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Por Primo Jonas

Um estudo publicado em novembro de 2021 aponta o declínio consistente da atividade sexual nos EUA na última década (ou mais exatamente entre 2009 e 2018). Outros estudos recentes já haviam identificado a mesma tendência, mas este incluiu algumas variáveis metodológicas, decompondo a atividade sexual em categorias como “sexo peniano vaginal”, “masturbação (individual ou mútua)”, “sexo oral”, e todas apontaram um declínio. Todas as franjas etárias estão afetadas, e a novidade particular que este estudo captou foi a diminuição, inclusive, da masturbação entre adolescentes.

A relação com os computadores pessoais, a crise econômica de 2008, o avanço do conservadorismo, são algumas das diversas hipóteses que podem ser elaboradas para entender esta tendência dos EUA, que certamente se reproduz na população dos demais países e capitais com economias desenvolvidas. Quero desenvolver neste breve artigo apenas um aspecto que integraria o retrato geral do esmorecimento sexual atual.

Sexualidade e Identitarismo

Os gregos retratados por Platão e outros autores de sua época tinham duas palavras para designar os homens que se amavam: o amante (erastes) e o amado (eromenos). Essa dualidade desigual era necessária para a dialética amorosa, pois o prazer arrancado do outro era apenas a base material e fisiológica de um amor pelo saber, um desejo de superação transcendental. Não lhes faltava tempo para justificar com filosofia sua hipnótica atração por jovens imberbes que corriam nus e besuntados pelos ginásios de Atenas. Diferentes épocas integram de diferentes formas os homens que amam homens e as mulheres que amam mulheres. Podemos dizer que são as variadas condições de exploração que estas sociedades oferecem a esta porção da classe trabalhadora, e também a porções das classes dominantes (neste caso, as condições nas quais se explora outrem). Nas sociedades modernas mais conservadoras são mais comuns os assassinatos motivados pelos objetos sexuais da vítima, os postos de trabalho qualificados lhes são negados, e nos ambientes de estudos são humilhadas e formal ou informalmente expulsas.

Historicamente, o reconhecimento social de um objeto sexual e amoroso é indissociável das práticas libertinas que festejam de maneira vigorosa a versatilidade humana, irrefreável como o amor que destrói as leis ou como o desejo que se impregna pelo corpo. Neste mesmo ambiente de subversão é onde outras figuras transviadas podiam fazer aparições e gozar de uma festa, celebrando as muitas sensualidades humanas.

O amor gay, assim como a sensualidade travesti, expande o universo humano do desejo para além do par reprodutivo macho-fêmea, nas múltiplas combinações de erastes e eromenos que o ser humano inventa.

No entanto, a ênfase na identidade, traço comum das economias desenvolvidas em nossa época, transfere de sobremaneira toda a atenção que antes era posta em um objeto sexual e amoroso, deslocando-a para o próprio indivíduo. A escolha pessoal de um ou mais pronomes e a não-binariedade são dois bons exemplos de uma dissociação completa das identidades de gênero com a questão do objeto amado.

Mas será que o desinvestimento do objeto sexual e amoroso não seria uma característica mais ampla da sociedade atual? A instituição social do casamento está em pleno declínio para os casais heterossexuais, se o contrastamos seu prestígio de 50 anos atrás, pois, se bem que ainda se casem, o divórcio é hoje um simples trâmite e o sexo extraconjugal é cada vez menos escandaloso. A instabilidade econômica ecoa nos vínculos sexuais e afetivos, e os planejamentos a longo prazo são menos interessantes devido às muitas incertezas sobre o amanhã.

Sexualidade e Identitarismo

Diante deste cenário pouco animador, nos restariam as alegrias muitas que guardamos em nossos corpos e que deliciamos em explorar, não fossem as sempre renovadas regras que o homem insiste em impor ao homem (e a mulher à mulher, etc.), tal como o renovado interesse em casar-se virgem, ou a repulsa ao sexo “interracial”. Este último caso é um exemplo também importante de dissociação entre identidade de gênero e objeto sexual e amoroso, pois assim como a heteronorma recorta, limita e dita as formas socialmente aceitas de objetos amados, a barreira sexual entre as ditas raças apenas reforça o aspecto idêntico entre amante e amado.

Cada vez mais vemos o interesse em se pensar a si e gastar-se delimitando e moldando a própria imagem, em lugar de observar um outro ser e se entregar a ele com a voracidade física ou mental própria de um erastes, de alguém que encontra no mundo um algo que lhe intranquiliza o corpo e a alma. Fenômeno correlato é o desinteresse pelo mundo, a dificuldade em assumir responsabilidades para além do próprio prazer ou da própria ansiedade, a futilidade generalizada, onanista (ou nem isso…) e vitimista.

As identidades são importantes para estruturar-nos em um nível básico, como quando aprendemos as letras do alfabeto começando com nosso próprio nome, mas mais importantes são os objetos que permitem que essas identidades sejam obliteradas e nos lancem uma vez mais na angustiante e potente existência enquanto sujeitos em luta com nossas determinações.

As imagens que ilustram este artigo são esculturas de Lygia Clark (1920 – 1988), série entitulada Bichos.

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