simbiose entre a modernização e a reprodução dos arcaísmos que permeia toda a sociedade como condição necessária para a reprodução ampliada do capital. Não há espaços para dualismos. Não se trata de uma oposição entre incluídos e excluídos. A rigor, todos estão incluídos — mesmo que alguns o estejam negativamente.
A superexploração estrutural nas economias dependentes implicou na organização de estratégias de produção do espaço e de reprodução da força de trabalho que determinavam as formas que o tecido urbano assumia. Essa foi a condição para a “industrialização dos baixos salários” que impulsionou a nossa modernização, sem, no entanto, superar o atraso — mas sim funcionalizando-o à acumulação. A expansão do tecido urbano nos países dependentes estava necessariamente vinculada à expansão dos limites das periferias urbanas, desprovidas dos serviços urbanos essenciais e distantes da oferta de emprego, marcada pelo acesso informal à terra a fim de receber o enorme contingente de pessoas que vinham do êxodo rural ao longo da década de 1950 e 1960, ao passo que o mercado formal nas cidades se restringia a uma pequena parcela da população mais favorecida. Assim, o espraiamento periférico da cidade industrial brasileira garantia soluções habitacionais de baixo custo nas periferias, adequadas ao modelo do capitalismo periférico dependente, mantendo baixos os valores de reprodução da força de trabalho.
Como Isadora Guerreiro [2] tem argumentado, é necessário atualizar essa análise. O Brasil está hoje em outro contexto. Compreender a reprodução ampliada da periferia em relação ao atual momento da reprodução do capital envolve um esforço de compreensão do presente. A forma de provimento habitacional não é descolada do restante do funcionamento da sociedade.
A vida urbana contemporânea no Brasil é marcada pela expansão da insegurança habitacional e pelo aumento das pessoas em condição de transitoriedade permanente, significando uma maior precariedade habitacional para muitos [3]. Como notou Isadora Guerreiro em coluna para este site, a população em situação de rua tem aumentado cada vez mais e parece ter alterado os sinais da dinâmica urbana contemporânea: a periferia não é mais por onde o pobre urbano vai residir, mas tem se tornado também um local de “expulsão”:
Olhando para este cenário — no qual é a própria periferia aquela que expulsa —, o aumento da população em situação de rua com características mais de núcleo familiar parece ser decorrência do esgotamento de um ciclo de expansão urbana consorte à fase industrial. Se, naquele momento, a nossa acumulação capitalista dependia do rebaixamento salarial — instrumentalizando a espoliação urbana —; hoje, as necessidades do capital financeiro, completamente descoladas da relação salarial, se apropriam do urbano como um grande campo de extrativismo bruto, no qual a esfera de reprodução das classes populares pouco se distingue da esfera produtiva. Ou melhor: de uma esfera produtiva em crise e, efetivamente, bem pouco efetivamente “produtiva”.
A crise da esfera produtiva a que a autora se refere é a crise resultante da dinâmica contraditória do capital. O capital, enquanto contradição em processo (Marx), coloca barreiras e limites para seu próprio desenvolvimento. Resultado de sua potência de expansão em busca da incessante autovalorização infinita, o capital deve solapar as bases da valorização. Essa é a ambiguidade da dinâmica capitalista: com a ordem de mais acumular, o capital dessubstancializa-se a si mesmo e passa a existir somente em formas mais “exteriorizadas” e “fetichizadas”. Assim, ocorre a dissolução da “forma-valor”.
Por óbvio essa enorme transformação vai resultar também em novas formas de sociabilidade, de produção do espaço e de vida cotidiana. Se antes a integração ao mundo do trabalho era o critério definidor, com o colapso do capital o trabalho é destruído. O “consenso do trabalho” foi para o brejo, o que significa, é claro, que as pessoas — transformadas em sujeitos monetários pela imposição da forma social do capital — agora devem se virar para continuarem sobrevivendo.
Para continuarem no jogo, tendo que se debater cada vez mais forte para disputarem a superfície nesse naufrágio social, toda forma de manter o consumo acontecendo é válida: empreendedorismo de crise, trabalho de viração, extrativismos políticos, ilegalismos populares e rentismo periférico são algumas das formas que as classes populares buscam para se reproduzirem no contexto de crise. Olhar para as atividades de reprodução da classe “ex-trabalhadora” nas periferias pode ser uma maneira de seguir a verve crítica e atualizá-la para o contexto contemporâneo [4].
Sem puxar esse fio da meada por ora, sugiro ressaltar outro aspecto relevante para compreensão do momento presente. Diante do avançar dos ponteiros da crise, parece-me que a forma-periferia tende a se generalizar. Essa hipótese não é relativamente nova. Foi elaborada primeiramente por Paulo Arantes [5], ao diagnosticar a brasilianização do mundo. A crise, uma vez que destrói os pressupostos da sociabilidade capitalista como resultado da sua dinâmica de expansão, obriga à uma produção do espaço e da vida cotidiana cada vez mais semelhante com critérios que já estavam colocados na periferia. Assim, a periferia é uma espécie de “laboratório avançado da barbárie” ou, mais precisamente, um posto de observação privilegiado.
Por mais que as formas sociais especificamente capitalistas se colocassem de maneira imperiosa como critério de sociabilidade, elas nunca se colaram por completo na prática cotidiana da periferia. Nesta, com a imposição dessa sociabilidade, grandes parcelas da população ficaram de fora da produção industrial insular para o mercado mundial e do aparato estatal de proteção e assistência, acabando na miséria.
Devemos lembrar que a condição periférica “normal” já era o anúncio da condição de crise. Boa parte da degradação social em curso no mundo hoje não é decorrente da provada exploração capitalista, “mas sim, ao contrário, da ausência dessa exploração” [6].
O resultado do desabamento irreversível do mundo do trabalho, reduzido a escombros, não se restringe apenas à esfera propriamente econômica. A posição que o trabalho ocupou, como uma categoria determinante da sociabilidade moderna, o faz ser a forma básica de mediação social, o meio pelo qual se garante a reprodução material dos indivíduos e a formação e consolidação do reconhecimento intersubjetivo. Essa nova identidade de crise — que, na verdade, sempre esteve presente na periferia — implica rupturas estruturais com as formas pelas quais os membros da sociedade produtora de mercadoria foram socializados. A forma-valor que garantiu a aderência dessa sociabilidade, ao entrar em crise, coloca uma parcela gigantesca da humanidade em uma condição de superfluidade ao mesmo tempo em que, mesmo em crise, vale destacar, está impedida a emergência de novas relações sociais. “Passamos do ‘horror civilizado do sobretrabalho’ que Marx se referiu à sua época para o horror barbarizado dessa forma de mediação social em crise” [7].
Nesse contexto, os indivíduos assumem sua própria existência como “capital humano”, ainda que este seja simplesmente seu corpo nu. Assim, se veem coagidos a se lançarem nas águas turbulentas da concorrência asselvajada como uma horda de Ulisses precários enfrentando cada qual a sua própria odisseia particular. Essa experiência de decadência social deve ser lida de maneira dialética: produz uma massa de humanidade indesejada, porém necessária; supérflua para os fins da acumulação sim, mas ao mesmo tempo integrada — só que negativamente.
O que importa ressaltar aqui é uma tensão produzida pela sociedade contraditória do capital em colapso. A crise absoluta do capital decorrente da eliminação dos postos de trabalho implica a dissolução da forma social especificamente capitalista, a saber, o trabalho. Esses sujeitos que são expelidos das esferas produtivas podem até participar da circulação, mas já não integram mais a valorização do valor e se tornam supérfluos à acumulação. Vale notar, esse grupo não para de crescer com a descontemporalização do trabalho diante do próprio desenvolvimento do capital [8]. O colapso da modernização não é o desmantelamento do capitalismo, mas o aprofundamento das contradições que dissolvem os fundamentos da própria sociabilidade sem nada pôr no lugar, exceto a gestão de riscos e a administração do seu próprio colapso. Essa situação de dissolução das formas sociais deixa naturalizadas as condições desse desabamento.
A maioria da população mundial já consiste hoje, portanto, em sujeitos-dinheiro sem dinheiro, em pessoas que não se encaixam em nenhuma forma de organização social, nem na pré-capitalista, nem na capitalista, e muito menos na pós-capitalista [9].
Essa ausência de organização social é a condição periférica há muito tempo. O que se tem nas periferias dos países periféricos são formas de existência social que estiveram nesse entremeio: incluídas na acumulação capitalista, mas mantidas no círculo mais externo dessa sociabilidade, com tramas tão finas que a própria reprodução da vida periférica é complementada com práticas “atrasadas” — entretanto, como já visto, essa é a pré-condição para sustentar, mesmo que com escoras, o processo de modernização e seu colapso. Por isso, parece-me que estratégias familiares de reprodução da vida periférica podem informar sobre os rumos da vida cotidiana depois do colapso da desativação do progresso, da destruição do desenvolvimento e da dissolução das formas-sociais modernas. No lugar das formas-sociais próprias da modernidade, é a forma-periferia que oferece a unidade sintética do processo de colapso. Enfatizar a forma-periferia significa dar ênfase ao derretimento das formas sociais anteriormente erigidas no sistema produtor de mercadorias.
Assim, podemos designar a forma-periferia como um princípio de organização da sociabilidade capitalista na medida em que a forma-valor entra em crise, mas não se destitui como critério definidor da prática social. Essa condição liminar coloca uma parcela gigantesca da humanidade em um regime de superfluidade — que foi mais ou menos generalizada desde muito tempo nos países colonizados. As expectativas declinantes da modernização inauguram um novo regime histórico no qual a forma-periferia torna-se o índice de todo o mundo. Neste momento interessa colocar em relevo o decaimento que as categorias da modernização sofrem ao longo do colapso. Dentre essas, estão as categorias de centro e periferia, categorias próprias da modernização que estabelecem a diferenciação relativa entre os diferentes lugares (e em variadas escalas) permitindo organizar a experiência da modernidade. Mais ainda, esse par de categorias é entendido como uma unidade relacional: de certa forma um termo pressupõe o outro.
O interesse de definir a forma-periferia como o elemento que oferece a unidade sintética do processo de colapso permite colocar em destaque o derretimento das formas sociais anteriormente erigidas no sistema produtor de mercadorias e, assim, tentar compreender a reprodução ampliada de uma forma social decadente. No momento em que essa nova forma se desenvolve, a forma-periferia, que nasce e progride da dissolução da forma-valor, obriga a um rearranjo do capital e de suas formas de dominação. Como visto anteriormente, se o trabalho foi durante muito tempo o terreno em que se efetivava a dominação social do capital através do tempo, conforme argumenta Postone (2014 [1993]), à medida que esse princípio social sai de cena por conta dos rearranjos técnicos na esfera da produção, outra forma de dominação é colocada como princípio de mediação social: uma dominação pela precariedade da vida na forma-periferia.
Assim, a reprodução ampliada da periferia assume aqui um novo sentido. Já não é o “crescimento” do capitalismo que “elabora periferias”, como se referiu Chico. O colapso da modernização também ocorre pela elaboração de periferias.
Notas
[1] Francisco de Oliveira, Crítica da Razão Dualista (Boitempo, 2003), p.43.
[2] Isadora Guerreiro, O aluguel como gestão da insegurança habitacional: possibilidades de securitização do direito à moradia (Cadernos Metrópoles, v.22, n.49, 2020).
[3] Raquel Rolnik, Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças (Boitempo, 2015).
[4] Alguns pensadores e pensadoras estão se dedicando a isso. Além da Isadora Guerreiro, vale destacar o trabalho do Daniel Giavarotti, publicado também pelo Passa Palavra; bem como os escritos do antropólogo Gabriel Feltran ou da Rosana Pinheiro-Machado.
[5] Paulo Arantes, A fratura brasileira do mundo, in: Zero à esquerda (Conrad, 2004).
[6] Roberto Schwarz, Fim de século, in: Sequências Brasileiras (Companhia das Letras, 1999), p.194.
[7] Thiago Canettieri, A condição periférica (Consequência, 2020), p.29.
[8] Com a dessubstancialização da forma-valor, o trabalho torna-se anacrônico com as determinações do capital, cada vez mais exteriorizadas e fetichizadas. O índice da sociabilidade nos marcos capitalistas é destruído ao mesmo tempo que preservado. Em seu lugar, novas formas de dominação surgem para garantir a coesão social — agora na base da pressão da concorrência violenta. Para mais, ver Robert Kurz, Dinheiro sem valor (Antígona, 2012).
[9] Robert Kurz, O colapso da modernização (Paz & Terra, 1993), p.195.
Caro Thiago,
Onde poderei encontrar dados que embasam e corroboram com as suas teses sobre a transformação da forma-valor em forma-periferia no atual momento do capitalismo. Em uma série de artigos publicados aqui no Passa Palavra, https://passapalavra.info/2022/02/142324/, Charles Júnior, questiona a falta de dados econômicos daqueles que afirmam que nos encontramos em uma crise permanente do capitalismo, além de tal crise permanente ser incompatível com a lei do valor, nos termos colocados por Marx. Onde poderíamos comprovar esse estado de decadência da forma-valor, por onde se efetiva a acumulação do mais valor dentro das relações de produção capitalista, e onde poderíamos encontrar na realidade essa virada fundamental de novas relações de exploração que negam a tradicional forma- valor, ou seja, a exploração pelo trabalho?
Caro Thiago,
Primeiro gostaria de agradecer pelo texto para a coluna, que só tem a ganhar com este tipo de colaboração. Obrigada! Sua proposição é bastante polêmica e com certeza necessitará de outros espaços de discussão que não apenas este aqui dos comentários no Passa Palavra. Vou, portanto, apenas colocar algumas questões que seu texto me suscitou.
Por um lado, a proposição de uma forma-periferia me parece instigante na medida em que coloca em foco a indissociabilidade entre as esferas de produção do valor e reprodução social, como totalidade do capital. Mais do que isso, ela dá relevo à coexistência de formas acabadas de subsunção do trabalho ao capital com formas precárias de produção e reprodução social – o que não significam “atrasadas”, como você bem colocou citando a “Crítica à razão dualista” do Chico de Oliveira. No entanto, acredito que levar esta formulação adiante, a desenvolvendo para o tempo presente, signifique justamente entender o papel cada vez mais central da forma-periferia como parte interna da forma-valor num momento de predominância do capital portador de juros – em particular do capital fictício. Ou seja, acredito que a força do conceito esteja justamente em ele nos ajudar a compreender o tempo presente de transformação do capital enquanto capital.
Entendo a necessidade de contraposição entre forma-valor e forma-periferia que você construiu a partir de Kurtz e Postone, ou seja, a partir da “dissolução da forma-valor”. No entanto, como eu já havia respondido ao Daniel anteriormente ( https://passapalavra.info/2022/03/142702/#comment-839806 ), eu não sigo por este caminho. Prefiro ver o que você conceitua aqui como forma-periferia como uma forma social historicamente determinada que ganha prevalência – inclusive adentrando em formações socioespaciais nas quais ela era residual ou inexistente – na medida em que as contradições do capital se aprofundam, ganhando contornos fictícios junto à tendência de diminuição da taxa de lucro na esfera produtiva. Ou seja, como o capital portador de juros passa a subsumir as relações sociais de maneira diversa daquela do capital industrial – a meu ver, dando outros contornos ao lugar da reprodução social, na medida em que a este capital servem corpos rentáveis, não necessariamente produtivos.
Não se trata, portanto, de uma forma contraposta a outra, ou de uma amorfia, mas de transformações internas à forma-valor que, segundo Marx (O Capital, Cap.XXIV, Livro III, Tomo I), no capital portador de juros alcançam “a forma irracional do capital, a inversão e reificação das relações de produção em sua potência mais elevada (…), a mistificação do capital em sua forma mais crua”. Acho que devemos tomar certo cuidado em não confundir mistificação em seu grau mais acabado com “dissolução da forma-valor”, na medida em que a própria forma-valor se define como uma forma fetichista: ou seja, o apagamento de suas origens faz parte de seu próprio desenvolvimento enquanto forma social, dominação social. Continuando Marx:
“Na forma do capital portador de juros, portanto, esse fetiche automático está elaborado em sua pureza, valor que valoriza a si mesmo, dinheiro que gera dinheiro, e ele não traz nenhuma marca de seu nascimento. A relação social está consumada como relação de uma coisa, do dinheiro consigo mesmo. Em vez da transformação real do dinheiro em capital aqui se mostra apenas sua forma sem conteúdo”. Tenho tentado chegar mais perto disso que Marx chama de “forma sem conteúdo”, que é diferente de “sem-forma” ou de “forma em crise”, pois, na verdade, é a “forma mais crua”, mais “bem acabada”.
Assim, quando você diz que “Enfatizar a forma-periferia significa dar ênfase ao derretimento das formas sociais anteriormente erigidas no sistema produtor de mercadorias”, talvez eu pense mais na transformação de seu conteúdo, não da forma de dominação social pelo capital. Dentro desta mesma forma, estou pensando sobre o derretimento das relações vinculadas ao mundo industrial com crescente predominância de monopolização de fluxos de rendas, o que altera a relação com a esfera da reprodução social e com a terra, ou seja, também com o urbano.
Vou buscar desenvolver essas questões nos textos da coluna, por enquanto fico por aqui. De qualquer maneira, suas questões são extremamente ricas para avançarmos o debate em torno do lugar da periferia na determinação histórica atual, algo que também tenho perseguido. Obrigada mais uma vez!
Gogol, obrigado pelo comentário.
Eu não conhecia os textos do Charles Júnior (e, infelizmente, demorei muito para conseguir lê-los). De minha perspectiva, há um problema de fundo que é sintetizado por Postone, em Tempo, trabalho e dominação social. Valor, em Marx, não é exatamente uma “categoria econômica”. Ele utiliza-a criticamente, apropriando da formulação dos economistas clássicos, mas a dobra para uma perspectiva crítica. Por isso ele deve falar em forma-social contraditória.
Charles está partindo aqui do trabalho do Mészáros, que é interessante, mas também insuficiente. Uma teoria das crises consequente é, a meu ver, mais bem desenvolvida por Robert Kurz, desde o “O colapso da modernização” até o “Dinheiro sem valor”.
E aqui, da minha perspectiva, essa teoria não é “incompatível com a lei do valor, nos termos colocados por Marx”, como você escreve – pelo contrário, acho muito mais coerente com os escritos de Marx – por exemplo, Marx, nos Grundrisse escreve:
“O seu próprio pressuposto – o valor – é posto como produto, e não como pressuposto superior, pairando sobre a produção. O limite do capital é que todo esse desenvolvimento procede de modo contraditório, e o aprimoramento das forças produtivas, da riqueza universal etc., do conhecimento etc., aparece de tal forma que o próprio indivíduo que trabalha se aliena [entäussert]; se relaciona às condições elaboradas a partir dele não como suas próprias condições, mas como condições de uma riqueza alheia e de sua própria pobreza” (2011, p.723)
No livro III d’O Capital, Marx escreve: “Um desenvolvimento das forças produtivas capaz de reduzir o número absoluto de trabalhadores, ou seja, em que toda a nação possa efetuar a produção total em um menor intervalo de tempo, provocaria uma revolução, pois inutilizaria a maior parte da população”
Um parêntese: o drama é que vivemos num mundo que “inutilizou” (e continua inutilizando) parte da população sem que isso produza qualquer revolução.
Isso porque, em Marx, a reprodução ampliada do capital é necessariamente contraditória. Ver, por exemplo, o capítulo XXIII do Livro I, d’O Capital: por uma necessidade intrínseca à própria reprodução do capital, o trabalho é substituído por máquinas. Nesse processo, entretanto, coloca limites intransponíveis à valorização do valor. Por isso há uma tendência de “anacronismo” do valor como forma social – e, a meu ver, essa intuição já está dada em Marx. O aumento da composição orgânica do capital acaba bloqueando a valorização do valor. Se a substância do capital é o valor, e o valor é uma forma historicamente determinada de mediação social baseada no trabalho (entendido enquanto uma categoria moderna), então, o próprio capital entra em colapso.
Há nesses textos elementos que corroboram com o desenvolvimento de uma crise. Mais recentemente, há o esforço do Fábio Pitta para uma interpretação da “bolha de commodities” ou o texto de Luiz Phillipe De Caux sobre o “definhamento da forma-jurídica” que acompanha o decaimento da forma valor. Há a dissertação de mestrado de Ana Sylvia Ribeiro (defendida na USP, orientando de Anselmo Alfredo) sobre o consumo ficcionalizado nas periferias.
Além disso, acho que a interpretação da crítica do valor oferece subsídios importantes para compreender a realidade para além dos “dados econômicos”. É uma teoria que ajuda a explicar não só a ficcionalização do capital (decorrente de sua dessubstancialização), mas ajuda a explicar a disseminação da violência, ajuda a explicar o levante do “novíssimo radicalismo de extrema direita”, entre outros processos sociais.
Parte dessas questões levantadas já respondem algumas das questões colocadas por Isadora, a quem agradeço enormemente a oportunidade do diálogo (que, com certeza, não se encerra aqui).
Eu não sei se a dominância do capital portador de juros – em particular o capital fictício – permite falar em “valorização do valor”. Pois o que acontece é um “adiantamento” de mais-valor que não existe – a imagem que Kurz usa é de uma “fuga para frente”. Assim, não há acumulação “real”, mas apenas uma “simulação” de valorização, sustentada (sustentada?) Por montanhas de capital fictício”.
Como falei, o contexto de crise instaurada pelo desenvolvimento da contradição interna do capital produz esse sistema de crédito mundializado, empilhado e inflacionado, que camufla a derrocada da valorização do valor. Valorização financeira, para Kurz, não significa valorização do valor. Acho que é uma distinção pertinente para pensar uma série de desdobramentos.
Então, eu concordo com você que “o capital portador de juros passa a subsumir as relações sociais de maneira diversa daquela do capital industrial – a meu ver, dando outros contornos ao lugar da reprodução social, na medida em que a este capital servem corpos rentáveis, não necessariamente produtivos”. Entretanto, isso não significa valorização do valor, mas um outro tipo de sociabilidade de crise – e é preciso conceitualizar melhor o que isso significa.
Assim, acho que uma pauta para nossas próximas conversas (tomara que presenciais) deve ser o lugar do capital portador de juro. Acho que reside aqui nossa divergência na forma de ler o Marx.
Falar do “do fim de uma forma” e da “forma mais crua e mais bem acabada” não é, a meu ver, uma confusão. Como escreve Hegel no prefácio da Fenomenologia, é só no fim que uma coisa é o que é. Então, acho coerente afirmar que Marx estava sim reconhecendo com a formação do capital portador de juros uma dinâmica de colapso da forma-valor.
De toda forma, o debate segue em aberto. Uma oportunidade muito boa conseguir fazer isso que Brecht chamava de “pensar dentro de outras cabeças” – obrigado!
Caro Thiago, agradeço a resposta e as indicações de leitura que tratam desse tema, procurarei as teses, os livros e as passagens do O Capital e nos Grundrisse.
Embora concorde que uma parcela da população não consiga se inserir dentro dos mecânicos clássicos de exploração, pelo trabalho, e que durantes as crises econômicas essa parcela de ex-proletários declinam sem retornarem a modernidade clássica da forma-valor. Mas a questão que me deixa discordante das suas conclusões é ver isso como resultado de um capitalismo em crise permanente, ou seja, em um capitalismo decadente. Com isso, vc pode chegar a conclusão que uma forma está substituindo a outra por que capitalismo hoje, do ponto de vista da acumulação, está em colapso e decorrência do aumento da composição orgânica do capital, por uma contradição interna dos mecanismos de acumulação. Mas a questão que eu coloco é, existe essa contradição interna dentro dos mecanismo capitalista produção e reprodução que pode levar o capitalismo ao colapso? Essa contradição está nos mecanismo de produção ou nas relações sociais de produção ou fora delas?
Tendo a concordar com o que a Isadora pontou, “Não se trata, portanto, de uma forma contraposta a outra, ou de uma amorfia, mas de transformações internas à forma-valor”. E acrescentaria que tal decrepitude, a forma-periferia, longe de expressar um capitalismo em crise permanente, é a comprovação da vitalidade mórbida do capitalismo, que coloca parcelas de gerações de trabalhadores em tal estado sem qualquer reação.
Thiago, obrigado pela resposta e continuaremos debatendo.
Saudações fraternais!
Opa Thiago, tudo bem? Obrigado pelo texto e pela continuidade da conversa.
Eu gostaria de fazer uma pequena contribuição crítica ao seu texto e ao diálogo que se seguiu nos comentários. Bem, eu não tenho discordância da tese que organiza o seu texto, embora tenha dúvidas se foi mesmo o Paulo Arantes o primeiro a falar de que a periferia chegaria ao centro. Essa formulação está bem demonstrada no colapso da modernização que, se não tô enganado, se inspira no texto Guerra Civil do Hans Magnus Enzensberger. Acho importante dizer isto porque, do meu ponto de vista, a ideia de que o capitalismo produziria sua própria crise foi um revés teórico-ideológico no sentido progressista que animou a tradição crítica brasileira. Dizer que o capitalismo produziria barbárie caso deixado sem qualquer tipo de regulação é diferente, do meu ponto de vista, de dizer que o capital produziria uma crise do trabalho em razão da dinâmica determinada pelo tempo abstrato. Inclusive este problema se manifesta na polêmica sua com a Isa, pois é totalmente contra-intuitivo que a “forma mais acabada” do capital seja o seu próprio colapso. Em outras palavras, a forma mais acabada parece ser a subsunção absoluta de tudo pelo capital (portador de juros) e, portanto, sua vitória, quando a própria fuga para a frente, na expansão do mercado financeiro e do mercado de derivativos, é a própria impossibilidade da acumulação de capital, como você bem demonstrou. De qualquer modo, embora eu concorde com a tese geral, como já afirmei, acho que seu texto peca pela lógica dedutiva na qual ele se funda. Acho que suas análises ganhariam caso descessem um pouco mais ao chão da vida social e considerasse seriamente a totalidade concreta. A caracterização do que você chama de “forma-periferia” é uma coleção de exemplos de precariedades típicas do mundo do trabalho em crise que mais ofusca a relação que esta estabelece com a acumulação fictícia e a crise de sociabilidade em curso, do que revela. Mas eu acho que o mais preocupante é quando você afirma que “O colapso da modernização também ocorre pela elaboração de periferias” porque nessa formulação você parece atualizar o desenvolvimento desigual e combinado que fundamentou o raciocínio do Chico de Oliveira e de tantos outros autores e autoras que pensaram a expansão do capitalismo no Brasil e, mais especificamente, a metropolização de São Paulo e outras capitais. O capital produziu sua periferia por uma configuração particular estabelecida entre o núcleo da acumulação de capital (as indústrias) e formas particulares de extração de trabalho excedente que ocorria sob formas “arcaicas” ou “não-tipicamente capitalistas”. E eu acho importante, inclusive para fortalecer o seu argumento, que essa aproximação seja recusada, porque isso é uma das configurações que o aumento da composição orgânica dos capitais implodiu né? Mas pra mim tem algo além. Embora o Chico tenha pensado a autoconstrução e sua relação com a acumulação de capital industrial (raciocínio bem típico do androcentrismo marxista dele), a relação entre estes momentos da reprodução do capital não foi uma relação estritamente econômica né? Ela envolveu projetos familiares, formas particulares do patriarcado se realizar, as quais não se realizam mais num contexto de colapso. Uma experiência de mobilidade do trabalho de filhos/filhas, netos/netas, que já não guardam qualquer identidade com as trajetórias de mobilidade de seus pais/avós. Como fica a forma-periferia diante de uma trajetória de um morador/moradora de quebrada que entrou na universidade? E eu não estou falando de ascensão social, mas de mobilidade que modifica o jogo das personas do capital e, portanto, a sociabilidade. Esta é uma trajetória que os pais desta garotada nunca imaginaram realizar né? Em outras palavras, eu tô te convidando a pensar também a partir de formas de sociabilidade que se modificaram radicalmente e que não podem ser encaradas apenas do ponto de vista do mundo do trabalho, sob pena de cairmos num raciocínio lógico sobre a crise do valor. O valor, embora seja abstrato, ele não se realiza de forma igual para todos né? Tem cisão/dissociação (Scholz). Como é possível explicar o “novíssimo radicalismo de direita” sem falar da crise do núcleo familiar burguês (não no sentido sociológico)? Como pensar o supremacismo branco sem pensar nas formas particulares que o racismo adquire no colapso? Veja, eu não tô dizendo que você precisaria falar de tudo, eu estou pinçando temas que me parecem caros à experiência periférica, que se conformou como espaços de reprodução das forças de trabalho. Enfim, pra mim tem mais caroço nesse angú do colapso e acho que essa formulação num nível muito abstrato e lógico tende a apagar mais do que revelar os conteúdos do colapso. No sentido de uma apreensão mais geral sobre o colapso eu fico com a Roswitha Scholz (em oposição ao Kurz) do texto “O ser-se supérfluo e a ‘angústia da classe média'”. Inclusive, neste texto, ela faz uma crítica importante ao texto do Kurz sobre “o último estádio da classe média” que está pressuposto no seu texto e faz questão de afirmar que o problema da população sobrante relativa no capitalismo não é o fundamento último do colapso, embora seja parte importante de sua apreensão. Por fim, gostaria apenas de dizer do que eu discordo mais abertamente: acho que não é “forma-periferia”, pra mim é “crise da forma-valor”, “colapso da modernização”, “crise do trabalho”, manifesta em formas particulares e que assim precisam ser investigadas.
Enfim, agradeço a oportunidade da conversa. Continuemos. Abraço fraterno.
PS. Desculpe pela intervenção um pouco lacônica, mas o tempo abstrato por aqui anda escasso e precisei escrever meio rápido. Mas não quis perder a oportunidade do diálogo.