Por Fagner Enrique
Numa conversa com um grupo de pessoas, todas esquerdistas, enfrentei uma polêmica acerca dos chamados influenciadores digitais.
Meus interlocutores — todos eles — defendiam que os influenciadores podem desempenhar um papel positivo, promovendo pautas “de esquerda” — reduzidas por eles, na prática, a pautas identitárias —, e que muitos influenciadores são, na verdade, trabalhadores precarizados explorados pelas redes sociais.
A discussão fez-me chegar à conclusão de que uma das razões para o desaparecimento da esquerda é a perda da noção do que seja o trabalhador, quando não a própria negação de que ainda exista algo que se possa chamar de classe trabalhadora. Incapaz de enxergar e definir com clareza a classe trabalhadora, a esquerda nega-se a si mesma e condena-se à inexistência prática.
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O raciocínio dos meus interlocutores era simples: os influenciadores não são proprietários dos meios de produção — as plataformas digitais — e precisam produzir mais e mais conteúdos, angariando mais e mais seguidores, para serem remunerados — no geral, muito pouco — pelas redes sociais, conseguindo aumentar seus rendimentos apenas se forem capazes de engajar milhares, milhões de seguidores e obter patrocínios, o que a maioria não consegue fazer. São, portanto, trabalhadores precarizados, sujeitos a uma condição semelhante à uberização, mas prestando um serviço que mescla qualquer tipo de conteúdo com entretenimento. “Muitos deles são pobres!”, exclamavam meus interlocutores, “e mesmo os que não são pobres são, no máximo, trabalhadores bem remunerados”.
Contestei, apresentei argumentos, mas não havia nada que pudesse convencê-los. “Vocês estão defendendo os influenciadores” — concluí, quando já tinha desistido de argumentar — “porque vocês consomem entretenimento produzido por influenciadores. Simples assim. Estão tão alienados que se identificam com os influenciadores como se fossem trabalhadores como vocês”.
Enfim, argumentar naquela ocasião foi inútil, mas talvez a discussão seja proveitosa para os leitores deste site. Adianto que não consumo e não me interesso por qualquer tipo de conteúdo produzido por qualquer tipo de influenciador. Minha visão é a de alguém que observa o fenômeno de fora e de longe, e não tem a menor intenção de observá-lo de dentro e de perto. É a opinião de alguém que acompanha o fenômeno através do noticiário, observando as pessoas ao redor e conversando com elas.
Pois bem.
O fato de não serem proprietários dos meios de produção — na verdade, isso só é parcialmente correto —, o fato de produzirem incessantemente novos conteúdos, e ainda o amadorismo da maior parte dos influenciadores, nada disso faz deles trabalhadores precarizados.
O “trabalho” do influenciador enquadra-se numa espécie de putting-out system ao contrário. Nesse sistema o trabalhador era dono dos meios de produção e recebia as matérias-primas do patrão, para trabalhá-las em casa; depois o patrão voltava e recolhia o produto acabado, pagando um salário ao trabalhador. Os influenciadores, por sua vez, usam um meio de produção que não lhes pertence — a plataforma digital —, mas costumam ser donos de outros meios de produção utilizados: um celular, por exemplo, usado na captação de imagens e sons, conexão com a internet, e assim por diante. Até aí não há nada que diferencie o influenciador de um trabalhador uberizado. As semelhanças acabam, porém, quando se constata que o influenciador não apenas investe, em maior ou menor medida, como faz o trabalhador uberizado, em meios de produção e inputs de matérias-primas — objetos que possui em casa, o seu próprio corpo, etc. —, mas também concebe e executa uma performance, sozinho ou com a ajuda de outras pessoas — amigos, familiares, trabalhadores contratados —, para ceder conteúdo audiovisual à rede social, que o disponibiliza junto com publicidade contratada por empresas.
O influenciador é, assim, um coinvestidor: se for competente o suficiente para “viralizar” seus vídeos, tornar-se-á sócio do empreendimento, celebridade e garoto-propaganda, e receberá uma parte da mais-valia expropriada pela plataforma digital, que por sua vez receberá uma parte da mais-valia expropriada pelo influenciador, caso seja o empregador de uma equipe de assistentes; se o influenciador não demonstrar competência, não conseguirá ultrapassar o nível do micro ou nanoempreendedor.
É um putting-out system ao contrário: os capitalistas não estão disponibilizando as matérias-primas para serem trabalhadas no âmbito doméstico por trabalhadores em transição do artesanato para a manufatura; estão disponibilizando um meio de produção, para receberem conteúdo audiovisual e investimentos de pequenos empreendedores individuais. A comparação com o trabalhador uberizado, portanto, não se sustenta, na medida em que se desconhece o motorista de aplicativo ou entregador que, de tanto trabalhar, levando pessoas ou mercadorias de um lado a outro, tenha alcançado o status de pessoa famosa e se convertido em garoto-propaganda, patrão e empresário.
O que as redes sociais fizeram foi democratizar o acesso ao mundo das celebridades pop, mas como a visibilidade é toda de quem executa as performances, oculta-se o trabalho de quem organiza o “palco”, isto é, o trabalho dos assistentes dos influenciadores e o trabalho de quem mantém em funcionamento a infraestrutura da rede social. A função do influenciador — seu “trabalho” — é a de criar e produzir entretenimento barato, que chame a atenção do público e assegure a divulgação e valorização de marcas: a marca da própria rede social e as marcas dos anunciantes. A fragmentação das cadeias produtivas na era da transnacionalização do capital possibilita que o trabalhador da infraestrutura das redes sociais permaneça invisível, e o fato de as imagens e sons captados pelas câmeras e microfones sempre ocultarem quem fica no backstage garante igualmente a invisibilidade dos assistentes dos influencers.
O influenciador, na verdade, como qualquer celebridade, depende do trabalho de dezenas, às vezes centenas, milhares de trabalhadores. Antigamente, porém, para que pudesse comparecer diante das câmeras ou dos microfones de um estúdio de gravação, o aspirante à fama necessitava de dinheiro ou do patrocínio de alguém — um empresário, uma agência, outra celebridade já consagrada —, mas hoje as redes sociais permitem que a pessoa seja vista e ouvida pelo público — nem que seja por um dia, uma hora, um minuto — muito antes de ser patrocinada por quem quer que seja.
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Uma grande quantidade de trabalhadores consome diariamente os conteúdos produzidos por influenciadores digitais, incluindo aqueles que se identificam como pessoas “de esquerda”. Por outro lado, a própria esquerda tem investido nos seus próprios influenciadores. Enquanto isso, avança a precarização das relações de trabalho dentro e fora das plataformas digitais, bem como a fragmentação dos trabalhadores, e uma parte da esquerda prefere promover e consumir entretenimento disponibilizado pelas redes sociais a proceder à crítica e ao enfrentamento das novas relações de trabalho.
Enquanto a esquerda continuar com os olhos fixos no lugar errado, permanecerá anulando-se enquanto esquerda.
A fotografia em destaque é da autoria de Neil Godding . As fotografias no corpo do texto são de autoria, respectivamente, de John Schnobrich , Jakob Owens e charlesdeluvio .
https://m.youtube.com/watch?v=EYA8c0xl1JY
AUTOCRÍTICA PRAGMÁTICA DO ORNITORRINCO
Ora, “a esquerda continuar […] anulando-se enquanto esquerda” não é -necessariamente- má noticia.
Caríssimo Fagner,
Em primeiro lugar, meus parabéns pelo texto! Um assunto definitivamente essencial no período em que vivemos, de remodelação das relações de trabalho.
Permita-me algumas observações, que na verdade são também dúvidas. Como o Passa Palavra e vários comentadores e contribuidores sabem, o que define um trabalhador é aquele cujo tempo de trabalho é controlado por outro(s) (o capitalista), enquanto que o capitalista é aquele que, além de controlar o próprio tempo de trabalho, também controla o tempo de trabalho dos outros (os trabalhadores, no caso).
Pois bem, acho sua observação muito acertada quando você afirma: “O influenciador é, assim, um coinvestidor: se for competente o suficiente para ‘viralizar’ seus vídeos, tornar-se-á sócio do empreendimento, celebridade e garoto-propaganda, e receberá uma parte da mais-valia expropriada pela plataforma digital, que por sua vez receberá uma parte da mais-valia expropriada pelo influenciador, caso seja o empregador de uma equipe de assistentes”. Porém, te pergunto: na sua visão são capitalistas todos aqueles que se utilitzam do youtube ou spotify como fonte de renda (frequentemente pequenos capitalistas)? Me parece que apenas são capitalistas aqueles que empregam o trabalho de outros (leia-se: controlam o tempo de trabalho de outros) para fazer crescer seu canal do youtube, podcast do spotify etc. Por exemplo, são diversos os youtubers que gravam seus vídeos, porém o trabalho de edição, por exemplo, é feito por aqueles que na prática poderiam ser considerados seus funcionários. Mas e se o trabalho, da escrita do roteiro, gravação e edição, é feito 100% pelo dito youtuber, sem que ele controle o tempo de trabalho de ninguém? Não seria esse youtuber um trabalhador, e não um capitalista?
Ora, o Passa Palavra possui um ótimo podcast chamado “A Velha Toupeira” que está disponível em plataformas como o Spotify (imagino que o coletivo PP espere conseguir alguma renda advinda disso como maneira de sustentar as atividades do coletivo?); e se são capitalistas todos os produtores de conteúdo, seria o Passa Palavra também um pequeno capitalista? Aliás, não sei dos fatos, mas imagino que todo o processo, desde a escrita do roteiro até a edição, é feito por membros do próprio coletivo, o que significa que não existe uma relação capitalista do Passa Palavra para com outros, mas da plataforma Spotify (uma empresa capitalista) para com o Passa Palavra (um coletivo composto por trabalhadores). Na minha opinião, isso é muito diferente de um sujeito como Felipe Neto, que, começando como youtuber que só controla seu próprio tempo de trabalho, transformou seu canal numa empresa, aqueles nela trabalhando sendo seus funcionários (isto é, trabalhadores cujo tempo de trabalho é controlado por ele).
Observação: note-se não falei em influencers, que é algo distinto. Via de regra o influencer é um youtuber, usuário do instagram ou do twitter, mas como os influencers em geral começam por essas plataformas, gostaria de saber se, na sua opinião e na do coletivo Passa Palavra, essas minhas observações procedem.
Um abraço fraterno do
Antonio
Caro Antonio de Odilon Brito,
Eu acho que a economia da influência digital cria oportunidades para que, entre os influenciadores, alguns tornem-se capitalistas, passando a controlar tempo de trabalho alheio. Na verdade, quando isso ocorre, verifica-se uma maior profissionalização, a representação do influenciador por um empresário, patrocínios, etc.
Você escreve que “são diversos os youtubers que gravam seus vídeos, porém o trabalho de edição, por exemplo, é feito por aqueles que na prática poderiam ser considerados seus funcionários”. Bom, aí cada caso deve ser analisado separadamente, penso eu. Vamos supor que esse trabalho seja realizado no âmbito da família, ou entre amigos: é possível que as relações familiares, etc., ocultem um processo de exploração do trabalho, com pequenos patrões controlando o tempo de trabalho alheio? Eu acho que sim. E você pergunta: “mas e se o trabalho, da escrita do roteiro, gravação e edição, é feito 100% pelo dito youtuber, sem que ele controle o tempo de trabalho de ninguém?” Bom, aí nesse caso, a meu ver, não se trata de um patrão, nem sequer de um pequeno patrão, mas isso não significa, por outro lado, que ele esteja sendo explorado pela plataforma digital.
Por outro lado, situação muito diferente seria a de um coletivo onde as pessoas concebessem e executassem, como no exemplo que você dá, um podcast, disponibilizando-o em determinada plataforma digital. No caso que estou imaginando, o podcast não seria produzido e divulgado para sustentar economicamente as atividades do coletivo: quando isso se fizesse necessário, os próprios membros do coletivo contribuiriam com o que pudessem. Nem existiria uma relação de exploração entre a plataforma digital e o coletivo, pois o tempo de trabalho dos membros do coletivo, controlado por eles mesmos, não obedeceria a ditames mercadológicos nem nada do tipo.
Espero ter respondido suas questões satisfatoriamente.
Cordialmente,
Fagner Enrique.
Seguindo essa lógica os músicos, atores, pintores, etc também não são trabalhadores. Estou enganado?
Artista igual pedreiro,
Seria preciso analisar caso a caso. Os atores, por exemplo, muitos deles são trabalhadores que recebem um pagamento em troca de trabalho realizado no âmbito de uma empresa, e muitas vezes não têm qualquer controle sobre a concepção do trabalho que executam e têm seu tempo de trabalho controlado por burgueses e gestores. Há atores, por outro lado, que têm o direito de participar da concepção da obra, atuam como coprodutores e recebem, além do pagamento acordado, parte dos lucros obtidos na venda do produto final. Enfim, existe uma diferença entre o proletário, o profissional liberal, o burguês e o gestor. Um ator pode ser um proletário, mas também pode ser uma dessas outras coisas. O mesmo vale, a meu ver, para os outros casos que você menciona.
Então a prática da coparticipação nos lucros – cada vez mais comum nas empresas de tecnologias (mas também em empresas de outros ramos) muitas vezes na esperança de segurar seus funcionários em um cenário de alta mobilidade entre empregos – é o suficiente para indicar a passagem de proletário para profissional liberal, burguês ou gestor? Me parece um quadro deveras simplista e muito pouco material , principalmente considerando por exemplo a composição dos setores de tecnologia.
Programador igual pedreiro,
Não penso que seja a mesma coisa, pois a coparticipação nos lucros que você menciona não passa, na prática, de um dos componentes da remuneração do trabalhador, geralmente pago como contrapartida àqueles que batem metas preestabelecidas pela empresa, etc. O tipo de participação nos lucros que referi em meu último comentário é completamente diferente, figurando em contratos muito distintos daqueles que regem as relações de emprego.
Como se faz um influenciador? Brasil já tem 9 milhões deles (Valor)
https://12ft.io/proxy?q=https%3A%2F%2Fvalor.globo.com%2Feu-e%2Fnoticia%2F2022%2F12%2F02%2Fcomo-se-faz-um-influenciador.ghtml
Brasil alcança marca de 9 milhões de influenciadores digitais (Metro1)
https://www.metro1.com.br/noticias/brasil/131102,brasil-alcanca-marca-de-9-milhoes-de-influenciadores-digitais
Se relaxou pros artistas no “seria preciso analisar caso a caso” tem que fazer o mesmo pros influenciadores. É interessante se notar, por exemplo, que muitos entregadores tem seus canais no youtube, seja pra contar o dia-a-dia em cima da moto, seja pra mostrar suas composições, seu lado humorístico, etc. A maioria não pode nem ser enquadrada pelos estudiosos do marketing da influência como “nanoinfluenciadores” (de mil a 10 mil seguidores), mesmo assim conseguem visibilidade entre os pares, opinando, dando dicas, entretendo, etc. Por vezes ganham uma merréquinha de anúncio que não serve pra muita coisa, mas pode se constituir em um complemento de renda conforme vai atingindo mais gente. A tendência de crescimento é que, quanto mais se cresce no ranking das influências, mais visibilidade se tem. Com mais visibilidade, mais retorno. Com mais retorno, o complemento de renda vai se firmando cada vez mais como renda principal e, quando chega a isso, o cara já não é mais entregador, é um “trabalhador autônomo” do audiovisual de plataforma, por mais que seu conteúdo continue girando em torno do mundo das entregas. Mas basta um pisada fora do limite, e a plataforma pode cortar sua remuneração e bloquear seu canal. De volta ao zero. Há também os casos dos que crescem muito e seus canais se tornam empresas, se tornando patrões ou gestores – mas não tá nem perto de ser o caso da imensa maioria dos influenciadores.
O sonho tendencial da economia dos bicos é a vida em complementos de renda. Ganha uma merréquinha com anuncio de um vídeo em que explica pra novos entregadores da plataforma como solicitar reembolso em caso de acidente (output se tornando input pra força de trabalho das entregas, diga-se de passagem), faz suas entregas 6 vezes na semana, aluga um quarto barato pra gringo no airbnb em uma casa que ele próprio está alugando, …
Me parece faltar para a esquerda hoje, ao contrário dos adeptos da “negação da forma” do trabalho moderno ou do enquadramento deste em formas defasadas, a investigação sobre a multiplicidade de formas do trabalho hoje, suas relações, inter-relações e composições. Não dá pra enquadrar o caso dos influenciadores em 8 ou 80, é necessário se aprofundar nos casos. Influenciador pode ser trabalhador, gestor ou patrão, pode adquirir forma de atividade principal de um sujeito, ou forma de bico.
1. Então o tal do Chavoso da USP (que considero um indivíduo confuso, incoerente e vaidoso) é um patrão?
2. Uma primeira diferença entre o Uber que precisa de plataforma digital para ganhar a vida e o Influenciador que também precisa de uma plataforma digital ganhar a vida, penso eu [ó com licença, com-li-cen-ça, Camarada Fagner], é que o trabalho do segundo é muito mais prestigioso do que o trabalho do primeiro. Uma segunda diferença tem a ver com a apagamento da realidade e o fomento de um corpo social padrão formado por indivíduos profundamente narcisistas enquanto necessidade de manutenção do modo de produção capitalista. Esta é a principal função daqueles que trabalham expondo a si mesmo (uma imagem fabricada de si), na condição de mercadoria, nas plataformas digitais.
3. Já deram uma sapeada no Byung-Chul Han? É bem interessante… Desperta várias reflexões… Ao ler a passagem que transcrevo abaixo pensei em como o like do influenciador é parecido com o ranking de desempenho dos trabalhadores de aplicativos e como em ambos os casos o desempenho é um mecanismo que mascara processos de exploração. O trabalhador objetificado, que transforma a si mesmo em uma mercadora, crê que sua imagem (sua individualidade) é mesmo a imagem de seu desempenho. E só encontra felicidade (só se imagina feliz) quando vê a aparência (que ele mesmo fabricou para si) socialmente validada. O véu da felicidade de um sujeito oscila tal qual uma mercadoria que é bem aceita ou não pelos consumidores.
Transcrevo aqui trechos do livro A SOCIEDADE DO CANSAÇO (a título de sumário: Byung-Chul Han, editora Vozes, 2015) para dar acesso àqueles que não tem acesso ao conteúdo:
“O sujeito de desempenho da modernidade tardia não se submete a nenhum trabalho compulsório. Suas máximas não são obediência, lei e cumprimento do dever, mas liberdade e boa vontade. Do trabalho, espera acima de tudo alcançar prazer [prestígio aos vaidosos?]. Tampouco se trata de seguir o chamado de um outro. Ao contrário, ele ouve a si mesmo. DEVE SER UM EMPREENDEDOR DE SI MESMO. Assim, ele se desvincula da negatividade das ordens do outro. Mas essa liberdade do outro não só lhe proporciona emancipação e libertação. A dialética misteriosa da liberdade transforma essa liberdade em novas coações.” P 83
“A falta de relação com o outro provoca acima de tudo uma crise de gratificação. A gratificação como reconhecimento pressupõe a instancia do outro ou do terceiro. Também Richard Sennet liga a crise da gratificação a perturbação narcisista e à falta de um relacionamento com o outro: Enquanto distúrbio de caráter, o narcisismo é exatamente o oposto do amor-próprio característico. Mergulhar no si mesmo não cria nenhuma gratificação, ele traz dos e sofrimento ao si mesmo.” P 84
“O sentimento de ter alcançado a meta não é “evitado” deliberadamente. Ao contrário, o sentimento de ter alcançado uma meta definitiva jamais se instaura [Dilma é muito sábia]. Não é que o sujeito narcisista não queira chegar a alcançar a meta. Ao contrário, não é capaz de chegar à conclusão. A coação de desempenho força-o a produzir cada vez mais. Assim, jamais alcança um ponto de repouso e gratificação. Vive constantemente num sentimento de carência e de culpa. E visto que, em última instância, está concorrendo consigo mesmo, procura superar a si mesmo até sucumbir. (…) O sujeito do desempenho se realiza na morte. Realizar-se e autodestruir-se, aqui, coincidem.” P 85-86
“O sujeito do desempenho esgotado, depressivo está, de certo modo, desgastado consigo mesmo. Está cansado, esgotado de si mesmo, de lutar consigo mesmo. Totalmente incapaz de sair de si, estar lá fora, de confiar no outro, no mundo, fica se remoendo, o que paradoxalmente acaba levando a autoerosão e ao esvaziamento [isso me lembra muito a metáfora do anel/cinturão de ferro de Hannah Arendt]. Desgasta-se correndo numa roda de hamster que gira cada vez mais rápida ao redor de si mesma. Também os novos meios de comunicação e as técnicas de comunicação estão destruindo cada vez mais a relação com o outro. O MUNDO DIGITAL É POBRE EM ALTERIDADE E EM SUA RESISTÊNCIA. Nos círculos virtuais, o eu pode mover-se praticamente desprovido do “princípio da realidade”, que seria um princípio do outro e da resistência. Ali o eu narcísico encontra-se sobretudo consigo mesmo. A virtualização e digitalização estão levando cada vez mais ao desaparecimento da realidade que nos oferece resistência. (…) O sujeito do desempenho pós-moderno, que dispõe de uma quantidade exagerada de opções, não é capaz de estabelecer ligações intensas.” P 92
“O ego pós-moderno emprega grande parte de sua energia de libido para si mesmo. O restante da libido é distribuído em contatos sempre crescentes e relações superficiais passageiras. (…) A “alegria” que se encontra nas redes sociais de relacionamentos tem sobretudo a função de elevar o sentimento próprio narcísico. Ela forma uma massa de aplausos que dá atenção ao ego exposto ao modo de uma mercadoria.” P 93
“O sujeito de desempenho pós-moderno não está submisso a ninguém. Propriamente falando, não é mais sujeito, uma vez que esse conceito se caracteriza pela submissão (…). Ele se positiva, liberta-se para um PROJETO [O SUJEITO HOJE É APENAS UM PROJETO? Interessante, não?]. A mudança de um sujeito para um projeto, porém, não suprimem as coações. Em lugar da coação estranha, surge a autocoação, que se apresenta como liberdade [a liberdade como autocoação? Humm…]. ESSA EVOLUÇÃO ESTÁ ESTREITAMENTE LIGADA COM AS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO CAPITALISTA. A PARTIR DE UM CERTO NÍVEL DE PRODUÇÃO, A AUTOEXPLORAÇÃO É ESSENCIALMENTE MAIS EFICIENTE, MUITO MAIS PRODUTIVA QUE A EXPLORAÇÃO ESTRANHA, VISTO QUE CAMINHA DE MAIS DADAS COM O SENTIMENTO DA LIBERDADE. A sociedade de desempenho é uma sociedade de autoexploração.” P 101
Discordo, integralmente e sem exceções, de toda a linha argumentativa do artigo. Algumas entre as muitas questões críticas que este artigo me suscitou:
a) O putting-out system importa para a história do desenvolvimento capitalista primariamente enquanto momento do processo de centralização de capital, dos meios de produção e do direcionamento/controle do processo de trabalho nas mãos dos capitalistas. Na economia política da influência digital, por contraste, a centralização de capital já se encontra realizada em proporções muito mais díspares que no putting-out system; a centralização dos meios de produção, idem; e não há direcionamento/controle do processo de produção por parte dos capitalistas envolvidos, porque toda produção de conteúdo digital lhes interessa. São momentos históricos diferentes, onde cada regime de trabalho cumpre “tarefas” diferentes no desenvolvimento do capital. A simples semelhança aparente, mesmo “invertida”, não justifica igualar um regime ao outro.
b) No putting-out system, os artesãos conseguiriam usar as mesmas ferramentas para produzir independentemente do direcionamento dado pelos capitalistas, e tinham um lugar onde vender tais produtos independentemente do monopsônio/oligopsônio que os capitalistas lhes pretendiam impor. Na economia política da influência digital, por contraste, pode-se até produzir algo, mas a transformação do produto em “mercadoria” depende, sem exceção, da infraestrutura de telecomunicações e de informática fornecida por capitalistas: no campo audiovisual, por exemplo, a alternativa a divulgar vídeos fora da internet é gravar em mídias físicas (DVD, pendrives, cartões de memória, etc.) e providenciar sua distribuição — como qualquer um pode imaginar, isso é possível, mas impraticável hoje, e mesmo inviável para a transformação de vídeos em mercadoria.
c) Quando se afirma que os influenciadores “costumam ser donos de outros meios de produção utilizados: um celular, por exemplo”, abstrai-se tal “coinvestimento” da tendência de outsourcing dos meios de produção, em especial daquela conhecida como bring your own device (“traga seu próprio aparelho”, também referenciada pela sigla BYOD), que tem se tornado cada vez mais influente no setor de serviços. Em suma: em vez de fornecer um celular ou um laptop a cada trabalhador, ou de comprar computadores para deixar na sede, empresas têm recorrido cada vez mais a usar os equipamentos dos próprios trabalhadores, sujeitando-os a regras com variados graus de rigidez quanto ao software que se permite usar nos aparelhos, ao acesso às pastas onde ficam os arquivos de trabalho, etc. A diferença: no regime BYOD as regras quanto ao uso do aparelho para o trabalho na empresa são centralizadas, na produção de conteúdo digital não existem diretrizes ou supervisão alheias ao próprio influenciador. Meio de produção, neste contexto, pode incluir certas ferramentas de propriedade jurídica do trabalhador, mas que são postas a funcionar de acordo com o controle do processo de trabalho exercido pela empresa.
d) O contraste com o motorista por aplicativo no que diz respeito ao status é um despautério, porque não é isto o que o motorista produz; por contraste, o reconhecimento público é um dos resultados esperados da produção audiovisual. Se está correta a observação de que a produção audiovisual digital como que democratizou o acesso ao mundo das celebridades pop, por outro lado deve-se reconhecer que a mudança de meios de produção e circulação não afetou o reconhecimento público como um (sub)produto da indústria cultural, do qual se alimenta a indústria do marketing. Na uberização dos transportes, por sua vez, não se inseriu o reconhecimento público como (sub)produto da atividade do deslocamento, porque não é próprio da atividade de deslocar; isto se entende muito facilmente ao se lembrar que, inversamente, não se pode esperar que um influenciador leve alguém de cá para lá, ou que faça entregas, etc., exceto se, além de influenciador, é também motorista, entregador, etc.
e) É outro despautério a argumentação em favor da tese de que “como a visibilidade é toda de quem executa as performances, oculta-se o trabalho de quem organiza o ‘palco’, isto é, o trabalho dos assistentes dos influenciadores e o trabalho de quem mantém em funcionamento a infraestrutura da rede social”. O trabalho de produção audiovisual, e de produção artística em geral, já é assim, exatamente assim, independentemente do meio. Idem para a afirmação de que “[o] influenciador, na verdade, como qualquer celebridade, depende do trabalho de dezenas, às vezes centenas, milhares de trabalhadores”. Estas duas linhas de argumentação, com que se tenta afirmar também nisso a especificidade do “putting-out system invertido”, se baseiam em tornar necessariamente social o trabalho da produção audiovisual, e em robinsonadas todos os outros tipos de trabalho. Só para ficar entre aqueles com quem tem contato imediato, o entregador depende do trabalho do mecânico, do frentista, do estoquista, do restaurante, etc.; idem para o motorista por aplicativo. Se forem pautados aqueles com quem estes trabalhadores não têm contato imediato, como toda a cadeia produtiva dos ramos de energia, eletrônica, telecomunicações e software, a situação fica ainda mais complexa.
f) Ainda em defesa da tese do influenciador como “coinvestidor”, o artigo afirma que “se for competente o suficiente para ‘viralizar’ seus vídeos, tornar-se-á sócio do empreendimento, celebridade e garoto-propaganda, e receberá uma parte da mais-valia expropriada pela plataforma digital, que por sua vez receberá uma parte da mais-valia expropriada pelo influenciador, caso seja o empregador de uma equipe de assistentes; se o influenciador não demonstrar competência, não conseguirá ultrapassar o nível do micro ou nanoempreendedor”. Ora, isto é verdade tanto para o influenciador digital quanto para qualquer trabalho de produção audiovisual. A descrição citada serve tanto para a produção audiovisual mais tradicional quanto para aquela voltada para o digital; se o parâmetro de “sucesso” no digital é o “viralizar”, antes dele o parâmetro eram os prêmios recebidos, eventualmente o retorno de bilheteria (com patrocínios, nem sempre bilheteria é determinante), etc. Nos filmes que entravam no circuito comercial, o papel da plataforma digital era desempenhado pelas distribuidoras; basta trocar “plataforma digital” por “distribuidora”, e trocar “influenciador” por “diretor” ou “produtora”, e o resultado é o mesmo. As plataformas digitais ampliaram o alcance e duração da distribuição, e também baratearam enormemente seus custos; o resto é o mesmo, literalmente o mesmo.
g) Na verdade, mesmo a afirmada falta de direcionamento/controle do processo de produção por parte dos capitalistas envolvidos deve ser entendida cum grano salis, porque existe, sim, um processo relativamente complexo de seleção entre o material publicado, determinado por vários fatores: número de seguidores, os algoritmos de cada rede, etc. A diferença: enquanto nos meios tradicionais de comunicação (People, Caras, etc.) há uma seleção prévia do material a publicar, nos meios digitais a seleção é feita a posteriori, quase sem controle “humano” algum. Essa “falta de controle” sobre os algoritmos envolvidos não permite comunicar com clareza por que o vídeo X teve preferência sobre o vídeo Y, como o faria um editor “humano”, mas indica algumas linhas gerais. Especialistas em marketing digital dizem ter o poder de interpretar os algoritmos e evidenciá-las, mas a interação entre os fatores desse “sistema editorial difuso” mudam sempre, e um vídeo hoje “monetizado” amanhã pode não mais sê-lo, e vice-versa. Na interação entre seleção por inteligência artificial, interpretação dos especialistas em marketing digital e intuição dos produtores opera-se um processo de seleção prévia, por meio do qual dá-se maior preferência a determinado conteúdo em vez de outros. Um exemplo: é comum no Youtube que as “capas” dos vídeos (a imagem que aparece primeiro) os influenciadores apareçam com expressões faciais exageradas (boca muito aberta e olhos esbugalhados, para expressar espanto; sobrancelhas muito franzidas e boca muito apertada, para expressar raiva ou desgosto; etc.). Isso acontece porque há, entre produtores de conteúdo digital, a interpretação de que os algoritmos “classificam melhor” vídeos cujas expressões faciais exageradas de capa permitam à inteligência artificial do Youtube “lê-las melhor”. Ora, se é fato que a inteligência artificial se dá melhor interpretando exageros, não sutilezas, insistir no exagero faz com que entenda como “normal” a expressão exagerada, tornando-se necessário exagerar ainda mais nas expressões de capa, o que retroalimenta este mesmo sistema num loop.
Na minha leitura, em suma, o artigo parte do erro de seus interlocutores iniciais — de que os influenciadores são exclusivamente trabalhadores, independentemente do processo de produção de seu conteúdo audiovisual — para o erro oposto, de que todo influenciador é capitalista, em potencial quando não o é de fato. Entre um e outro extremo existe um universo inteiro que o artigo ignora, justificando tal ignorância quanto ao fenômeno com a afirmação de que “não tem a menor intenção de observá-lo de dentro e de perto”, contentando-se em observá-lo “através do noticiário, observando as pessoas ao redor e conversando com elas”. Com isso, o artigo ignora tanta coisa que seria necessária uma longa série de artigos para suprir tais lapsos. Alguns temas que o artigo ignora:
1) A produção audiovisual em celulares como forma de socialização, especialmente entre mais jovens;
2) Os mecanismos específicos de inserção desta forma de socialização em cadeias de produção de valor, operados por capitalistas que desempenham funções muito diversas em cadeias produtivas até então distintas;
3) O esmaecimento dos limites entre trabalho e lazer neste campo, sintetizado na expressão anglófona playbor (play + labor), que traduzo como “trabalhazer”;
4) O papel específico das produtoras de audiovisual junto a influenciadores de maior impacto, e, inversamente, o papel dos influenciadores que procuram tais agências para aumentar seu impacto.
Qualquer que seja a posição acerca destes temas, não se pode falar do assunto sem alguma reflexão mínima sobre eles.
Costuma-se dizer que não se deve julgar um artigo pelo que nele falta, mas pelo que nele há. Este artigo serve como curioso exemplo de um escrito que se pode criticar, e se deve criticar, tanto pelo que nele falta quanto pelo que nele há. Precisamos avançar muito mais na análise da realidade, “de dentro e de perto” inclusive, até chegarmos a uma crítica do fenômeno dos influenciadores digitais adequada ao que se vê na prática.
O comentário do Manolo deveria ser publicado como artigo pelo Passa Palavra para se contrapor ao que me parecem ser péssimos e rasos argumentos apresentados nesse artigo do Fagner. Acredito que seria um bom pontapé para 1) qualificar o debate público em relação às novas formas de trabalho e 2) um incentivo para a investigação sobre essas mesmas novas formas.