Por Marcella Araújo

Dando continuidade aos debates da Coluna Cidades, transcrevi e adaptei (sob supervisão e autorização da autora) a fala da Profa. Marcella Araújo, do Departamento de Sociologia da UFRJ e coordenadora do Urbano – Laboratório de Estudos da Cidade (IFCS/UFRJ), realizada na Mesa “Despossessões e resistências territoriais na América Latina: desafios contemporâneos”, que abriu o Encontro Internacional “Cartografias, Ativismos e Remoções: Experiências pelo mundo”, realizado em comemoração aos 10 anos do Observatório de Remoções. Isadora Guerreiro

Eu fui solicitada a discutir um tema quente, difícil, da ordem do dia. Eu gostaria de começar propondo que a gente pense e discuta as milícias no plural. Isso porque vários pesquisadores vêm se dedicando a estudar o tema e têm contado múltiplas histórias de formação das milícias aqui na cidade do Rio de Janeiro e também na Baixada Fluminense. Em alguns lugares que eu conheço melhor, na Zona Oeste, a milícia nasceu da própria organização de moradores. E aqui eu estou falando de muitos policiais moradores, que organizam a provisão de segurança para si mesmos e seus vizinhos. Em outros lugares as milícias invadem áreas controladas anteriormente pelo tráfico de drogas, com mediações ou não da polícia militar. Em alguns casos, as milícias contam com a atuação de batalhões em operações de “limpeza” de certas regiões, em troca do pagamento de “arregos” por parte dos grupos milicianos, assim como também cobram para fazer vista grossa à venda de drogas em tantas bocas de fumo.

O termo milícia ganhou força, vale lembrar, após a CPI das Milícias em 2008, instaurada pelo então Deputado Estadual Marcelo Freixo, que naquela época ainda era filiado ao PSOL. Desde então essa categoria da “milícia” se tornou uma categoria de acusação em vários territórios do Rio de Janeiro. Em campo, eu já ouvi um presidente de associação de moradores dizendo que “aqui nesse território não tem milícia, milícia é lá em Campo Grande” – fazendo referência a outro bairro da Zona Oeste de onde saiu a Liga da Justiça, a organização miliciana que foi muito visada pela CPI. O território ao qual ele se referia era, nas suas palavras, uma “área de polícia”. E eu acho que a gente tem que prestar atenção a essa autoidentificação. Estamos falando de policiais como moradores da cidade, produtores de cidade, gestores de cidade.

Falar de milícias no plural não quer dizer jogar fora, de maneira nenhuma, essa categoria. As minhas pesquisas em três localidades – um conjunto habitacional em Duque de Caxias na Baixada Fluminense, um conjunto habitacional na Zona Oeste e um conjunto de favelas também na Zona Oeste, mas em outro bairro –, me levam a ressaltar dois pontos principais: um modo de controle de territórios da pobreza em que há monopólio de certos mercados – de vans, internet, TV a cabo, gás, mercados de segurança com a cobrança de taxas de comerciantes e/ou de moradores – e controle do mercado imobiliário. Esse controle se dá de várias formas: em alguns lugares estamos falando de cobrança de taxas de segurança de moradores, em outros lugares são taxas sobre transações imobiliárias – taxas sobre contratos (mesmo que não registrados) de aluguel, transações de compra e venda – e, em alguns outros lugares da cidade, há também grupos milicianos que têm suas próprias construtoras, imobiliárias e lojas de construção. Então são múltiplos mercados dominados e monopolizados pelas milícias, que criam uma nova ordem na cidade, uma nova maneira de produzi-la e geri-la.

Mas além de falar das milícias no plural, acho que temos também que discutir remoções no plural. Falar de remoções no Rio de Janeiro ativa muitas memórias de políticas habitacionais que remontam ao início do século XX – não vou rememorar todas elas, basta dizer que estou falando a partir de uma cidade que passou pelas reformas de Pereira Passos no início do século XX; por tantas remoções do governo Carlos Lacerda ainda no Estado da Guanabara, que removeu famílias no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul, para a Zona Oeste; e por remoções olímpicas para produzir esta versão da cidade empresariada na preparação para os megaeventos, principalmente a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, nas duas primeiras gestões do prefeito Eduardo Paes. Vamos chamar estas remoções de “remoções públicas”, capitaneadas por programas governamentais.

Vamos fazer uma pequena recapitulação, que vai soar muito conhecida para aqueles que estudam questões urbanas, mas que acho importante para encontrarmos certos pontos de convergência entre esses programas governamentais e a atuação dos grupos milicianos que eu descrevi anteriormente. Remoções públicas começam com um anúncio da remoção de certas áreas e a apresentação das justificativas – mais ou menos relevantes, mais ou menos legítimas. Em seguida ao anúncio, chegam os técnicos e engenheiros, topógrafos, agentes comunitários que marcam as casas para a remoção e começam o cadastro das famílias. O Estado oferece três modalidades de compensação para as famílias que serão removidas: a indenização (pagamento em dinheiro pela casa que vai ser perdida), uma compra assistida (intermediação para a compra de uma nova casa em troca desta que será perdida) e a troca – e o termo é esse mesmo – da casa removida por uma unidade (casa ou apartamento) em conjunto habitacional.

Como tantas pesquisas vêm descrevendo, essas remoções animam mercados imobiliários locais de múltiplas formas. As pessoas se engajam, se antecipam muitas vezes, com temor da remoção e da perda do valor das casas e vão para outros lugares. Outras famílias se endividam, compram casas para negociar em melhor situação com os agentes comunitários. Outras tantas famílias são expulsas das suas casas para que pessoas com ligação com as milícias ou com o tráfico de drogas as ocupem e possam “ganhar” outras em conjuntos habitacionais. São múltiplas possibilidades e as pessoas, de uma maneira ou de outra, acabam participando, ou sendo instadas a participar dessas transações imobiliárias.

Aqui temos um ponto de convergência entre as remoções e tantas das práticas de expulsão que grupos milicianos praticam como uma forma de gerir o mercado imobiliário não formalizado. Frente às remoções públicas, lideranças ligadas às associações de moradores e milicianos se engajam desde o momento dos anúncios das remoções e os cadastros das famílias, impondo uma série de transações aos moradores. Nas minhas pesquisas, eu tenho visto que vários grupos milicianos se valem destas remoções públicas e destas três modalidades de compensação que os programas governamentais oferecem para as famílias, para agir sobre o mercado imobiliário e expandir suas áreas de controle. Nos momentos dos cadastros eles conseguem criar as portas e as pontes para acessar conjuntos habitacionais: com transferência de famílias e de pessoas ligadas a eles para estes novos apartamentos ou casas; com a nomeação de síndicos nos novos conjuntos; ou com controle da gestão condominial. E a partir deste controle do síndico e da gestão condominial, a milícia amplia a cobrança das taxas anteriormente mencionadas, cria redes de transporte de vans, cria novas frentes para a venda de serviços urbanos como internet, TV a cabo e gás. Os milicianos não chegam – tenho conseguido acompanhar isso nos últimos anos – depois da remoção, para ocupar espaços deixados em aberto, na “ausência do Estado”. Eles participam das negociações durante as remoções públicas, se engajam nesses cadastros, se valem destas modalidades de compensação a que eu me referi anteriormente, para aumentar as áreas sob seu controle e os seus tentáculos de poder.

Gostaria de levantar três pontos para o nosso debate: o primeiro é pensar que as milícias são agentes dos mercados imobiliários não formalizados. Elas organizam ocupações de terra, mutirões e obras; produzem prédios de apartamentos – como vimos nos casos da Muzema, que desabaram em duas ocasiões recentemente; alugam e vendem casas; cobram taxas de aluguel e taxas sobre transações de compra e venda. Temos que olhar com cautela para estes mercados imobiliários não formalizados, para não criminalizar a moradia popular. Afinal, as cidades brasileiras foram autoconstruídas e os puxadinhos para acomodar a família são parte da vida das classes populares, de como elas têm acesso à cidade. Mas as milícias se apropriam, taxam esta autoconstrução e monopolizam uma série de mercados criando novas formas de gestão dos tantos territórios da pobreza.

O segundo ponto que eu gostaria de levantar é que as expulsões fazem parte de um modo de gestão das milícias sobre esses mercados imobiliários não formalizados. Essas expulsões agravam nosso já dramático problema da moradia, pois deslocam famílias para mais longe, para áreas mais periféricas, mais precárias, quando não, áreas de risco. Alimentam, neste sentido, os próprios mercados imobiliários não formalizados.

E, por fim – isso vai soar como uma platitude, mas é importante falar –, as remoções públicas não servem de maneira alguma ao combate de grupos criminosos. Aqui no Rio os governantes ainda falam muito em fazer políticas de urbanização como forma de combater a criminalidade. Mas, como eu tentei trazer na discussão, os momentos do cadastro nas políticas habitacionais são momentos de negociação, de inscrição das políticas habitacionais sobre os territórios da pobreza, desde os anos 1980 controlados por grupos criminosos – milicianos ou traficantes de drogas. Isso quer dizer que as políticas habitacionais afetam mercados de segurança, mercados imobiliários e mercados de drogas. E uma série de negociações não previstas são desdobradas para gerir e acomodar esta inscrição das políticas habitacionais sobre estes territórios. Das fricções, conflitos e negociações, a contragosto, a política habitacional, infelizmente, tem servido como uma frente de expansão urbana para grupos milicianos e traficantes de drogas. Os conjuntos habitacionais já nascem dominados por estes grupos. Nesse sentido, estamos falando de políticas habitacionais que têm uma série de questões que alimentam o próprio problema que elas querem combater: com estas negociações nos momentos dos cadastros, elas alimentam mercados imobiliários não formalizados controlados por grupos criminosos, garantindo a expansão desses grupos e deixando tantas famílias em condições vulneráveis.

 

Trabalho social e fragmentação do Estado

Minhas pesquisas sobre políticas habitacionais são feitas com as agentes comunitárias. E essa figura é bastante interessante e particular porque são, em muitíssimos casos, moradoras – o gênero é bastante marcado – de favelas, loteamentos, periferias, contratadas para atuar como agentes do Estado. Minhas entradas em campo, há 15 anos, são feitas com estas mulheres. São complexas as situações que elas enfrentam nas horas de negociar com tantos poderes locais. Uma fala muito recorrente entre as agentes comunitárias sobre o que é fazer o trabalho social das políticas urbanas, ou seja, seu próprio trabalho: “enquanto Estado, elas mentem para os moradores; mas, enquanto moradoras, elas sofrem com as mentiras que elas mesmas contaram”. Elas vivem dilemas morais e políticos dramáticos. Deixo esse ponto claro para entendermos que são estas mulheres – em posições bastante vulneráveis, que encontram na atuação em políticas públicas o seu trabalho – que negociam na hora dos cadastros. Essa é a configuração de poder em que o Estado se apresenta mais fragilizado, fraco, porque mobiliza agentes comunitárias que vivem o dilema de ser Estado e moradoras. E a elas é delegada esta responsabilidade imensa de negociar as inscrições da política urbana ou habitacional sobre os mercados controlados por traficantes de drogas e milicianos. Minhas pesquisas analisam a produção da cidade a partir dessa microatuação do Estado através do trabalho social.

São múltiplas modalidades de presença do Estado em territórios populares, ora pelos braços armados das polícias e forças armadas, ora se apresentando em arranjos com tantas empresas e bancos, ora se apresentando pelo trabalho social – ora forte ora fraco. O dilema que eu coloquei das agentes comunitárias chama atenção para um processo que tem me mobilizado muito a pensar: a própria mercantilização do trabalho comunitário.

As agentes comunitárias têm as relações de trabalho as mais diversas com o Estado: têm as estatutárias, as funcionárias públicas, aquelas que vieram dos movimentos sociais dos anos 1970; mas temos também as agentes comunitárias que se cooperativaram nos anos 1990, as assalariadas pelas ONGs, as assalariadas não formalizadas de tantas empresas sociais que foram surgindo para prestar o trabalho social para políticas urbanas. São dessas situações de trabalho que surge o dilema moral e político de ser moradora e Estado e que colocam estas mulheres com grandes responsabilidades políticas e sociais. Elas estão em relações frágeis, tendo que manter os seus trabalhos como agentes comunitárias, seus vínculos com o Estado e negociar com os moradores, traficantes e grupos milicianos.

É importantíssimo frisar que essas negociações acontecem com arma na mesa. A violência, o uso da força, está sempre no horizonte de possibilidades. Para contornar que se deflagrem conflitos violentos, elas negociam, com traficantes e milicianos, os cadastros de pessoas ligadas a eles. Após a remoção, nos encontros de educação sanitária e patrimonial que antecedem a mudança das famílias, os milicianos nomeiam os síndicos. Esses encontros são interessantes, pois são momentos nos quais o Estado assume cara e corpo, e o faz através da contratação de moradoras de favela, loteamentos e periferias como agentes comunitárias. São elas que garantem entrada, circulação e capilaridade do Estado nos territórios e são estas pessoas que negociam com traficantes, donos de morro, milicianos. É o momento da interação face a face entre o Estado e esses grupos criminais. Uma interação que é assimétrica, sempre assombrada pela possibilidade do uso da força.

Mas o que se faz nestas negociações? Uma possibilidade é, como já mencionei, negociar o cadastro de pessoas ligadas à milícia ou ao tráfico de drogas para que ganhem os apartamentos e casas e, desse modo, esses grupos obtêm certo lucro no momento da remoção. Outra possibilidade é negociar desenhos de obras. Milicianos e traficantes não sentam para desenhar a política urbana, mas conseguem nessas reuniões com agentes comunitárias pressionar por um redesenho de obras: mudança no seu traçado, construção de áreas de comércio nos conjuntos habitacionais, mudança do local de instalação de postes de luz – para que não iluminem atividades de endolação e da boca de fumo. Então essas negociações na obra – que envolvem as agentes comunitárias, os próprios trabalhadores da construção civil, engenheiros e técnicos dos governos e as figuras mais fortes do tráfico e da milícia – acontecem enquanto as obras vão sendo realizadas e, nesse sentido, produzem um resultado diferente do planejado pela política urbana.

Além disso – e isso é um ponto importante – vários desses milicianos e presidentes de associações de moradores ligados à milícia também organizam espaços de discussão com parlamentares, subprefeitos e funcionários da burocracia estatal para realizar tantas destas negociações dos impactos das obras sobre os seus territórios. Há as audiências públicas, mas há também essas arenas políticas particularizadas em que uma série de outras negociações são feitas e que vão se desdobrar sobre a vida de toda a comunidade, loteamento ou favela.

 

Recosturar redes supralocais

É importante destacar as tantas arenas políticas que são criadas pelos moradores que têm resistido às remoções dentro dos territórios controlados. São experiências incríveis de arenas que se criam dentro das favelas em processo de remoção que fazem frente, criam espaços de discussão sobre o direito à cidade em paralelo a estas arenas criadas pelos milicianos e seus presidentes de associações de moradores. Arenas que mobilizam redes políticas supralocais: alianças com universidades, com outros movimentos de favelas, com movimentos sociais urbanos mais amplos, para trocar estratégias de organização, mobilização, comunicação. Há um esforço de, apesar do controle, encontrar frestas nesta dominação local e promover debates em defesa do direito à moradia e à cidade e criar essas pontes para fora dos territórios.

Estamos diante um cenário de uma forte fragmentação, em que temos múltiplas arenas para a discussão das políticas urbanas. O cenário é desafiador, política e intelectualmente, mas concluo minha fala destacando o esforço de costura por parte dos moradores e movimentos de favelas. Temos que recosturar redes, teias e movimentos maiores para além do território, desterritorializar as questões nesse trato fragmentado promovido pelo Estado.

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