Por Arthur Moura

Leia aqui a segunda parte do artigo

Existe um pensamento aristocrático até mesmo na esquerda que diz que o cinema se resume a obras ficcionais, excluindo aí uma gama imensa de documentários e outras obras experimentais que a partir dessa leitura não gozariam do status de cinema. Geralmente os setores que partem desse lugar não são produtores, mas teóricos ou críticos, o que limita a sua visão e leitura sobre os processos de pré-produção, produção e distribuição. De forma geral, acreditamos ser cinema, tudo aquilo que parte de uma estrutura em audiovisual que não se esgota em formatos de programas televisivos ou publicitários, que arrisca novas linguagens não comumente usuais a partir de uma narrativa totalizante. O cinema possui inúmeras formas de linguagens, narrativas, conceitos e metodologias de produção. Para se produzir um filme é necessário pesquisar sobre o assunto, pensar todo o processo de produção desde técnica, roteiro, montagem, finalização, distribuição e, claro, todo o pessoal envolvido como técnicos e especialistas. Porem, um filme pode ser feito sem ter a princípio alguns elementos como, por exemplo, o roteiro. Um documentário pode ser feito no calor das movimentações políticas e só depois ser estudado em como construir uma narrativa a partir do material bruto como é o caso do clássico documentário A Batalha do Chile de Patrício Guzmán. Um filme para ser considerado como tal não precisa necessariamente passar pelo crivo da distribuição, mas um filme sem roteiro e distribuição não completou todo o seu caminho. Sim, são múltiplas as formas de se fazer um filme, mas nem todo filme atua como ferramenta de transformação social; muitos inclusive, visam a alienação do espectador por meio do espetáculo, tal como coloca exaustivamente Guy Debord em seu clássico livro “A Sociedade do Espetáculo”. Contudo, o cinema como ferramenta de transformação social que tratamos aqui é sensível a metodologias de produção e temas que incitem questionamentos sobre o sistema capitalista e sua construção ética de individuo. Acreditamos que fazer cinema parte de funções técnicas e artísticas. Nesse sentido o cineasta atua na sociedade como construtor e dinamizador de idéias, que estimula em maior ou menor grau a transformações das estruturas de poder ou a manutenção de tais estruturas. Sendo assim, o cinema é um campo de disputas, e o que esta em jogo nessa disputa são os temas que iremos abordar e a lógica de produção dos nossos filmes. Em vez de reproduzir a divisão do trabalho na produção dos filmes, o cinema revolucionário deve utilizar metodologias horizontais de produção, substituindo o clichê das narrativas e roteiros por temas originais e formas originais de contar histórias. Pensamos que uma ruptura com o cinema industrial só é possível absorvendo três pautas principais:

. 1ª utilizando roteiros que possam estimular, de forma geral ou especifica, visões críticas da sociedade que habitamos e trabalhar formas de produção eficientes fora do mercado;
. 2ª metodologias de trabalho horizontalizadas, pois, só com a valorização e estimulo do sujeito enquanto agente criador de ideias é possível criar obras que sejam capazes de propor rupturas efetivas contra o sistema capitalista;
. 3ª a criação de redes de apoio mutuo é o amparo para as demais pautas; ela possibilita a viabilidade do projeto. Essa rede absorve a polivalência de funções que envolvem a realização de um filme e toma partido dele de forma cooperativa, ao passo que por uma condição de logística de trabalho seus membros se diluam em diversas funções especificas; é de fundamental importância que todos os envolvidos no ato de criação tenham direito a fala de modo a enriquecer a obra como um todo e o trabalho de cada um.

O cinema como ferramenta de transformação social, portanto, pode ser expresso através de uma linguagem simples documental ou algo mais complexo em narrativa ficcional. Há todo um processo de produção material e conceitual que determina o que é cinema, porem, o cinema é uma arte coletiva e com diversos campos de atuação, mas que não necessariamente precisa funcionar a partir da lógica da divisão social do trabalho capitalista. Há formas colaborativas e horizontais possíveis e que não perde em seu potencial, pelo contrário, agrega ainda mais possibilidade de desenvolvimento dos seus campos.

O que é um filme? Um filme é uma estrutura narrativa composta por linguagens sonoras ou silêncios, texturas e estética visual e sonora. Por mais que o cinema tenha nascido sem som é impensável hoje produzir algo sem este necessário elemento. O filme pode ter uma determinada narrativa que para uns soa familiar enquanto outros podem achar absolutamente estranho e incômodo. A narrativa e o argumento compõem um filme. Há o elemento da montagem que organiza um determinado conjunto de informações visual e sonora o que torna cada filme algo singular. Um filme não é, obviamente, somente aquilo que nos agrada. Ele pode ser ficcional ou documental. Para ser um filme também é necessário haver algum tipo de tratamento particular. Os filmes geralmente são produzidos pensados previamente amparados por pesquisa prévia. Há os momentos políticos que geram materiais fílmicos no calor do momento também. Para fazer um filme é preciso aprender diversos campos da produção cinematográfica. Operar câmeras, luz, som, montagem, coloração, pesquisa, mixagem, masterização isso sem contar com a etapa da distribuição tão importante quanto todo o resto. Não se produz um filme somente com conhecimento teórico ou filosófico. Por isso, os produtores precisam compartilhar suas experiências como forma de estimular e desfazer certas normatividades e até impossibilidades notórias para os mais precarizados que quase sempre são aqueles que mais desejam e precisam produzir, mas que menos têm, pois quase sempre estão vendendo sua mão de obra para outros fins. A poesia do cinema, no entanto, não é algo que se aprende, mas se faz e de acordo com esse fazer se chega a alguns resultados importantes para a arte e para a comunicação. Fazer um filme sem um propósito inicial aparente também é possível e geralmente daí nascem filmes experimentais. Mas a produção aliada a objetivos principalmente sociais é necessária para ampliar o acesso e popularizar esse magnífico campo artístico que engloba muitas outras artes. A experiência torna-se mais rica com a socialização desse complexo fazer entre os sujeitos sociais possibilitando a eles maior compreensão e contribuição a uma determinada causa a partir de trocas emancipatórias. O título de um filme pode parecer atraente, mas também enganador. Não há formula para se produzir qualquer coisa a não ser as matematicamente enquadradas num determinado procedimento, como construir prédios ou coisas do tipo. Nem mesmo a ciência possui uma fórmula. Não é essa a proposta do debate, pois o fazer não implica necessariamente uma determinada normatividade. As formas de fazer nunca estão alheias às possibilidades materiais e concretas que podem de fato tornar possível a produção, por mais limitadas que sejam. Isso quer dizer que o fazer deve ser necessariamente experimental e socialmente comprometido abrindo caminhos ainda desconhecidos, acertando ou não em sua proposta.

Esboço para uma teoria crítica do cinema de guerrilha (3)

Há várias formas de se produzir um filme, mas poucas com parcos recursos e pessoal envolvido. É dentro dessas condições que o cinema independente se desenvolve. Por isso a experiência deve ajudar na formação do livre-produtor. Mas vejam que ela só não é o suficiente. É preciso investigar e para isso precisamos de um método. Uma questão principal é: que filme se quer fazer? Um doc-drama? Ou simplesmente um documentário? Uma ficção? Curta ou longa? São várias possibilidades. Onde se vai veicular? Nas redes virtuais ou TV´s, cinemas ou cineclubes? Nas praças e ocupações? Isso implica pensar que filme se pode fazer e como realizar essa produção. O cinema é campo vasto e historicamente rico. Hoje, até mesmo alguns vídeo-clipes se intitulam filmes. Um certo exagero, pois um filme requer um determinado tratamento e estrutura de linguagem e narrativa. O cinema como se percebe é necessário, sobretudo nas formas de dominação do capital, mas também nas disputas que se travam em narrativas antagônicas ao modelo espetaculoso das grandes corporações. Um fator deve ser determinante: produzir até que não se possa mais. Não de maneira análoga às alienadas formas de produção em série dos artistas que desejam “views” alucinadamente e que constroem seus filmes a partir dessa demanda. Um cinema de esquerda dificilmente se enquadrará nos procedimentos da propaganda industrial. Aliás, não é esse o seu objetivo e nem deve ser. Ainda assim, este cinema não pode estar alheio aos meios existentes de divulgação ainda que quase completamente capturadas pelo capital. É uma contradição que deve ser superada na formação de redes de apoio mútuo para assim superar a forma-mercado. A dificuldade é que os livres-produtores começam suas trajetórias de forma muitas vezes solitária, o que dificulta obviamente o seu estímulo e vontade. As atividades coletivas e o cinema é a expressão da coletividade nesse sentido, são muito engrandecedoras, por isso a necessidade das parcerias.

O cinema crítico contemporâneo está em impasses determinantes para sua sobrevivência e manutenção. Este cinema está em permanente crise e modifica-se rapidamente por conta da própria dinâmica a que estão submetidos seus produtores que carecem de apoio e alternativas de distribuição. Muitas vezes o produtor viabiliza a produção de seus projetos com recursos próprios. Mas essa dinâmica tem uma validade muito curta, pois o produtor também precisa viver como qualquer ser humano e possui necessidades materiais básicas, como uma moradia, alimentação digna, transporte, etc. Geralmente isso acaba levando-o ou a uma completa adequação às normas de mercado que passa a negociar e influenciar nas produções ou este artista simplesmente desaparece caindo facilmente no esquecimento. Como não há uma organização da arte independente muitos produtores acabam não tendo o privilégio de resguardar aquelas produções para gerações futuras, o que acaba por ser uma perda enorme para toda a sociedade que deixa de conhecer obras reveladoras de determinados aspectos da realidade. A questão financeira, portanto, acaba sendo determinante para que este cineasta ou qualquer produtor independente possa produzir e distribuir sua produção. A dinâmica política e econômica local e global é determinante para este cinema. Para comunicadores independentes de uma forma geral as coisas também caminham por aí. O que se conclui quase que automaticamente é que os diversos campos da comunicação devem interagir como forma de desbravar caminhos difíceis, cifrados. O cinema convencional de cunho comercial depende das TV´s, rádios e jornais corporativos já historicamente comprometidos com a indústria cultural. O cinema alheio ao mercado depende das rádios comunitárias, sites, blogs e portais de esquerda ou independentes, canais de TV online, jornais, revistas e demais canais. Uma das primeiras tarefas para a integração dessas mídias é a produção de um mapeamento de estruturas comunicacionais dispostas (a partir do seu caráter político principalmente) a se integrar numa relação de ganhos compartilhados distanciando-se de qualquer unilateralidade ou instrumentalização das relações. Produzir uma teoria para o desenvolvimento do cinema independente é tarefa árdua, muitíssimo necessário. E o que é este cinema que chamamos independente?

O cinema de uma forma geral depende (para sua existência) de todo um aparato técnico, de pessoal e distribuição capaz de dar cabo de seus objetivos que é comunicar, tocar, sensibilizar o público que passa a interagir com a sétima arte criando íntima relação entre aquilo que é visto na tela e a própria realidade concreta material. O cinema subdivide-se em diversas categorias não tendo uma universalidade nem mesmo em suas formas de fazer, da produção, dos temas e formas de se abordar determinado tema, da estética, dos valores ou sonoridades, das formas de se montar ou distribuir. O cinema é estratificado sendo uma das principais barreiras para o cinema independente justamente a indústria cultural ou as formas de mercado em organizar as produções, o que acaba por determinar aquilo que deve ou não ser visto, quando e como. O cinema independente não necessariamente responde a anseios revolucionários. Ele, num primeiro momento, quer apenas existir e expor ao outro suas expressões sinceras. É no processo de afirmação que ele se depara com as contradições do campo social o que faz com que busque por respostas aos atravancos que se percebe submetido. Se este cinema despertar algum interesse utilitário do mercado a conciliação com tais interesses passa a reverberar em suas expressões e posturas o que acaba por dispensar que se desperte em si a singularidade de um pensamento ruptivo devido ao seu novo lugar que muitas vezes pode ser ilusório, pois o mercado é uma instância contrarrevolucionária. Nessas condições a gênese, portanto, do cinema independente acaba por agregar um valor de mercado ao invés de ressaltar suas qualidades antagônicas a este meio cifrado. Este nem por isso é parte de qualquer movimento automático, mas de intensas negociações e crises entre as partes, mas principalmente para o artista produtor, pois inexoravelmente leva-o a aderir a todo um conjunto de relações antes inexistente ou que simplesmente negava em sua prática existencial. São notórios os ganhos para a arte quando o sujeito histórico produtor está munindo-se de antemão dos descaminhos das vias de mercado. É óbvio que essas dificuldades não são novas, exclusivas do nosso tempo. O cinema do passado experimentou isso antes. Mas muito antes de almejar inserção nas redes de mercado, o cinema independente deve resolver os problemas inerentes à sua condição.

Na década de 60 a questão para a militância de esquerda, segundo Reinaldo Cardenuto, era:

“Como circular a arte de engajamento nacional popular para um público amplo se o mercado existente estava estruturado para contemplar o produto comercial e estrangeiro?” (A economia do cinema nacional popular – comentários em torno dos anos 1960, Cardenuto, Reinaldo)

A produção de Cinco Vezes Favela foi bem sucedida, apesar dos poucos recursos advindos da União Nacional dos Estudantes (UNE) e Centro Popular de Cultura (CPC), mas fracassado na distribuição, ficando em cartaz somente uma semana. Com relação a outros campos da arte de esquerda o dramaturgo Vianna Filho, segundo Cardenuto, questionou a capacidade do Teatro de Arena contribuir para a conscientização das massas pelo fato de estar restrito a um público reduzido de pagantes.

“Um movimento de massas só pode ser feito com eficácia se tem como perspectiva inicial a sua massificação, sua industrialização. É preciso produzir conscientização em massa, em escala industrial.” (Vianna Filho, 1983, p.93)

O CPC pensava que para resolver esta equação era preciso levar a arte crítica às pessoas que precisavam ter contato com essas expressões. Segundo Cardenuto,

“Na tentativa de concretizar esse processo, o CPC foi às ruas cariocas encenar peças-pílula (textos de mobilização política com curta duração) e chegou a realizar diversas intervenções em espaços comunitários até seu encerramento compulsório com o golpe militar de 1964.”

Por outro lado, era preciso não dificultar este contato com o típico experimentalismo do Cinema Novo.

“Na opinião de Carlos Estevam Martins, primeiro presidente do CPC, o artista de esquerda, para estabelecer uma comunicação efetiva com o povo, deveria se apropriar das experiências estéticas convencionais, já testadas pelo mercado cultural e, portanto, bem recebidas por um amplo público.”

Em contraposição, coloca Cardenuto:

“Considerando ingênua a premissa de Carlos Estevam, de acreditar na linguagem comercial como forma de conscientização política, Glauber defendeu o choque de olhar, a adesão a uma nova visualidade que proporcionasse ao espectador um distanciamento crítico: não reconhecendo a estética convencional, sem identificar-se com o filme na chave da experiência clássica, o público participaria de uma reflexão autêntica sobre o país, de incorporação ideológica da miséria e do popular, que operasse o rompimento com o cinema estrangeiro de reafirmação do colonialismo, além da negação de uma filmografia nacional modelada pelos valores do ocupante (as chanchadas em especial).”

Esboço para uma teoria crítica do cinema de guerrilha (3)

A polêmica sobre distribuição foi levada a cabo pelo Cinema Novo colocando como necessidade a industrialização do cinema nacional fundamentalmente creditando no Estado a intermediar este processo também por vezes participando a burguesia nacional. Estes naturalmente passaram a ficar de fora com o golpe de 1964. O imperialismo e sua indústria “hollywoodiana” foram vistos como o principal empecilho. O cinema nacional de uma forma geral superou o problema central de distribuição da produção nacional existindo hoje uma indústria notável que movimenta largos recursos. Não só a produção nacional foi incorporada como também a diversidade desse produto nacional. No entanto, assegura a poucos as condições materiais e distribuição das várias estratificações desse cinema nacional. O contexto político atual, todavia, passa a desassistir este produtores taxando-os de esquerdistas passando a contemplar um cinema conservador revisionista que emerge das sombras como propaganda da política ultra-liberal. A crítica de Cardenuto à crença do Cinema Novo no Estado e na burguesia nacional como força indispensável neste amplo processo de produção e distribuição é válida pois estas estruturas são muito pouco confiáveis pela instabilidade dos regimes e interesse geral da burguesia como classe dominante. O cinema crítico não pode ser refém dessa dinâmica. Obviamente que o cinema independente não criará uma bolha em torno de si capaz de blindar forças estranhas. Este cinema está completamente imerso nas contradições sociais e mesmo que atravessada por essas forças (e muitas vezes ter de se curvar perante elas), mantém como determinação alguns elementos fundamentais:

. A conscientização dos trabalhadores e oprimidos
. Avanço e transformação da arte
. A denúncia contra todo um conjunto de opressões
. A sobrevivência e emancipação dos produtores, artistas e trabalhadores da arte Para garantir estes objetivos com firmeza é preciso a associação dos produtores numa articulação capaz de assegurar o sucesso das determinações. Este processo envolve:
. Recursos e condições materiais
. Conhecimento teórico revolucionário
. Organização

 

As imagens que ilustram este artigo são do cineasta argentino Raymundo Gleyzer (1941 – 1976), desaparecido pela última ditadura militar de seu país, e do comitê organizado para sua libertação.

Leia a parte seguinte da série aqui.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here