Por Arthur Moura

Em todos os momentos estava hasteada ali uma bandeira de guerra.
Claudionor Magalhães — Hiato

Rolê: histórias dos rolezinhos é o novo filme de Vladimir Seixas. Gostaria de tecer alguns breves comentários sobre a obra e o seu contexto geral. Vladimir [1] é um cineasta que venho acompanhando desde 2010, ano em que tive contato com o documentário Atrás da Porta [2], que me impressionou bastante pela forma crua e direta com que foi produzido e também pela abordagem crítica e contundente sobre o problema das ocupações, da miséria e do papel do Estado burguês diante de um problema social tão grave como a moradia. É o tipo de filme que embrulha o estômago ao mesmo tempo em que estimula em nós a vontade de revolução, distinguindo bem quem são nossos aliados e inimigos, ou seja, aborda como questão central as lutas de classes com seus avanços e recuos. Nesse sentido, Atrás da Porta é um documentário que trata da própria dialética das lutas sociais. A partir daí pesquisei sua obra e tive a oportunidade de conhecê-lo e tecer trocas importantes, pois sem dúvida o cinema de Vladimir, principalmente os seus primeiros filmes, influenciaram a minha forma de pensar o cinema político e até mesmo de produzir este cinema. Rolê, portanto, vem de um longo acúmulo de produções cinematográficas [3] onde o oprimido é o protagonista e se coloca, ainda que sob evidentes limites, no front contra a opressão racial e de classe. O filme é produzido pela produtora Couro de Rato, composta por Vladimir Seixas e Luís Carlos de Alencar.

Como aponta a sinopse, Rolê: histórias dos rolezinhos é um documentário que discute o racismo no Brasil, e o racismo sem sombra de dúvidas é um dos problemas centrais da realidade sócio-histórica brasileira. O filme, que já ganhou diversos festivais como 25º RIIFF 2021 — Rhode Island International Film Festival, 10º Olhar de Cinema — Curitiba International Film Festival, 23º Festival do Rio, 54º Festival de Brasília, 25º Festival do Filme Documentário e Etnográfico e 15º Atlantidoc, retrata a violência policial que acaba sendo uma tônica que atravessa boa parte da narrativa, seja com imagens da repressão ou em relatos, como os de Jefferson Luis, que conta para o amigo suas experiências com a repressão.

“Estou subindo a rua, aí eles (policiais) estavam na calçada com a viatura e o carro parado e eles na calçada. Quando estava lá na frente, assim, uns dez metros, ele “ôôôô, você é louco? Pode voltar aqui! Você não viu que a gente está abordando aqui não? Por que você passou por trás?” Eu falei, “não, seu policial, já to indo já”. Aí ele falou: “pode voltar aqui!” e eu falei: “mas por quê?”. Aí eu fiquei com a mão para trás. Aí ele foi e liberou o casal. Aí ficou só eu sozinho na rua. Aí ele falou: “você está se fazendo de louco? Você não viu o nosso procedimento?” Eu falei, “não, eu ia atravessar a rua, mas aí vocês iam achar que eu estava correndo, por isso que eu fiquei desse lado. Eu vou ficar correndo de vocês?” Aí ele: “vocês é o caralho!”. E pum! Deu um tapão na minha cara. Na verdade foi um soco no meu olho. Ele falou: “vocês só funcionam na base da porrada!”.

Boa parte da obra de Vladimir Seixas presta bastante atenção nas práticas históricas e cotidianas da repressão contra trabalhadores pobres, sobretudo entre jovens negros favelados, público alvo da cirúrgica ação do Estado. Como diz Andrelino Campos, “sem dúvida, o estigma, apesar de ser generalizado, atinge, sobremaneira, o negro e, de modo mais virulento, o negro favelado”. Este estigma constrói a ideia de “classes perigosas” que, segundo Guimarães (2001, p.80),

“(…) num sentido de um conjunto social formado à margem da sociedade civil, surgiu na primeira metade do século XIX, num período em que a superpopulação relativa ou o exército industrial de reserva, segundo a acepção de Marx, atingia proporções extremas na Inglaterra, quando esse país vivia a fase ‘juvenil da Revolução Industrial’” (Cecília Coimbra, Operação Rio: o mito das classes perigosas).

É claro que toda essa repressão não é gratuita. Ela está ligada diretamente às movimentações populares na luta, muitas vezes por direitos básicos como a moradia ou simplesmente a diversão e inclusão, o que acaba sempre por despertar a ira do Estado com sua Justiça e Forças Armadas, impiedosa e categórica. E o que vemos são assassinatos como o de Pedro Gonzaga no supermercado Extra e torturas, sendo que levantar-se contra esse desequilíbrio de forças é altamente repudiado pelo Estado. A não aceitação de tais ações triplica a intensidade repressiva, o que acaba por estabelecer uma espécie de descontrole da justiça e das forças repressivas, impondo o medo e a barbárie generalizada. O caso mais recente contra um homem negro com questões psiquiátricas, torturado com gás de pimenta dentro de uma viatura da Polícia Federal, ou os oitenta tiros contra a família em um carro no Rio de Janeiro, são demonstrações dessa besta-fera chamada Estado burguês. Nesse sentido, de uma forma ou de outra, a repressão é resultado das lutas por uma busca histórica pela emancipação humana.

O documentário faz este recorte a partir das expressões da juventude pauperizada, dos subalternos, daqueles que usualmente não têm direito à voz ou a qualquer protagonismo, e que neste caso respondem a uma exclusão social histórica e também à exclusão ao consumo, aspecto este que também guarda suas contradições. O filme acompanha as movimentações de alguns personagens. A performance contra o racismo de Priscila Rezende, que em determinado momento diz que:

“Fazer a performance é uma forma de extravasar, de colocar para fora e dar um recado para as pessoas, sobre como esse racismo, ele atua para manter pessoas negras, principalmente mulheres negras, em determinados lugares e em posição de subalternidade na nossa sociedade.”

O empreendimento de Thayná Trindade e a vida e experiências de Jefferson Luís, numa montagem (ponto forte) dinâmica com boas transições, planos e trilhas sonoras, que formam uma estética própria. A sonorização intensifica o contexto sombrio e que se agrava. O interessante é que Rolê resgata o documentário Hiato, de 2008, onde ressurgem personagens como Naira Lúcia e Claudionor Magalhães, que naquela ocasião falam da experiência do ato no shopping Rio Sul:

“Ah, eu me senti excluída da sociedade, porque quando eu entrava, assim, tinha uma mulher que ficou apavorada! Eu me lembro que eu olhei para a cara dela assim e ela se encolheu toda no canto, ficou com medo e começou a ligar provavelmente para os seguranças. Eu ainda cheguei perto dela e falei assim ‘calma, minha senhora, a gente não vai fazer nada não. Só viemos olhar o shopping, olhar as coisas, ver os preços. Não pode não? E ela não conseguia falar. Ela só ficava olhando com os olhos arreganhados’”.

“Era isso que estava acontecendo com a gente. A gente sendo [sic] discriminados não só pelos ricos, mas pelos próprios pobres que trabalham no shopping. Eu fui para mostrar ao mundo que existe barreira, existe fronteira e que a gente não pode passar até certo lugar”.

“A manifestação no shopping Rio Sul em 2000, diz Thayná, abriu os caminhos para várias outras”. Os rolezinhos, que nada mais são que passeios realizados por jovens em shoppings centers, acabam por gerar o medo (medo este geralmente compartilhado entre os subalternizados) nas classes dominantes, já que se ocupa um espaço que não é seu. São movimentos coletivos que utilizam a internet como meio privilegiado de comunicação e que denunciam o evidente desnível social existente na sociedade. Como aponta Nildo Viana, em seu texto O significado dos rolezinhos:

“Quando é o indivíduo isolado dos estratos mais baixos das classes desprivilegiadas que vai ao shopping, ele sente uma dose de medo, misturado com vergonha e outros sentimentos e representações. Agora, quando são muitos, o medo passa para o outro lugar”.

A reação violenta contra os jovens neste caso nasce do preconceito de classe e racial, da ignorância e não necessariamente de qualquer ofensiva subversiva por parte desses movimentos espontâneos, até porque os rolezinhos não são movimentações violentas. Por isso a questão racial é valorizada e discutida no filme. Nesse desenrolar, Rolê aborda a eleição fraudulenta de Jair Bolsonaro e a consequente revolta que começa a surgir. De fato, o que vemos com a manutenção do atual governo é o agravamento das tensões de classe, o que sem dúvida complexifica as lutas, já que a repressão e o racismo estão cada vez mais ferozes. Uma das personagens assiste ao noticiário com ar de preocupação:

“O que me preocupa é a galera que está na mira aí. Preto, favelado, as travestis, homossexuais, que é quem, na real, vai se ferrar mais. Porque, se não fosse por isso, eu falava que eu queria ver é o circo pegar fogo”.

Os rolezinhos refletem as expressões das lutas de classes. Mas, por outro lado, também expressam valores da cultura dominante. “A escolha dos shopping centers para a realização do rolezinho, e não qualquer outro lugar, não é gratuita, ressalta Nildo Viana, pois lá é um lugar privilegiado para o consumo, bem como do consumo privilegiado”. E conclui: “Os rolezinhos realizam uma síntese de elementos das manifestações de junho e dos valores dominantes da sociedade capitalista contemporânea, o que faz nascer novas contradições sociais”. Talvez seja esse um ponto importante do filme: expressar a dialética dessas lutas contemporâneas junto com seus limites. De toda forma, este documentário faz parte de uma constelação de outras produções, como as citadas na nota de rodapé, que vale a pena ser conhecido para que compreendamos melhor o contexto social da realidade brasileira, pois o que se vê daqui para frente são lutas cada vez mais intensas.

Arthur Moura é cineasta, doutorando em História Social pela FFP-UERJ.

Notas

[1] Vladimir Seixas é carioca, nasceu em 1981; formado em Filosofia, com mestrado em Estética pela UERJ e em Direção Cinematográfica pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro.
[2] Na região portuária muitas ocupações de moradores sem-teto foram brutalmente expulsas por policiais militares, oficiais, bombeiros e a guarda municipal. Em alguns casos, como é possível constatar no documentário de Vladimir Seixas, Atrás da Porta, a prefeitura destinou caminhões de lixo para transportar os poucos pertences dos moradores que foram despejados de forma brutal. Neste filme é possível ver claramente a articulação do Estado na retirada de centenas de famílias e a consequente criminalização dos militantes. Em Vozerio, Vladimir mostra, entre outras coisas, a ação do Estado contra a Aldeia Maracanã, que na disputa por uma cidade a favor do capital tornou-se alvo da especulação, tema também tratado por Carlos Vainer em diversos textos como Pátria, Empresa e Mercadoria.
[3] Vladimir dirigiu Hiato (2008), Choque (2009), Ruído Negro (2009), Atrás da Porta (2010), Vozerio (2015), A Primeira Pedra (2019), Rolê: histórias dos rolezinhos (2021), entre outros.

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