Por Anônimo

Agosto/2022

… o neoliberalismo é um modo de intervenção social profunda nas dimensões produtoras de conflito. Pois, para que a liberdade como empreendedorismo e livre iniciativa pudesse reinar, o Estado deveria intervir para despolitizar a sociedade, única maneira de impedir que a política interviesse na autonomia necessária de ação da economia.
Vladimir Safatle (2021)

É muito comum escutar que as lutas políticas são tretas pessoais. Desvalorizando e deslegitimado a luta dos trabalhadores com um discurso que desloca a crítica política para um problema “pessoal”.

Vamos analisar mais de perto um caso em particular: nosso cenário é uma escola estadual paulista, localizada na periferia de Campinas. Os personagens do enredo são: os professores (que o Estado a cada Decreto divide mais em novas e velhas categorias, em um aparente movimento de “dividir para governar”[1]), a gestão escolar e a Diretoria de Ensino (DE). Por enquanto os estudantes não entram como “protagonistas”, são expectadores desse enredo, aprendendo desde cedo como “serem trabalhadores”.

Existem outros personagens que não aparecem no cotidiano: a economia política atrelada às políticas públicas e as classes sociais[2]. As políticas públicas e as dinâmicas de classes são conceitos abstratos. Você não cruza com elas no corredor e diz, “Bom dia, política pública que está sendo implementada na escola!” e ao mesmo tempo ela está lá, atuando de forma onipresente, reinando sobre gestores, professores, funcionários e estudantes.

A relação entre o cotidiano do trabalho e as imbricações econômicas e políticas se entrelaçam de tal forma que não é possível fazer uma separação. Aqui é política, agora é economia. Pera aí, na hora do café é pessoal! Não é assim que o mundo funciona.

Quando alguém está na figura de um gestor, o que isso significa? Significa, caro leitor, que o papel desempenhado por esse sujeito (em particular) é invariavelmente o de gerir politicamente algo. Estar em direções, vice direções, coordenações implica que, em diferentes níveis de ações, você estará implementando uma política no setor público, que são, como o próprio nome diz, POLÍTICAS. As gestões não são neutras, são “…definitivamente, um sistema de organização do poder” [3].

O problema é pessoal somente na medida em que é na figura desta pessoa em particular (não outra) que está sendo implementada determinada políticas (seja por interesses pessoais – financeiros ou egoicos – seja por adesão ao projeto), utilizando-se de seu “pequeno poder” para assediar e dificultar a vida dos professores. O caráter pessoal existe na medida em que são os sujeitos que personificam determinadas ações políticas. A treta é fundamentalmente política, é um conflito de posições antagônicas: de um lado a pressão para intensificação do trabalho (carregada de assédios e abusos de poder) e do outro os trabalhadores tentando se defender com as armas que dispõem.

Dessa forma, são os sujeitos (conscientes ou não) em suas ações de assédios e perseguições que demostram uma posição política e, sobretudo, uma posição de classe. Mesmo que sejam trabalhadores, atuam como se fossem “patrões”. Sobem em uma folha de sulfite e acham que estão em um pedestal.

Toda a política estadual corrobora para que isso ocorra, apesar dos diversos mecanismos discursivos da gestão democrática para construção de consensos[4], as escolas estão mesmo é permeadas por gestões autoritárias[5].

A implementação do Programa de Ensino Integral (PEI) em uma escola não é um programa pessoal, elaborado a partir do desejos pessoais de um determinado gestor em particular (ainda que sua implementação possa coincidir com ganhos pessoais para os gestores). O PEI é um programa político para a educação, parte de pressupostos formulados em diferentes instâncias das políticas públicas tanto em escala nacional como internacional.

Durante três anos consecutivos os professores, em conjunto com a comunidade, se colocaram contra o PEI. Por três anos seguidos se organizaram, principalmente através do Conselho Escolar, lutando contra a adesão a esse projeto que além da exclusão de estudantes[6], modifica as relações de trabalho docente, intensificando a exploração do trabalho e submetendo o trabalho docente à lógica gerencial empresarial[7].

Categorizar os conflitos que ocorrem entre uma gestão assediadora e um grupo de professores como “problemas pessoais” é despolitizar o confronto de interesses antagônicos. Além disso, sendo a esfera pessoal uma questão “não discutível” (as pessoas são o que são), não há o que se resolver na esfera política. E segue o barco.

Parece evidente uma tentativa da Diretoria de Ensino em deslegitimar as constantes denúncias dos professores sobre a atuação autoritária, persecutória e assediadora da gestão deslocando os conflitos para uma “questão pessoal”, ao mesmo tempo que corrobora com esse tipo de ação. Gestão e DE se sujeitam a todos os tipos de “pequenas corrupções”[8] para se manterem em seus cargos conquistados graças as “pequenas” bajulações. O artifício utilizado pela DE não é novo e apenas demostra as suas intenções políticas e o grau de entrelaçamento com a atual gestão da escola em questão.

E que lições ficam dessa treta? Primeira lição é que a treta não acaba nunca, pois é estrutural, parte de um conflito de interesses de classe. Segunda lição é que os professores devem continuar se organizando, em conjunto com a comunidade, de forma autônoma, e intensificar o confronto, sem se deixar ludibriar com falsas esperanças dialógicas no marco da gestão democrática.

As imagens que ilustram esse artigo são de obras de Nuno Ramos.

Notas

[1] Fica a dúvida se é realmente necessário, o grau de consenso é tanto que duvidamos ser uma “necessidade” no sentido político. Parece mais uma estratégia de redução de gastos e intensificação do trabalho mesmo.
[2] Com certeza tem mais personagens abstratos nessa trama
[3] GAULEJAC, Vicent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Tradução Ivo Storniolo. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2007.
[4] Nesse ponto a política é de produção de consensos para integração ao projeto. Mas quando a gestão democrática não condiz com a adesão ao projeto educacional proposto por governos e empresários (que estão elaborando e aplicando as políticas públicas) ela é sumariamente descartada ou perseguida.
[5] Atuando no marco da coerção e do consentimento a Secretaria de Educação SP em conjunto com a Secretaria de Segurança Pública estão implementando da rede estadual o CONVIVA – SP, que entre outras atribuições tem um mecanismo de vigília permanente das escolas públicas estaduais com câmeras instaladas em toda escola (inclusive em sala de aula) ligadas diretamente na Polícia, além do PLACON, um sistema informatizado e unificado de registro de ocorrência. Disponível em: <https://efape.educacao.sp.gov.br/convivasp/wp-content/uploads/2020/06/Manual_PLACON.pdf>
[6] Girotto, E. D., & Cássio, F. L. (2018). A desigualdade é a meta: Implicações socioespaciais do Programa Ensino Integral na cidade de São Paulo. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 26(109). Disponível em: <http://dx.doi.org/10.14507/epaa.26.3499>; GIROTTO, E.D.; JACOMINI, M.A. Entre o discurso da excelência e a lógica do controle: os riscos do Programa Ensino Integral na rede. Rev. Cienc. Educ., Americana, ano XXI, n. 45, p. 87- 113, jul./dez. 2019
[7] Esse processo está sendo implementando há anos na rede pública, e agora mais intensamente a partir da nova carreira docente.
[8] Aqui falamos de favoritismos e de toda a rede de cargos indicados, esses sim, regido por questões pessoais e por necessária adesão ao projeto

2 COMENTÁRIOS

  1. comentário de um colega que trabalha em uma PEI: ” Tá feia a coisa. Cada falta de mais de um professor apesar de possuir atestados, a gestora já vem e dá a deixe que defere se quiser e que estamos faltando demais e isso terá impacto na avaliação. Tô com virose, outros foram com suspeita de Covid-19. Também, além de ter o salário descontado e ter de repor aulas, ainda por cima, é avaliado pelas faltas no final do ano”

  2. A questão que o artigo aborda é uma questão sempre posta quando se trata e estuda assédio moral. A vertente que tende a colocar as causas na personalidade da chefia hoje em dia é bastante ultrapassada. A questão tem base organizacional, nos objetivos e modelo de gestão.

    Na mediação humana desses objetivos eles são camuflados como conflitos interpessoais.

    Melhor artigo sobre assédio moral (que também é opinião da Lis Soboll, especialista na área), que mostra a origem do assédio na organização do trabalho e modelo de gestão (e não nas personalidades individuais): “E se o assédio não fosse moral?: perspectivas de análise de conflitos interpessoais em situações de trabalho” https://www.scielo.br/j/rbso/a/7rtmSxNMdnBfWzWzGfH6tsy/abstract/?lang=pt

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