Por Flávio Higuchi Hirao

Palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e parecem ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar. Klemperer, 2009[1]

Neste texto pretendo problematizar uma das expressões mais corriqueiras quando falamos do Chile: a de que o país teria sido o “laboratório do neoliberalismo”.

Trago a hipótese de que por trás do uso da palavra laboratório reside uma perspectiva norte centrada e reducionista politicamente (em prol de um determinismo econômico). Quando falamos em laboratório costumamos nos referir a um lugar onde experimentamos, testamos, simulamos, em condições muitas vezes controladas, alguma ideia que, uma vez comprovada sua eficácia, poderá ser aplicada na realidade. Neste sentido, o Chile de Pinochet se reduziria a um lugar de experimentação de um modelo econômico que, após testado, se expandirá ao mundo que verdadeiramente importa: a Inglaterra de Margaret Thatcher e os EUA de Ronald Reagan.

As interpretações do neoliberalismo que privilegiam a chave macroeconômica tendem a privilegiar os acontecimentos ocorridos no “centro” do capitalismo, posicionando o Chile numa “periferia” onde teria ocorrido uma espécie de pré-história do modelo. Em diversos textos fundamentais sobre o neoliberalismo encontramos expressões que parecem se referir a um laboratório científico: para David Harvey, por exemplo, o Chile teria “oferecido úteis dados”  que suportariam a “subsequente adoção do neoliberalismo na Grã Bretanha (sob Thatcher) e nos Estados Unidos (sob Reagan) nos anos 1980” (Harvey, 2005).

A história então não teria começado em 1973 com Pinochet, mas entre 1979 (Thatcher) e 1980 (Reagan). Este ocultamento do Chile nos fornece a impressão de que os acontecimentos no país latinoamericano seriam uma espécie de pré-história, experimentações laboratoriais fora da história a serem posteriormente implementadas na história (equivalente a centro do capital). Diferentemente, Perry Anderson (1995) cita 1973 como um ano fundamental. Porém, não em razão de um fato político de extrema importância, o golpe contra Allende, mas pelo tema econômico: a crise mundial desencadeada em outubro daquele ano quando os países da OPEP proclamaram um embargo petrolífero que abalaria a economia mundial. Ocorre que meses antes daquele mês de outubro, e também anterior ao 11 de setembro daquele mesmo ano, um grupo de economistas chilenos já havia finalizado a elaboração de um documento com um conjunto completo de ideias para a reestruturação total do Estado e da sociedade chilena sob os princípios do neoliberalismo. Apelidado de El Ladrillo, o documento chegaria às mãos de alguns militares da alta cúpula que, meses mais tarde, estariam à frente da derrubada do presidente socialista eleito em 1970.

El Ladrillo não propunha apenas diretrizes macroeconômicas: o documento trazia ideias que alterariam integralmente a vida dos chilenos em todas as suas dimensões. Por este motivo é fundamental que busquemos uma interpretação da gênese do neoliberalismo no Chile a partir de um enquadramento mais amplo para além da economia.

É neste sentido que cabe questionarmos a nossa noção de centralidade. Pois talvez seja este o motivo pelo qual tratamos o Chile como laboratório: ao fazer parte da periferia do capitalismo, o que lá ocorreu teria um impacto menor em termos econômicos globais. Mas, do ponto de vista político, situar o Chile do início da década de 1970 como periferia seria um equívoco histórico: o país latino-americano era um centro de importância global na luta por novas possibilidades revolucionárias, como nos lembra Peter Winn (2010): A via chilena de Allende era encarada na época como tão notável e importante que o Chile estava repleto de observadores estrangeiros, a maior parte deles esquerdistas europeus e latino-americanos que esperavam seguir seu exemplo em seus países de origem (Winn, 2010: 19).

Tal era a centralidade da revolução chilena que, para Claudia Gilman (2003), sua derrota em 1973 encerra um ciclo histórico do que seriam, nas palavras da autora, os “14 anos prodigiosos” iniciados em 1959 com a Revolução Cubana. Cabe portanto a seguinte linha de raciocínio lógica: o neoliberalismo nasceu no Chile não como um teste, não como uma experiência que por mero acaso encontrara condições ideais naquela ditadura da “periferia”; lá nasceu justamente para contrapor, ao avanço do poder popular, tanto uma economia quanto uma política neoliberal. É a história deste conflito central da década de 1970 que a palavra “laboratório” acaba por silenciar.

Mas este “reposicionamento” epistemológico da ideia de centro traz outras consequências: necessariamente nos leva a questionarmos a comum contraposição dualista formada pelo neoliberalismo de um lado e keynesianismo de outro. Afinal, o que a história chilena demonstra é que na década de 1970 o pensamento de autores como Hayek e Friedman se contrapunha sim ao Estado-providência mas também e sobretudo aos avanços das lutas por um socialismo democrático.

Com este enquadramento triplo, a interpretação de Grégoire Chamayou nos fornece melhores pistas para compreender o big bang neoliberal no Chile:

O antiestatismo das correntes de autogestão, seu pensamento sobre imanência, a autonomia e a auto-organização, exerciam sobre os neoliberais inegável atração. (…) Tal era o principal inimigo no terreno teórico. Daí podia vir o perigo para o futuro, muito mais do que um keynesianismo moribundo. A grande reação que se preparou nos anos 1970 não foi concebida como alternativa ao Estado de bem-estar, mas como alternativa à sua contestação. Foi uma alternativa à alternativa. (Chamayou, 2020: 393)

Ao analisar a história do neoliberalismo do ponto de vista do pensamento econômico e gerencial dominante, Chamayou conclui que, para os poderosos de então, a mais perigosa alternativa ao “keynesianismo morinbundo” eram as tendências de democracia radical. O Chile assim se desloca da periferia para o centro da preocupação: o lugar mais avançado na construção de um socialismo que impulsionava práticas autogestionárias sob o princípio do poder popular e com um presidente eleito pelo voto em eleições abertas e livres. [2]

A combinação das perspectivas políticas à econômica pode nos permitir retirar o Chile de dentro de um laboratório imaginário e reposicioná-lo no centro de conflito fundamental das décadas de 1960 e 1970, ou seja, aquele travado entre o capitalismo e o socialismo com tendências autogestionárias. Do contrário, estaremos assumindo que o neoliberalismo assumiu importância de fato apenas quando contestou o keynesianismo europeu ou estadunidense, ou seja, apenas quando contestou o próprio capitalismo!

Nascimento e morte se fundem num único ato em 11 de setembro de 1973: a gênese daquela vanguarda da forma mercadoria só se realizou quando assassinou sua contemporânea vanguarda socialista.

A guerra social no Chile

Se é certo que a ruptura violenta do golpe militar derrubou a esquerda, também é certo que este vazio produzido pela repressão foi ocupado por um novo universo de valores, normas e crenças impostos pela ditadura, processo dentro do qual o mundo popular cumpria um papel protagonista, no que seria, para além de uma guerra militar, uma “guerra social” (Verónica Valdivia et. al., 2012). Assim, a expressão de um dos generais golpistas, “extirpar o cáncer marxista hasta las últimas consecuencias”, não se referia apenas à eliminação física de milhares de chilenos, mas também a “ressocialização do povo do Chile sob novos parâmetros” (Verónica Valdivia et. al., 2012).

Voltemos a El Ladrillo. Nas palavras de Luis Daniel Santana, encontramos no documento um “planteamiento utópico del programa neoliberal a partir de metáforas naturalizadoras, neutralizadoras y universalizantes” (Santana, 2017: 194). Santana faz questão de chamar de utópico, uma vez que não havia ainda um lugar nem condições históricas para sua implementação: se tratava de um conjunto de ideias. Mas ideias que contribuíram no fortalecimento de um ato real: um golpe de Estado.

Mas o que queremos chamar atenção é que, em El Ladrillo, ao lado das soluções macro-econômicas, as questões políticas já estavam muito claras. Segundo os autores, a descentralização (outra forma de dizer privatização), levaria à “despolitización de numerosas actividades y colocará los conflictos ideológicos y políticos en el plano que les corresponde, evitando su interferencia en la vida cotidiana”. É esclarecedor verificar a clareza com que os ideólogos do sistema falavam das consequências políticas das ações econômicas:

Un sistema previsional basado en “Fondos” de ahorro efectivo de los participantes no sólo es una solución eficiente al problema previsional, sino que además creará un mecanismo de acumulación de riqueza en manos de los trabajadores. Ellos pasarían a ser, con el tiempo, una de las principales fuentes de ahorro para financiar inversiones, pudiendo alcanzar un papel prominente como poseedores de capital. Si esta posibilidad se materializa, podrían desaparecer o aminorarse las tensiones entre el capital y el trabajo, ya que este último seria a su vez poseedor de importantes recursos de capital […] Un proceso de esta naturaleza, mantenido por un número largo de años, conduciría a una socialización de la riqueza, sin que por ello se cayera en fórmulas de socialismo estatista, a la vez que se podría contar con todas las ventajas que ofrece una economía descentralizada y sustentada en mercados competitivos. (CEP, [1973] 1992: 134 in Santana, 2017).

Vejamos como isso se deu na questão habitacional e urbana. Em primeiro lugar, para compreender a proposta neoliberal, é necessário verificar, antes, à qual situação política ela vinha se contrapor.

Em período revolucionário e pré-revolucionário, as ocupações organizadas de terrenos se tornaram território fundamental na conjuntura política. Durante as décadas de 1950 e 1960 foram realizadas enormes ocupações, que obtiveram progressiva importância política ao longo dessas décadas. Uma das ocupações primeiras e mais importantes ficou conhecida como La Victoria, resultado da ocupação de um terreno por 1.200 famílias em Santiago em 1957. Para Alex Cortés (2014),

“Los pobladores de La Victoria fueron sus propios urbanistas. Para ello, organizaron planes de emulación entre los distintos bloques de la población, premiando y estimulando a aquellos pobladores que más destacaran por su sacrificio en los procesos de colocación de postes eléctricos y de cañerías. También se conformaron comités vigilancia, encargados de controlar la delincuencia y dar seguridad a la población; se premiaba a aquellos vecinos que tuvieran el jardín mejor cuidado, etcétera”.

As ocupações cresceriam e ampliariam sua importância ao longo da década de 1960 sob o governo democrata cristão. Com a eleição de Salvador Allende e a vitória da Unidad Popular em 1970, as comunidades organizadas nas ocupações se tornaram um dos principais agentes de mobilização e defesa do regime. Segundo Nathalie Drumond (2015), o movimento de pobladores praticamente “refundou a cidade de Santiago” e, por meio da luta pela moradia, construíram os bairros e “vivenciaram uma intensa experiência de controle e gestão de seus territórios”. Em artigo de 1973, Manuel Castells (1973) analisava que, talvez, um dos “aspectos más específicos de la lucha de clases en Chile sea la importancia que ha tomado en ella, en particular en los últimos años, el llamado movimiento de pobladores”. Segundo Mario Garces Durán (2014), pode-se estimar que em Santiago ocorreram 256 ocupações de terrenos, a partir de dados de Castells (1973) e Cofré (2011).

A importância das ocupações de terras aumentava à medida que se formavam os cordões industriais: áreas liberadas da cidade compostas pela integração de ocupações de terras e fábricas recuperadas pelos trabalhadores. Determinados espaços tanto de produção quanto de reprodução se desvencilhavam do capital (Borges, 2015; Gaudichaud, 2004).

A primeira ação do regime militar era, portanto, erradicar os radicais e, também, os pobres das regiões centrais: segundo Palacios y Layton (2017), “La erradicación, cortar de raíz, fue más allá de los supuestos subversivos: El espacio urbano/social y político debía estar libre de marginalidad, una asepsia territorial que se tradujo en crear nuevos territorios, townships de pobres, localizados en los extramuros de la ciudad. La dictadura preparó así el terreno para que después las empresas inmobiliarias modelaran una ciudad de segregación”.

As remoções no centro das cidades chilenas respondiam ao mesmo tempo à valorização do solo urbano central e à desarticulação das organizações coletivas. Entre 1979 e 1984, 28 mil famílias haviam sido removidas de Santiago, o que correspondia a 20% dos domicílios pobres da cidade. Se tratava, afinal, da erradicação da auto-construção localizada em áreas centrais da cidade, por meio da aplicação do seu oposto: a produção privada de habitação por empresas construtoras centralizadas na política do governo federal em áreas afastadas da cidade. Segundo Rodrígues e Sugranyes (2015), “el programa de erradicación fue una medida radical, única en el continente, propiciada por los intereses de plusvalía del suelo, impuesta por las Fuerzas Armadas y legitimada por un marco normativo ad hoc”.

Mas nenhum regime avança e impõe sua hegemonia apenas pela repressão. À política negativa repressora, o novo regime desenvolveria um sistema baseado no princípio da subsidiariedade e da meritocracia. Em seu primeiro ano uma das ações mais importantes do regime foi a Declaração de Princípios da Junta Militar, de 1974, que estabelecia o princípio de subsidiariedade que “supone la acecptación del derecho de propriedad privada y de la libre iniciativa en el campo económico”, assim como “la creación de una moral de mérito y del esfuerzo personal”. (Junta Militar, 1974). Se definia a relação Estado e indivíduos como uma complementariedade eventual, cujo fundamento seria o indivíduo, não as coletividades, seja classe, povo, coletivo ou “población”.

O Estado deixava de ser um promotor direto, preocupado com projetos, tecnologia, materiais, terrenos, etc., tendo se reduzido a atuar em três pilares fundamentais: poupança, subsídio e crédito, que seria “la fórmula mágica propuesta por los Chicago Boys” para reduzir o déficit habitacional (Vergara, 2014).

Quantitativamente, a política habitacional neoliberal chilena é considerada exitosa, dado que permitiu a construção de unidades habitacionais na escala do próprio déficit inicial. Tornou-se assim modelo incorporado pelas agências de cooperação bilaterais ou multilaterais, com destaque para o BID.  Segundo Raquel Rolnik (2015), “de 1988 – quando um dos inventores do modelo chileno passa a integrar o staff do banco – em diante, praticamente todos os empréstimos envolvendo o setor habitacional passaram a incluir o modelo chileno de subsídio”. Na América Latina passaram a implementar esse modelo México, Guatemala, Bolívia, Equador, Brasil, El Salvador, Colômbia e Venezuela (Rolnik, 2015). No caso brasileiro, o modelo teve forte influência sobre a formatação do programa Minha Casa Minha Vida.

O chamado “lado escuro de uma política exitosa”, conforme título de trabalho de Maria Elena Ducci (1997), é a questão urbana, que levaram a uma situação inusitada na América Latina: a redução do problema dos “sem-teto” que lograram o acesso à habitação, e o aparecimento do problema dos “con-techo”, sem cidade (Rodríguez e Sugranyes, 2015). O artigo de Ducci, de 1997, demonstrava que a redução do tamanho das casas e dos terrenos estavam impactando diretamente as formas de vida familiar, ao impedirem reuniões familiares, encontros e demais atividades fundamentais nas vidas familiares e comunitárias. Além da intensa segregação territorial, a política habitacional estava provocando a ruptura de laços familiares. Um fator agravante é a forma de seleção das famílias: a informatização do sistema de cadastro familiar permite a digitalização de todas as informações dos postulantes, como poupança acumulada, condições sócio-econômicas, etc., com base nas quais se hierarquizam as famílias e se permite uma grande imparcialidade na seleção dos beneficiários. Ocorre que a localização da nova moradia é definida automaticamente de acordo com a disponibilidade dos projetos executados pela ministério ou empresas executoras, “lejos del lugar de origen, lejos de la familia y antiguas amistades” (Ducci, 1997). A fragmentação de comunidades enfim se efetiva não mais pela repressão mas pelo próprio funcionamento do mecanismo tecnocrático “igualitário”, “transparente”.

Para Santana (2017), nos primeiros anos da ditadura a política chilena delineou uma “utopía socio-espacial basada en la producción privada de la urbanización, abordando en detalle las trabas y las soluciones potenciales al problema del mercado del suelo”, uma utopia que sería possível posteriormente em um contexto generalizado de financeirização. De fato, ao contrário do período pré 1973, quando prevalecia a auto-construção comunitária como alternativa, agora temos a promoção do auto-endividamento da família isolada. Quando falamos de dívida, falamos de títulos financeiros. Se auto-construção sobrecarregava os ombros de trabalhadores e trabalhadoras que erguiam suas próprias casas, por outro essa sobrecarga (trabalho) estava imobilizada no lugar onde a casa era construída, no terreno que, vale lembrar, muitas vezes sequer era um título dada sua informalidade (fato bem percebido pelo peruano Hernando de Soto). A política neoliberal traz a novidade de tirar as amarras e mobilizar essa sobrecarga do trabalho futuro chamada dívida, ou da sobrecarga dos trabalhos passado e presente, chamado poupança-prévia, conectando a família que conquista a casa via política pública estatal ao sistema financeiro global.

Laboratório ou ponta de lança

Para Dardot et. al. (2021), “a noção de ´laboratório´ que se usou e abusou a respeito da experiência chilena, deve ser visto com circunspecção”. Mas a crítica dos autores vai no sentido de relativizar a noção de que o Chile seria um modelo a ser transposto a outros lugares – dado que os países não são iguais. Nossa crítica vai em outra direção: não podemos chamar o Chile de laboratório quando, o que está em questão, não é um teste ou uma experimentação, mas a urgência do capital em apagar aquele que era o  maior incêndio em seus domínios ocidentais, cuja combustão se realizava na perigosa fusão da ideia de autonomia com a de igualdade.

Nós nos esquecemos, mas os defensores da “livre-iniciativa”, em uma situação – pelo menos no início do período – próxima à falência intelectual, também se interessavam pelas teorias da autogestão.

A ideia de que a “a individualidade na cooperação” pode se revelar social e historicamente superior à “competição no individualismo”, tal como repetia nesses mesmos anos Colette Magny, parecia aos neoliberais uma hipótese bastante plausível para que gastassem tanta tinta e papel com o intuito de refutá-la. E com razão. (Chamayou, 2020: 393)

Para ser eficiente, a contra-combustão não poderia ser contrária à autonomia: era o caso de esvaziá-la de seu sentido coletivo e anti-sistêmico, novamente cindindo-a da ideia de igualdade – palavra que precisava retornar ao seu devido par diabólico, o totalitarismo. A corda da autonomia, disputada em cabo de guerra ao longo da década de 1960, mas fundamental aos movimentos políticos radicais da época, é então definitivamente invertida e enquadrada no ideal de liberdade econômica. É assim que Hayek verá o Chile de Allende como o único regime totalitário da América Latina enquanto elogia a contra-revolução pinochetista como um exemplo de liberdade:

A filosofia política de Hayek revisa as categorias estabelecidas e redistribui as oposições pertinentes. A favor dessa operação de redistribuição conceitual, enunciados paradoxais se tornam formuláveis: a democracia poderá ser denunciada como totalitária, mas a ditadura também poderá ser perfeitamente louvada como liberal. (Chamayou, 2020: 330)

Retirar os acontecimentos no Chile do lugar de laboratório pode também nos ajudar a retomar a preocupação da igualdade e da autonomia não como um fato conjuntural resumido àquela circunstância histórico-geográfica, ainda sob guerra-fria, mas, ao contrário, enquadrá-la como uma característica genético-estrutural do neoliberalismo, que avançará nas décadas seguintes criando estratégias propositivas de autonomia em prol da competição e do mercado (“autogestão” empresarial, empreendedorismo…) e reprimindo autonomias coletivas e anti-sistêmicas – estas sempre presentes e em enfrentamento. No Chile contemporâneo, o estallido de 2019, com fundamental protagonismo dos movimentos feministas, indígenas (mapuches) e ambientalistas (contra privatização da água), muitos deles organizados sob o princípio da autonomia, seguido da vitória de Gabriel Boric e pela posterior derrota da constituinte (Tinta Limón, 2021; Salém, 2021), mostram uma história aberta e em disputa na qual não se luta apenas por políticas próprias de um Estado-providência, mas se contesta integralmente a estrutura social chilena construída nas últimas décadas.

Notas

[1] Emprestado de Assis, 2020.

[2] É evidente que a chamada “via chilena” é complexa e cheia de matizes, com tendências internas conflitantes e contraditórias. Porém, é indubitável a importância do fato de Allende ter sido eleito pelo voto popular ao mesmo tempo em que vertentes fundamentais construíam diversos níveis de auto-organização na base.

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