Por Marina Sanders Paolinelli

 

Este mês convidei a colega Marina Sanders Paolinelli, arquiteta e urbanista de Belo Horizonte, para escrever na Coluna Cidades. Suas reflexões trazem, de maneira original, uma virada de perspectiva em relação ao significado social e político das ocupações de moradia no Brasil. Agradeço desde já sua contribuição, que entendo ser de grande valia para a compreensão da atual conjuntura urbana do país. Isadora Guerreiro.

 

A reflexão que venho trazer parte de algumas inquietações sobre o problema da moradia no Brasil, em diálogo com pontuações que a Isadora Guerreiro tem feito por aqui, e que tem ecoado na forma como enxergo alguns fenômenos atuais – desde o déficit habitacional até como as organizações políticas e movimentos sociais têm interpretado e mobilizado estratégias (às vezes nem tão) alternativas de superá-lo.

A primeira coisa que tenho pensado é na ideia de “sem-casa” da maneira em que foi construída historicamente no Brasil enquanto uma categoria política. Padre Piggi, uma liderança católica muito atuante em Belo Horizonte nos anos 1980, conta em entrevista a Frei Gilvander [1] que, desde a repressão à Pastoral de Favelas pela Ditadura Militar [2], ele se viu inclinado a trabalhar junto aos “sem-casa”, que se organizavam naquele momento:

 

“Então eu me dirigi mais ao problema do “sem-casa”. Vivendo numa paróquia de periferia, Todos os Santos, lá no bairro Primeiro de Maio, eu era tempestado constantemente pela pressão dessas famílias que ficavam na rua, despejadas, que não aguentavam pagar aluguel. Até hoje é uma tragédia, é uma tragédia subliminar, porque totalmente desconhecida ali, ninguém sabe que existem, porque eles estão nos fundos das casas alheias, estão morando de favor nas casas dos pais. Então a gente montou o primeiro movimento sem casa de Belo Horizonte que se chamava AMABEL – Associação dos Moradores de Aluguel da Grande Belo Horizonte, que foi nos anos 1982.”

 

Evidentemente, hoje a tragédia do “sem-casa” – o inquilino despejado ou prestes a ser, que temos chamado de “déficit habitacional” [3] – não é mais tão subliminar quanto Padre Piggi menciona. Vimos desde os anos 1990 o surgimento e um fortalecimento considerável dos movimentos de luta pela moradia – inicialmente em torno da luta por investimentos públicos na produção de moradias populares e melhorias legislativas pró direito à moradia [4], e mais atualmente, principalmente após a promulgação do Estatuto da Cidade em 2001, em torno da organização de ocupações de terrenos e edificações vazias ou abandonadas [5].

Esses movimentos, com destaque para a vertente que utiliza a ocupação como forma central de mobilização, têm inclusive ganhado bastante expressividade na cena político-partidária recente. Não é irrelevante o fato de Guilherme Boulos, liderança do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), ter ficado em segundo lugar na última disputa pela prefeitura de São Paulo. Em Belo Horizonte, ainda que em menor escala, vemos algo similar: Áurea Carolina candidatou-se à prefeitura tendo como vice Leonardo Péricles, liderança do MLB e morador da ocupação Eliana Silva, presidente da recém criada Unidade Popular pelo Socialismo (UP). Apesar de ter alcançado apenas 8,3% dos votos, foi o melhor desempenho da esquerda nas eleições municipais [6]. Isabella Gonçalves, liderança das Brigadas Populares importante na luta das ocupações, foi a única entre os vereadores de esquerda a se reeleger em 2020, para contrapor um quadro legislativo tomado pelo conservadorismo e bolsonarismo.

Por mais que a pauta dos “sem-casa” tenha ganhado força na cena pública, de alguma maneira, acredito que algo do problema da moradia brasileiro ainda permaneça subliminar. A questão da precariedade da vida no aluguel, que estampa o nome desse importante movimento mencionado por Padre Piggi (a AMABEL), hoje continua aparecendo de maneira escancarada, enquanto, ao mesmo tempo, parece permanecer nas entrelinhas. Para mim, isso reside na forma como interpretamos e temos construído a ideia do “sem-casa” enquanto categoria política, o que acontece de uma forma muito particular no Brasil.

Primeiramente, o “sem-casa” aparece enquanto uma categoria negativa. Diferente do favelado, que é aquele que mora na favela, ou do inquilino, que é aquele que mora de aluguel, o “sem-casa” é determinado por aquilo que o falta: a casa. No entanto, não falamos de qualquer casa, mas de um tipo específico, que é a casa própria. A ideia de déficit habitacional reforça essa concepção, e ofusca as condições materiais que determinam a realidade desses sujeitos no que tange à moradia.

Se em 2019 (dado disponível mais recente) o déficit habitacional no Brasil chegou na casa dos 5,8 milhões de domicílios, o ônus excessivo com aluguel foi a causa em mais de 3 milhões desses lares (51,7% do total). Ou seja, a maior parte do déficit consiste, principalmente se considerarmos as regiões metropolitanas (onde chega a 61,2%), de domicílios que existem, mas que para serem habitados exigem um investimento financeiro incompatível com a renda das famílias, que se viram para pagar e, nesse momento de crise do trabalho, ficam ainda mais suscetíveis ao despejo, ou seja, a parar nas ruas.

As ocupações organizadas com o apoio de movimentos como o MTST, o MLB, as Brigadas Populares, entre outros, se colocam como uma das poucas alternativas viáveis nesse contexto. Ao acolher os “sem-casa” (inquilinos, moradores “de favor” ou de habitações precárias), e viabilizar politicamente a autoconstrução de moradias em terrenos urbanos antes inacessíveis, tornam a expectativa da conquista da casa própria (e com ela de uma maior segurança habitacional) mais próxima da concretização. Em um dos cartazes das marchas contra o despejo das ocupações da Izidora [7], que eu acho particularmente emblemático, diz-se: “Preferimos morrer na luta que sobreviver na cruz do aluguel”.

Mas por que, então, os potenciais ocupantes, os “sem-casa”, não são compreendidos, antes de tudo, como inquilinos, moradores de aluguel? E por que não mais se mobilizam como tal? Por que nos países do “capitalismo central” as lutas por moradia se mobilizam contra o aumento crescente dos aluguéis, por melhores condições para os inquilinos [8], e no Brasil, a despeito dos números, damos voltas em torno dessa questão sem explicitá-la? Como e por que se consolida o discurso (dentro e fora dos movimentos sociais) de que a única forma digna de morar é a casa própria? Qual padrão de produção do espaço esse discurso reitera? Para alimentar essa reflexão, trago aqui alguns elementos constituintes da realidade brasileira que podem nos ajudar a traçar respostas para essas perguntas.

O primeiro ponto importante é lembrar o peso da ideologia da casa própria no Brasil. Morar em uma casa própria não é um desejo “natural” do brasileiro, mas uma construção social pautada em ações do Estado, refletida em políticas públicas com desdobramentos profundos na forma com que as cidades e suas periferias se desenvolveram. Da Lei do Inquilinato de Getúlio Vargas, passando pelo Banco Nacional da Habitação (BNH) implementado pela Ditadura Militar para criar o acesso ao financiamento habitacional, até o Minha Casa, Minha Vida petista cujo nome fala por si só, nossa trajetória de políticas públicas consolidou esse tipo de acesso à moradia de todas formas possíveis e durante governos de todos espectros políticos. Nunca se ouviu falar de aluguel regulado, subsidiado ou de propriedade estatal (o modelo do welfare state central), até porque isso nunca aconteceu aqui.

Vale lembrar também que na ausência de um acesso universal à produção estatal e/ou subsidiada de mercado, o tipo de casa própria apresentada como possibilidade real para a grande maioria da classe trabalhadora no Brasil sempre foi o combo lote periférico e a casa autoconstruída. E a informalidade nos arranjos de acesso à terra sobre a qual se assenta essa casa é uma característica determinante da urbanização no Brasil enquanto país de capitalismo periférico. Estamos falando de um país que se industrializou produzindo favelas e periferias, espaços de precariedade funcionais à atividade capitalista, por possibilitarem a reprodução da classe trabalhadora a baixos custos.

Acontece que, o desenvolvimento urbano brasileiro, em todas as suas contradições, ao alavancar a dispersão da malha urbana a partir das periferias autoconstruídas trouxe a própria classe trabalhadora para fazer parte da produção e do circuito de distribuição das moradias. Ou seja, houve a possibilidade concreta das classes populares assumirem um papel ativo na resolução da sua própria demanda interna. A autoconstrução, tratada por Chico de Oliveira como uma forma de rebaixamento dos salários, é, ao mesmo tempo, a expressão da flexibilidade arquitetônica que materializa a possibilidade da compensação desses baixos salários a partir do mercado informal, para venda e para aluguel.

Desse misto de autoempreendimento habitacional, superexploração e rentismo latente decorre o processo de divisão interna de classes baseada no acesso à propriedade e inquilinização dos territórios populares. No caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte, ele já ocorre pelo menos desde os anos 1990 [9] , e tende a ser agravado com a crise atual. Pesquisa realizada na Escola de Arquitetura da UFMG [10] que georreferencia o déficit habitacional com base em dados do CADÚnico revela que muitas famílias que enfrentam hoje situação de ônus excessivo com aluguel estão morando em territórios populares, como o Aglomerado da Serra, que já mostrava aumento significativo nos valores de aluguel uma década atrás.

Do ponto de vista do inquilino, o aluguel é execrado porque se consolidou como uma moradia mercantilizada das mais precárias em termos de direitos, principalmente no universo dos territórios populares onde não há formalidade nos contratos. É por isso que o aluguel não pode estar no vocabulário dos movimentos sociais como reivindicação. Pelo contrário, o que mobiliza é justamente a possibilidade da fuga definitiva desse aluguel. Mesmo a AMABEL mencionada por Padre Piggi nunca lutou por direitos para inquilinos: organizou ocupações, criou loteamentos populares, lutou pela ampliação do acesso à casa própria no Conselho Municipal de Habitação. São moradores de aluguel que sempre desejaram deixar de ser.

Do ponto de vista do proprietário, o aluguel parece ter se constituído como estratégia de sobrevivência nos territórios populares. Quem ocupa um terreno para fugir da condição de inquilino não necessariamente condena essa relação rentista/mercantil e não necessariamente quer bloquear sua possibilidade de realizá-la do lado de lá (alugando barraco de fundos, segundo andar, puxadinhos). Na ocupação Dandara, iniciada em 2009 na região da Pampulha em Belo Horizonte, já podemos observar o aluguel de moradias por meio de anúncios em plataformas como a OLX. Pesquisa amostral recente indica 9,58% de moradias alugadas na ocupação [11].

São por essas questões que a categoria política do “sem-casa” veste tão melhor do que a de inquilino, é por isso que essa face explícita do problema habitacional brasileiro (o aluguel) precisa permanecer oculta. A ideia da habitação “como direito, e não como mercadoria” presente no discurso acadêmico e nas narrativas dos movimentos populares, apesar de convocar a responsabilidade do Estado e questionar os padrões rentistas da produção da cidade, não tem nos ajudado tanto a lidar com esses dilemas.

Precisamos pensar estratégias políticas que reconheçam a moradia como parte da economia popular, para não acabarmos negligenciando o papel histórico dos próprios trabalhadores na produção habitacional ou camuflando em nossos discursos uma certa moralização dessas economias periféricas. Alugar e vender moradia em ocupações, por exemplo, não são ações bem vistas porque minam essa narrativa vigente, ainda que sejam estratégias utilizadas pelos ocupantes para garantir a permanência no território quando o conflito fundiário se soluciona e chegam serviços públicos e melhorias infraestruturais, valorizando a terra e encarecendo os custos de vida [12].

O proprietário que aluga nas periferias pode sim ser um pequeno especulador ou um agente do poder paralelo, mas pode também ser um trabalhador cujo salário é insuficiente para criar os filhos, uma mãe que ficou doente e não consegue trabalhar, que acessou seu fundo de garantia ou alguma herança e decidiu investir na ampliação do seu patrimônio edilício – e por que não, para alugar para outra família. Separar o joio do trigo e confrontar o padrão excludente de produção e acesso à moradia pelas classes populares não é possível, no entanto, sem dar o nome aos bois e reconhecer essas contradições.

 

Notas:

[1] Frei Gilvander é membro da Comissão Pastoral da Terra (CPT), muito conhecido por apoiar a luta das ocupações por moradia em Minas Gerais, tanto no campo quanto na cidade. Ele tem um acervo de mais de 5 mil vídeos, incluindo entrevistas e filmagens em comunidades (muitas denunciando casos de despejos) em seu canal no youtube. A entrevista mencionada com Padre Pier Luigi Bernareggi (Padre Piggi) está em outro canal, de seu antigo programa de televisão, o Palavra Ética.

[2] Desde os anos 1950, o movimento dos favelados era o movimento com mais expressividade que tinha uma pauta mais diretamente ligada à moradia (ainda que não estritamente) em Belo Horizonte. As Uniões de Defesa Coletiva (UDCs), organizadas na Federação dos Trabalhadores Favelados de Belo Horizonte (FTFBH), tinham um papel decisivo na negociação com o poder público contra despejos. A FTFBH foi alvo de inquérito policial durante a ditadura e as UDCs dissolvidas até a década de 1970, quando foi criada a União dos Trabalhadores da Periferia (UTP) e a Pastoral de Favelas. Foi nos anos 1980, já após a redemocratização que a criada Federação das Associações de Bairros, Vilas/Favelas de Belo Horizonte (FAMOBH) ganhou força, chegando a compor parte do quadro do executivo nos anos 1990 com a eleição de Patrus Ananias (PT) a prefeito.

[3] Segundo a Fundação João Pinheiro (FJP), o déficit habitacional é composto por domicílios considerados habitações precárias, domicílios em que há coabitação familiar (involuntária) e onde há ônus excessivo com aluguel (famílias de menos de 3 salários mínimos pagando mais de 30% da renda em aluguel).

[4] Em Belo Horizonte, temos a atuação de movimentos por moradia de alcance nacional, como por exemplo, a União Nacional por Moradia Popular (UNMP), criada em 1989, o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), criado em 1990, Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM), criada em 1982, e a Central dos Movimentos Populares (CMP), criada em 1993.

[5] Em Belo Horizonte, destacam-se o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), criado em 1999, e as Brigadas Populares, criada em 2003. Em São Paulo, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), criado em 1997.

[6] O Partido dos Trabalhadores (PT), que optou não disputar o pleito em uma união das esquerdas, teve menos de 2% dos votos com Nilmário Miranda.

[7] A Izidora é uma região de Belo Horizonte onde se situam 3 grandes ocupações (Rosa Leão, Esperança e Vitória) e moram cerca de 9 mil famílias.

[8] Em cidades como Nova York, Berlim, Glasgow e Barcelona está havendo uma crescente organização de inquilinos em torno de sindicatos e de coalizões que pautam, entre outras questões, a desapropriação de grandes proprietários, a regulação de aluguéis privados e a viabilização de moradias públicas para aluguel subsidiado (public housing).

[9] Segundo Costa (1994, p.75), “se agravam as condições de vida e reprodução, onde o aluguel de cômodos ou segundas habitações passa a ter um peso cada vez maior, para proprietários e inquilinos, como estratégia de sobrevivência na metrópole periférica. Uma análise sobre o mercado de aluguéis em Belo Horizonte indicou um aumento relativo bastante maior da proporção de domicílios alugados em relação ao total, nas classes de renda até cinco salários mínimos”. COSTA, H. S. M. Habitação e produção do espaço em Belo Horizonte. In: MONTE-MÓR, Roberto Luis. (Org.). Belo Horizonte: espaços e tempos em construção. Belo Horizonte: Cedeplar, 1994, p. 51-77.

[10] SILVA, C. F. O déficit habitacional em nível municipal: um estudo a partir do Cadastro Único em Belo Horizonte. Trabalho de Conclusão de Curso. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2021.

[11] OSTOS, L. M. B. Práticas sociais de mercados informais de solo e regularização fundiária: benefícios privados ou coletivos? Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de Geociências, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021.

[12] Também segundo argumento de Ostos (2021).

2 COMENTÁRIOS

  1. “O primeiro ponto importante é lembrar o peso da ideologia da casa própria no Brasil”… Mas “as lutas por moradia (que) se mobilizam contra o aumento crescente dos aluguéis, por melhores condições para os inquilinos” não sofrem, também, o peso da ideologia do “capitalismo central”? “Morar em uma casa própria não é um desejo “natural” do brasileiro”, mas o é (“natural”…) no “capitalismo central”? O que é, e, principalmente, quem define o que é joio, o que é trigo, é que se permitirá dar “nome aos bois” e “reconhecer essas contradições”…

  2. Marina,

    Primeiro gostaria de agradecer pelo texto, é sempre bom este espaço de diálogo, articulando questões que tenho colocado aqui na coluna com reflexões e realidades diversas pelo país.

    Seu texto traz uma questão importante que é a construção da categoria política do “sem-casa” no Brasil, historicamente determinada pelo nosso desenvolvimento autoritário desde o BNH da ditadura empresarial-militar de 1964. Passando por gestões de esquerda ou direita, políticas públicas e luta popular, a questão da moradia no país é bastante reduzida à questão da propriedade privada – e a especificidade disso considerando outros contextos no mundo é realmente relevante. Mesmo em contexto latino-americano, temos exemplos da propriedade coletiva no Uruguay, ou mesmo as lutas quilombolas e indígenas que miram o uso comum. Há que se pensar, realmente, se não acabou se conformando um amálgama orgânico entre as forças da ordem e aqueles que deveriam subvertê-la, numa dinâmica onde a disputa por hegemonia finda por ser uma disputa por gestão de demanda à propriedade – e não uma disputa por outras lógicas de produção social.

    Nesse sentido, acho perigoso contrapor a luta por propriedade privada à luta em torno do aluguel, seja aquela vinculada aos direitos dos inquilinos, seja ainda mesmo aquela vinculada à Locação Social subsidiada – nos termos do estado de bem-estar europeu. A primeira, dentro dos marcos das lutas por direitos sociais, não chega a se contrapor ao direito de propriedade: é a partir dele que o aluguel se desenvolve de maneira inerente à forma mercadoria que a própria terra adquire, dentro da lógica rentista. Não é de se espantar, portanto, que o rentismo popular se desenvolva em territórios onde a regularização fundiária nem chegou ainda. O espanto é que isso se dê em territórios ocupados por forças políticas organizadas onde a propriedade deveria estar sendo contraposta a outras formas de produção da vida. Quando vemos que não é este o caso, realmente deveria ficar claro que o papel das ocupações de terra na conjuntura política atual é bastante controverso, para dizer o mínimo e não alongar muito a conversa por aqui.

    A segunda forma de luta – aquela ligada à Locação Social nos marcos de um estado de bem-estar – eu também acredito que não possa ser desvinculada de sua determinação histórica e pautada de maneira abstrata e autônoma às condições sociais, econômicas e políticas desse mesmo Brasil que você descreve – que está no mundo, não nos esqueçamos. Nosso Estado não é, nunca foi e nunca será de bem-estar social. Nosso lugar no mundo não é esse. E os próprios conjuntos habitacionais do bem-estar europeu foram as primeiras e mais fáceis presas da nova lógica de propriedade corporativa e global de gestão de carteira de locação, depois das privatizações das décadas de 1980 e 1990. Sua forma urbana e de propriedade facilitava essa captura. Hoje, propriedade pública não apenas no Brasil mas em qualquer lugar, significa mais uma vez uma fácil presa para as Parcerias Público-Privadas, ávidas por gerir patrimônio público e capturar sua renda sem o custo da propriedade. Enfim: isso se dá porque a propriedade pública não escapa da lógica da propriedade privada na medida em que há um proprietário – o Estado.

    A questão que fica para mim, e que não aparece no seu texto, é a dos comuns. Onde andará a imaginação política necessária para a construção de uma alternativa à propriedade? Que, para superá-la, precisa alterar estruturalmente a forma de produção atual, baseada na propriedade privada dos meios de produção. Ou seja: não estou defendendo condomínios hipsters fechados onde tudo é compartilhado. A “economia compartilhada” já deu seu recado também, na era da uberização. Mas esse é outro assunto.

    Obrigada mais uma vez pelo diálogo!

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here