Por Leo Vinicius

 

Meses atrás escrevi um breve artigo apontando que o Programa de Gestão e Desempenho (PGD) do governo federal era uma espécie de cavalo de troia, que utilizava uma flexibilidade almejada pelos trabalhadores em geral, e pelos servidores públicos federais em específico, para introduzir a uberização no serviço público federal[1]. Ao final, afirmei que a flexibilidade almejada pelos servidores poderia ser estabelecida em termos diferentes dos postos pelo governo federal através da Instrução Normativa 65 e do Decreto 11.072/22.

Alguns leitores me perguntaram qual seriam esses termos. Pois bem, aqui pretendo apresentar brevemente alguns princípios e caminhos a serem observados para alcançar a flexibilidade de local e horário almejada pelos servidores, mantendo ou ampliando a qualidade do trabalho, os direitos e a saúde dos servidores. Trata-se de uma discussão inicial, que sirva à reflexão e, quem sabe, a propostas mais elaboradas vindas dos servidores e de suas entidades representativas.

 

O contexto de assédio institucional/organizacional deve ser levado em conta

Antes de tudo é preciso dizer que, para bem e para mal, meu ponto de vista sobre o PGD é o de um servidor público federal, da carreira de Ciência & Tecnologia, que exerce atividade de pesquisa na Fundacentro, uma fundação cuja missão é pesquisa e difusão de conhecimento em Segurança e Saúde no Trabalho (SST). Contudo, mais do que o campo em que trabalho, minha perspectiva sobre o PGD é condicionada pela situação de assédio institucional/organizacional a que os servidores da Fundacentro estão submetidos desde 2019. O assédio institucional se tornou disseminado no atual governo, um lugar-comum nos órgãos federais[2]. Porém, tenho a impressão de que na Fundacentro o assédio institucional/organizacional atingiu níveis dos mais altos, que se expressam também na forma de estabelecimento do PGD pela gestão. Embora a IN 65 estabeleça que as atividades devam ser mensuradas em horas supostamente equivalentes, e que somente serão consideradas como aceitas as entregas com notas da chefia imediata iguais ou superiores a 5, não há nenhuma previsão ou permissão para desconto em folha do servidor, seja na IN 65 ou no Decreto 11.072/22. O fato também é que a Lei 8112/90 que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores federais não prevê e nem permite o salário por tarefa. No entanto, a Portaria que institui o PGD na Fundacentro estabelece a possibilidade de desconto em folha quando a nota da tarefa executada, dada pela chefia, for menor que 5. Se tem sido uma característica do assédio institucional nos órgãos federais as interpretações draconianas de normas e legislações, na Fundacentro há algo além da interpretação… há uma prática de arbitrariedade e abusos que passam por cima de leis e do bom senso. O desconto em folha no PGD passa a ser instrumento de gestão por medo, algo típico de situações de assédio organizacional[3].

Notas para a flexibilidade ao servidor sem a uberização do PGD

A exposição da situação na Fundacentro serve para ilustrar que normas alternativas ao controle de frequência devem levar em conta o contexto de assédio institucional/organizacional, generalizado em maior ou menor medida nos órgãos federais. Não será com uma mudança de governo que ele será dissipado, com um retorno a um momento anterior. Uma barreira foi ultrapassada, a memória de quem utilizou os mecanismos de assédio organizacional para objetivos políticos, pessoais, ou mesmo de gozo de poder, não irá se dissipar tão facilmente. E quando o assédio organizacional se impõe, ele é em alguma medida normalizado,criando espaço na cultura organizacional. O seu uso tende a ser mais recorrente, mesmo que haja variações importantes de acordo com o governo da vez. Para dificultar as interpretações draconianas e que chefes e gestores criem regras abusivas, é importante que certos aspectos das normas que permitam uma alternativa ao controle de frequência sejam bastante precisos.

 

Três proposições

1. Proibição expressa de desconto em folha

Primeiramente, uma norma geral que estabeleça uma alternativa ao controle de frequência no serviço público deve deixar claro, diante dos abusos que ocorrem por parte de gestores como na Fundacentro, que não poderá haver desconto em folha em nenhuma hipótese no regime alternativo ao controle de frequência. Em outras palavras, o salário por tarefa deve ser expressamente proibido (embora no Direito Administrativo o gestor só possa fazer o que é permitido pela lei, os abusos estão ocorrendo).

Pode-se perguntar qual seria então o ônus que teria o servidor que não entrega o acordado? Retornar ao controle de frequência. Aliás, como prevê a própria IN 65. De todo modo, a não entrega do combinado pode ter impacto na sua avaliação de desempenho também. Cabe salientar que a punição ou o retorno ao controle de frequência não implicam que o servidor passará a trabalhar mais, melhor ou será mais produtivo. É preciso ter em mente que gerir para uma melhor e maior produção não possui relação necessária alguma com atormentar, castigar e submeter pessoas. O trabalho não pode ser álibi para o que é, na verdade, puro e simples exercício de poder sobre o outro e prazer no domínio sobre as pessoas.

2. Avaliação por pares sem planilhas mágicas de mensuração temporal

O controle da produção não deve ser realizado a partir de uma obsessão pelo mensurável, que busca reduzir todo trabalho à medida de tempo, como estipulado na IN 65 e no Decreto que estabeleceu o PGD, que seguem o espírito taylorista. O trabalho real não pode ser reduzido à medida de tempo sem que sejam corrompidos na sua qualidade e especificidade. A doença gerencialista pelas mensurações já foi bastante dissecada nos seus efeitos deletérios em um livro de Vincent Gaulejac que é bastante lido entre aqueles que estudam questões relativas à saúde do trabalhador[4]. Francisco Lima também já mostrou a partir da realidade do trabalho como normas de qualidade total baseadas na padronização são uma contradição em si[5].

Com o teletrabalho estabelecido pelo atual governo, baseado em planilhas em que o trabalho é dividido em tarefas e reduzido a tempos de execução, já ocorre uma tendência de ineficiência, com o inchaço de atividades facilmente contabilizadas em tempo, porém desnecessárias, como o prolongamento e multiplicação de reuniões; enquanto atividades de fato produtivas, como a reflexão para criar ou para solucionar problemas não são mensuráveis, e, portanto, tendem a perder espaço. Em suma, quando o trabalho é medido por índices, o objetivo passa a ser atingir o índice, a despeito do trabalho concreto e da produção real.

Notas para a flexibilidade ao servidor sem a uberização do PGD

A planilha que transforma magicamente tarefas em horas de trabalho, para além da questão de quem determina que certa tarefa equivale a tantas horas, não leva em consideração questões tão básicas e reais como as diferenças entre os trabalhadores. Diferenças de idade, de experiência, de habilidades etc. Diferentes pessoas podem executar a mesma atividade em prazos bastante diferentes, com o mesmo esforço despendido.

Os termos de uma flexibilidade que não precariza a relação de trabalho dos servidores, que não comprometa o trabalho real e a saúde, passa por uma concepção baseada na confiança entre gestão e trabalhadores e na maior autonomia desses últimos. Difere, portanto, do modelo burocrático de planilhas mágicas que transformam atividades em horas de trabalho. A burocracia viceja onde não há confiança, em culturas organizacionais autoritárias. A participação coletiva é fundamental. Não para criar padrões e planilhas, mas para estabelecer o que é importante avaliar no trabalho e como avaliá-lo.

Um ambiente de autonomia e confiança tem potencial de gerar um ambiente de engajamento e motivação, que por sua vez justificam a autonomia e a confiança[6]. Criar as condições para que os servidores se reconheçam no seu trabalho e possam ter reconhecimento pelo trabalho; criar as condições para que se reconheçam como integrantes de um ofício, de uma coletividade que compartilha regras sobre o trabalho, faz do próprio coletivo que forma esse ofício os melhores avaliadores do bom trabalho e da boa produção, como parte da própria dinâmica de reconhecimento entre os pares. Evidentemente, criar um ambiente de engajamento no trabalho é mais trabalhoso aos gestores do que impor planilhas e normas que simulam a produção, e do que usar instrumentos de punição e coação que se valem ainda de um imaginário escravocrata que estabelece causalidade entre chicote e trabalho[7].

O que aponto no parágrafo acima não é uma proposta abstrata, mais sim como funciona, com problemas e contradições ou não, o controle de trabalho e produção em atividades de pesquisa do serviço público federal, nas fundações em que os cargos da área fim são dispensados pela legislação de terem controle de frequência devido à natureza da atividade. É o caso dos professores das universidades federais e dos cargos de tecnologista e pesquisador da carreira federal de Ciência & Tecnologia (nos órgãos que cumprem o Decreto 1590/95, o que não é o caso, mais uma vez, da Fundacentro). Esses exemplos podem servir de referência, e mostram que uma planilha mágica de transformação de atividade em horas é desnecessária, além de nociva, e que uma alternativa ao controle de frequência pode e deve ser concebida a partir das características de cada atividade.

Notas para a flexibilidade ao servidor sem a uberização do PGD

3. Não reduzir postos e manter apropriadas condições de trabalho nos órgãos

A responsabilidade com os instrumentos de trabalho e com a segurança e saúde não pode recair totalmente sobre o servidor, mesmo quando ele trabalha em casa. Até porque mais importante ergonomicamente que o mobiliário são as normas e regras que formam a organização do trabalho[8]. Por exemplo, as Ler/Dort são basicamente lesões provocadas pelo trabalhador não poder seguir o seu próprio tempo no trabalho (seu ritmo psicológico, social, biológico)[9]. No teletrabalho da IN 65 e do Decreto 11.072/22, todas as responsabilidades são externalizadas aos servidores. Tal externalização, além dos potenciais efeitos negativos sobre a remuneração dos servidores, tende a levar a um rebaixamento das condições de trabalho nos órgãos públicos. Isso porque, resultando em economia expressiva dos órgãos, há uma pressão para que os servidores adiram ao PGD-teletrabalho. Ora, e uma forma de aumentar a atratividade do teletrabalho ao servidor é piorando as condições de trabalho e retirando instrumentos de trabalho do órgão público (na Fundacentro, por exemplo, não há mais impressora e telefone em muitas unidades).

Para impedir essa forma de assédio com vistas a redução de custos, a economia do órgão público com a implantação do teletrabalho deve ser algo marginal, pouco significativa. De outra forma haverá incentivo para deteriorar as condições de trabalho dos servidores. E deteriorada as condições de trabalho presencial, o teletrabalho deixará de ser, na prática, uma possibilidade de escolha ao servidor, tornando-se apenas a opção do servidor para ter um ambiente de trabalho decente.

Portanto, em toda norma que estabeleça um controle da produção alternativo ao controle de frequência deve ficar explicitado que é obrigação do gestor do órgão manter as mesmas condições de trabalho no local (ou melhorá-las se não forem boas), sem redução de espaço, de mobiliário e de instrumentos de trabalho. Até mesmo para que a opção de retorno ao trabalho presencial seja uma opção real do servidor. O órgão poderá mesmo assim reduzir custos com consumo de água e energia elétrica, por exemplo.

Ora, o exposto no parágrafo anterior nos faz perceber que a dicotomia conceitual teletrabalho/presencial não é a mais adequada para pensar uma alternativa que traga flexibilidade de local e horário aos servidores. A ideia de teletrabalho parece desobrigar os gestores públicos a manterem os postos de trabalho e as condições adequadas para o trabalho no órgão. Seria mais adequado usar os conceitos de controle de produção e controle de frequência, podendo os servidores aderirem a um dos dois sistemas; e aqueles que aderirem ao sistema de controle de produção poderiam assim trabalhar quando e quanto quiserem em casa, no órgão ou em outro lugar.

Por fim, é importante ressaltar que a possibilidade de trabalhar em casa não deve afastar a responsabilidade do Estado de fornecer creches e escolas em tempo integral. Trata-se de política pública para igualdade de gênero e independência econômica das mulheres. Com o teletrabalho, o Estado se afasta de uma potencial pressão para o financiamento desses serviços, externalizando na forma de dupla atividade, que costuma recair sobre as mães, o cuidado com as crianças durante a jornada de trabalho.

Notas para a flexibilidade ao servidor sem a uberização do PGD

 

Notas:

[1] O “Programa de Gestão” traz a uberização ao serviço público federal<https://passapalavra.info/2022/06/144713/>
[2] Ver o livro CARDOSO JR., J.C. etal. (org). Assédio Institucional no Brasil: Avanço do Autoritarismo e Desconstrução do Estado. Brasília: Afipea; EDUEPB, 2022. Disponível em: <https://afipeasindical.org.br/content/uploads/2022/05/Assedio-Institucional-no-Brasil-Afipea-Edupb.pdf>; E sobre o assédio institucional na Fundacentro: <https://afipeasindical.org.br/content/uploads/2022/06/NT_26_Assedio_Institucional_na_Fundacentro.pdf>
[3] Em várias reuniões com servidores o chefe do RH, Diego Fernando Ferreira de Oliveira, mencionou que haveria desconto em folha caso não fosse entregue o planejado. Para piorar, todos os servidores fora da sede de São Paulo (cerca de metade dos servidores da Fundacentro) passaram a estar subordinados ao RH, numa verdadeira aberração organizacional, tendo ele como chefia que avaliaria as entregas do PGD. O mesmo chefe do RH (que passou a ser denominado em 2020 como Coordenação-Geral de Gestão Corporativa), Diego Fernando Ferreira de Oliveira, juntamente com Roberta Granja Gonzaga (Coordenadora de Gestão de Pessoas) e Viviane Maciel Trevisan (Chefe de Serviço de Desenvolvimento de Pessoal) determinaram, por cima da lei, dos princípios do Direito Administrativo, da lógica e da boas práticas, que para que fosse homologada a frequência dos servidores que estivessem sob sistema de ponto eletrônico, eles deveriam entregar um relatório de atividades. Misturando assim avaliação de desempenho com assiduidade, teriam por consequência lógica que pedir a exoneração por abandono de emprego do servidor que não entregasse o relatório. O abuso de condicionar reconhecimento da assiduidade à entrega de um relatório deixaria um auditor fiscal do trabalho de queixo caído. E tais abusos ocorrem dentro de uma fundação vinculada ao Ministério do Trabalho, presidida por Luciana Ferrari Siqueira, ex-sócia e supõe-se que amiga do Ministro do Trabalho José Carlos Oliveira. Não deve surpreender que a direção do RH tenha esse papel de planejar e executar boa parte do trabalho sujo de assédio organizacional. No caso emblemático que levou a 60 suicídios na France Télécom, foram condenados além do presidente e vice-presidente da empresa, o diretor do RH da France Télécom.
[4] GAULEJAC, Vincent de. Gestão como Doença Social. Aparecida: Idéias& Letras, 2007
[5]LIMA, Francisco P.A. Medida e desmedida: padronização do trabalho ou livre organização do trabalho vivo? Produção (São Paulo. Impresso), v. 4, p. 3-17, 1994.
[6] ZANINI, M.T. Confiança: O Pacto Ético e a Cooperação nas Organizações. Apresentação no 2ºFórum Nacional “Gestão Estratégica no Setor Público”. Brasília, 2011. Disponível em:<https://www.trt7.jus.br/pe/files/noticias_publicacoes/arquivos/O%20Pacto%20%C3%89tico%20e%20a%20Coopera%C3%A7%C3%A3o%20nas%20Organiza%C3%A7%C3%B5es%20Marco%20Tulio.pdf>
[7] Os gestores, que com frequência cada vez maior são figuras abjetas que se servem de cargos comissionados, sem nenhum espírito público, são na verdade, em geral, os grandes preguiçosos no serviço público. O trabalho eficiente que frequentemente fazem se resume a articulações e práticas para ascenderem e se manterem nos cargos.
[8] ASSUNÇÃO, Ada Ávila. A cadeirologia e o mito da postura correta. Rev. bras. saúde ocup.; 29(110): 41-55, 2004; ROQUELAURE, Y. Musculoskeletal disorders and psychosocial factors at work. Brussels: Etui, 2018. Disponívelem:<https://www.etui.org/Publications2/Reports/Musculoskeletal-disorders-and-psychosocial-factors-at-work>
[9]LIMA, Francisco P.A. A organização da produção e a produção da LER. In: LIMA, M.E.A.; ARAÚJO, J.N.G.; LIMA, F.P.A. LER: dimensões ergonômicas e psicossociais. Belo Horizonte: Health, 1997, pp.237-263.

 

As fotografias que ilustram o texto são da autoria de Robert Doisneau (1912-1994).

1 COMENTÁRIO

  1. Existem, além das questões apresentadas, ilegalidades na IN 65. Além de falácias, como o controle fake feito pelo órgão central e uma fantástica burocracia envolvendo a operação do programa. Aspectos como o controle de custos passam ao largo.

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