Por Felipe Catalani

 

Sobre o filme “A máquina infernal” (2021, dir: Francis Vogner dos Reis)

Há quem afirme que o cerne da estrutura de uma fábula é a inversão: Esopo e Lafontaine, quando queriam dizer que as pessoas são como animais, apresentavam animais como pessoas. Também Brecht, quando quis dizer que burgueses são ladrões, inverteu sujeito e predicado e, em sua Ópera dos três vinténs, apresentou ladrões como burgueses [1]. Algo de semelhante ocorre no curta-metragem dirigido por Francis Vogner dos Reis: para representar a estrutura maquínica do inferno, nos é apresentada uma “máquina infernal”. Mas o que é a tal “máquina infernal”? Aqui, particularmente, ela é uma não muito grande fábrica de metalurgia (supomos, embora não seja claro o que ela produz), localizada na região do ABC paulista: “a máquina” é constituída por um conjunto de máquinas, que formam um todo, composto também por apêndices vivos: os seres humanos. O cenário possui algo de conhecido: como nos Tempos Modernos de Chaplin, vemos trabalhadores tendo sua vida motora subsumida aos motores da produção. Tal como o próprio Chaplin, que é deglutido pela máquina na qual trabalha, homens e mulheres são devorados (embora não literalmente, como Carlitos) pela fábrica — entre os sons sinistros e quase sobrenaturais que ela emite, assombrando os trabalhadores (a acústica é protagonista do filme), ouvimos também barulhos de um sistema digestivo, de modo que o sistema automático parece ter algo como uma vida orgânica. Mas apesar do “sujeito automático” em operação e da redução objetiva dos indivíduos a apêndices da maquinaria, os personagens não são meros autômatos: são homens e mulheres interessantes, com anseios, desejos e conflitos.

Se em Tempos Modernos tal processo era apresentado de forma cômica (sem que se perdesse a acidez da crítica), aqui o filme, a partir de certo momento, se torna suspense e terror. Morte, sangue e tensa espera (esta última marcada por momentos alucinatórios que parecem antecipar a ruína da máquina, vivida ora como a catástrofe do acidente, ora como a utopia desejada) perpassam o filme todo. Para que o horror social possa efetivamente “horrorizar”, a ficção precisa exagerar para poder constatar: nesse caso, o gênero “filme de terror” ganha seu aspecto, por assim dizer, realista. Mas o terror do filme não deixa de ter seu aspecto escrachado, como se o horror na periferia do capitalismo fosse inseparável da comicidade do trash (algo captado pelo cinema marginal dos anos 1970, e de forma bem enfática por Zé do Caixão). A prótese improvisada de um dos operários que perdeu a mão lembra as bugigangas do mundo pós-apocalíptico de Adirley Queirós, e essa tosca prótese, como se ainda possuísse sensação de tato, acaricia as costas e a bunda da amante (colega de fábrica) em uma cena de sexo dentro de um Ford Fiesta dos anos 1990 — assim como nos filmes de Adirley, não há em A máquina infernal um objeto técnico sequer que não emane um ar de obsolescência, visto que praticamente tudo ali pertence à revolução industrial anterior (não é o caso de retomar aqui pela enésima vez a Crítica da razão dualista de Chico de Oliveira, embora nunca seja demais enfatizar que esse cenário não tem a ver com “atraso” ou outras ilusões desenvolvimentistas). Em meio a esse clima de velharia, são justamente os sons da caducidade generalizada que geram a espera de uma ruína em processo. Um pouco como em O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, o colapso é acusticamente anunciado (no filme de Kleber, o colapso é a explosão da guerra social). Se a visão é, tradicionalmente, o sentido racional por excelência, já a apreensão sonora parece atingir os recônditos profundos da alma: não por acaso, tanto em um filme como no outro, os sons ganham uma vida no inconsciente das personagens, que passam então a ter uma relação alucinatória com a própria realidade, onde aquilo que existe se imiscui naquilo que está por acontecer.

A reaparição do demônio na fábrica

Essa “alucinação objetiva”, em que a irrupção demoníaca de uma dimensão irracional revela uma verdade do mundo, é algo não só do mundo da ficção, mas fora também empiricamente documentado. Entre nós, não há como não lembrar d’A aparição do demônio na fábrica, do sociólogo José de Souza Martins, que buscou investigar “as origens sociais do Eu dividido no subúrbio operário”. Aliás, não é improvável que esse estudo tenha servido de inspiração para o filme. Martins parte de uma experiência que ele mesmo viveu, enquanto jovem operário em uma fábrica de ladrilhos em São Caetano do Sul, na década de 1950. Conta ele que, no ano de 1956, ao longo de vários e sucessivos dias, diversas operárias desmaiaram no local de trabalho. Depois de voltarem a si, elas “alegavam ter visto o demônio a espreitá-las de um canto do imenso salão em que trabalhavam” [2]. O caso se resolveu somente depois que a direção chamou um padre para celebrar uma missa e benzer as novas instalações da fábrica.

No filme de Francis, não há propriamente o demônio, que “invade” a fábrica, que por sua vez poderia ser expurgada. O demoníaco não está “na” fábrica, ele é a fábrica, as máquinas, os fios, a tubulação, os corredores, a corrente elétrica. Curiosamente, tanto naquele ano de 1956, em São Caetano, quanto no filme, quem tem “as visões” são as mulheres. Em A máquina infernal, há uma personagem que parece ter saído direto d’O exorcista ou algum filme clássico de terror: ela usa um crucifixo, possui um olhar fixo e sinistro, sofre um ataque epiléptico, parece “possuída”. Mas ela só parece “possuída” porque ela tem uma relação simbiótica com as máquinas: seus movimentos reproduzem o ritmo da produção, sua hiper-concentração no trabalho bloqueia sua sociabilidade e capacidade de fala, e suas colegas, enquanto conversam descontraidamente no vestiário, a olham como a “esquisitona”. Mas o espectador não tem acesso ao que se passa “dentro” dela. O foco narrativo do filme acompanha outra operária: Sarah, que assumiu uma vaga temporária “até o carnaval” (lembranças da Toritama de Marcelo Gomes?) — depois do carnaval, “só Deus sabe”, como diz a funcionária de RH, que fala também sobre o fraco desempenho econômico da fábrica. A partir de Sarah, uma pessoa bastante simpática e querida pelos outros colegas, temos acesso às “visões” infernais. Mas tais visões não são propriamente óticas — elas são sintetizadas na imaginação, como fruto de sua percepção acústica e de sua sensibilidade para com o contexto geral da situação. De modo que, a partir de certo momento, não é mais claro o que (do ponto de vista de Sarah, que é o nosso) é alucinação e o que é o real. Suas alucinações possuem, por um lado, uma relação com o desejo (em dado momento, os mortos ressuscitam e os feridos aparecem em sua integridade física); por outro, elas têm uma dimensão objetiva, por assim dizer antecipadora: o que está em latência aparece como atual e se confunde com ele.

Portanto, tanto aqui como lá na fábrica de ladrilhos em São Caetano, a aparição do demônio é a aparição da verdade. Martins retoma uma frase de Henri Lefevbre (que, por sua vez, se referia ao Fausto de Goethe), segundo a qual “o diabo cumpre as promessas do conhecimento”. Mas a “causa” da aparição do demônio em 1956 era outra. Em seu estudo, Martins demonstra que o diabo aparece no momento em que ocorre uma inovação tecnolólogica na fábrica, que havia produzido uma discrepância entre um novo ritmo de produção e o próprio trabalho das operárias, causando não só um estranhamento em termos subjetivos, mas também uma série de ladrilhos quebrados. Curiosamente, o demônio “era visto meio sorridente, bem vestido, como os engenheiros, num canto da seção” [3]. Conclui então ele: “Sociologicamente, o demônio deu visibilidade ao invisível das inovações tecnológicas que alteraram o ritmo de trabalho e por esse meio oculto se apossaram do corpo das operárias” [4]. Ou seja, na medida em que o invisível se tornava visível, o demônio era ao mesmo tempo sintoma e crítica a uma certa configuração social: “o invisível, que é a força impessoal do processo de trabalho capitalista, se torna visível. É por meio da figuração do poder do mal que essa força se permite ver e conhecer” [5]. Tudo isso permanece válido em A máquina infernal, mas a diferença decisiva é que, no filme, a verdade demoníaca que se revela não é somente a alienação na “reestruturação produtiva”, mas um ocaso generalizado.

A reaparição do demônio na fábrica

Como há de se perceber, a máquina infernal a ruir é tanto a fabriqueta do ABC quanto a própria máquina do mundo, sendo um a continuidade do outro. Pois a máquina do mundo possui algo de literal: em um mundo feito de máquinas, a máquina constitui mundo, isto é, ela é mundo. E no que concerne à relação entre técnica e trabalho, que atravessa todo o filme, é importante ressaltar a diferença entre “ferramenta” e “máquina”. Já nos Grundrisse dizia Marx que “em nenhum sentido a máquina aparece como meio de trabalho do trabalhador individual […].” Isto é, a máquina não é “manejada” pelo trabalhador, tal como o instrumento. O que o ocorre é antes o contrário: a “máquina, que para o trabalhador possui destreza e força, é o virtuose que possui sua própria alma”. O desenvolvimento técnico, propulsionado pelo próprio capital, leva a um nível superior o fetichismo que inverte a relação entre homens e coisas e, no filme de Francis, é exatamente esse feitiço do capital que dá a vitalidade fantasmagórica ao autômato “infernal”. Uma vitalidade que, como se torna explícito no momento do colapso, revela sua face mórbida.

O sentido da máquina aqui é, no entanto, algo bastante diverso da maior parte das distopias tecnológicas que conhecemos a partir tanto da literatura quanto do cinema feitos ao longo do século passado — distopias que se baseiam, ao mesmo tempo, nas utopias tecnológicas que acompanharam a modernidade industrial desde seu primórdio. No que consistiam essas utopias? Elas eram fundamentadas, para lembrar o título de um livro de 1944 de Friedrich Jünger, na “perfeição da técnica”. E essa perfeição seria, para o bem e para o mal, uma ordem inabalável, na qual desapareceriam tanto qualquer espontaneidade (aquilo que caracteriza a vida humana por excelência), como qualquer tipo de acidente. O horror da contingência estaria diluído em uma hiper-funcionalização, onde toda falibilidade é neutralizada por normas fortes o suficiente para evitar qualquer desastre. Nesse sentido, há uma continuidade entre as utopias estatais e as utopias técnicas: em ambas, o “mal” do acaso é vencido pela racionalização e pelo planejamento. A versão distópica dessa situação operava nos mesmos termos, mas com o sinal invertido: o mal era a própria perfeição, que garantia uma harmonia demoníaca da qual não se poderia escapar.

O que ocorre em A máquina infernal é algo diverso, pois a máquina é tudo, menos perfeita. O filme gira em torno de seus defeitos e da necessidade de manutenção, que entretanto nunca é suficiente. As máquinas param, quebram, ocorrem acidentes, pessoas se machucam constantemente. Sobretudo, as máquinas fazem barulhos os mais estranhos possíveis, gerando suspeita e desconfiança. A falha técnica é o cotidiano, e ao mesmo tempo paira no horizonte “a grande falha”, em que tudo vem abaixo. A latência desse enorme acidente é a latência de uma catástrofe fatal, e no entanto ela também possui algo de utópico. O que nos faz lembrar de uma das cenas mais impressionantes de Arábia, de Affonso Uchôa e João Dumans: o protagonista, em dado momento ao longo de sua caminhada da viração do trabalho e depois de ter passado por empregos (sic) os mais diversos, se encontra agora no meio de uma fábrica siderúrgica em Minas Gerais. Ele faz então todos os sons silenciarem, e imagina: as caldeiras entornando, todo mundo indo embora para casa, a fábrica se auto-destruindo. Em A máquina infernal, as imagens de demolição que, vez por outra, irrompem ao longo do filme, evocam também algo dessa natureza. Tal como a contingência em Espinosa, a possibilidade da falha na máquina alimenta tanto o medo como a esperança.

A reaparição do demônio na fábrica

Notas

[1] Günther Anders, “Sein ohne Zeit: Zu Becketts Stück “En attendant Godot”. In Die Antiquiertheit des Menschen I. Munique: Beck.
[2] José de Souza Martins, A aparição do demônio na fábrica. São Paulo: Ed. 34, 2008, p. 141.
[3] Idem, p. 173.
[4] Idem, p. 174.
[5] Idem, p. 180.

 

As imagens que ilustram o texto são fragmentos do filme A máquina infernal.

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