Por Anônimo
Conheci o Guilherme[1] há 6 anos atrás. Era um jovem idealista no sentido positivo do termo, protagonizamos durante aquele ano um movimento incrível em que foram ocupadas pelo menos 80 escolas estaduais em todo o Rio de Janeiro. Ele ficou conhecido como o jovem que foi atirado pela grade do Palácio da Guanabara em mais um dos protestos pela educação. Sua foto sangrando e seu desejo de fazer ainda mais não transpareciam que há meses atrás Guilherme se declarava “bolsonarista”.
Revimo-nos muitas outras vezes naquele ano, para só ficarmos mais próximos no ano seguinte, em que eu e ele passamos para a mesma universidade pública. Como já tínhamos alguma experiência com o movimento estudantil, mas zero paciência para as burocracias estudantis, nos encontramos do mesmo lado da barricada quando houve ocupação para retomar um espaço de direito dos estudantes na universidade. Naquela ocasião, não tínhamos mais entre 16 e 18 anos. Deparar com nossas contradições já estava no nosso horizonte e por isso buscamos refletir, mas cada qual à sua maneira, como participar da militância nesse novo espaço em que estávamos. Ele já compunha uma organização política de viés leninista. Eu, ao contrário, era mais próximo do anarquismo, mas a ideia de me comprometer com juízos categóricos sobre a natureza das nossas práticas me entediava. Por isso, pelo menos naquele ano, eu conversava com todos e “tretava” [gíria brasileira para polemizar] com todos. Com Guilherme, inclusive. Ainda assim, discutíamos propositivamente, em privado, em público, como deve ser. Mas na época grande parte de suas posições, ele diria anos depois, se justificava pelo “centralismo democrático” exigido pela organização. Naquela época ainda discutiríamos muito mais, mas o destino me reuniu com esse “camarada” novamente em meados do fim de 2017.
Participamos de mais uma ocupação juntos, dessa vez mais em acordo do que desacordo do que naquela época. Nesse período vivemos o que poderia ser descrito como a experiência mais ridícula — por falta de termo melhor — possível para um movimento estudantil em torno de uma pauta comum. Pouparei os leitores de detalhes, até porque eles não importam nesse artigo, mas me impressionava que aquele mesmo “camarada” tinha posições contundentes e demonstrava coragem ao defendê-las.
De volta ao movimento estudantil, o comportamento burocrático e pouco prático no ambiente acadêmico ainda nos entediava, e nos conhecemos sob a diretriz da ação direta, custasse o que custasse, por bem ou por mal. Mas entre a ação irresponsável e o “blá blá blá” tem um horizonte de oportunidades de luta possíveis que era ignorado, pela esquerda em geral inclusive. Procuramos naquele ano nos reagrupar sobre perspectivas práticas, o que acabou sendo frustrado porque na leitura desse “camarada” e de outros era preciso construir uma organização política “verdadeiramente revolucionária”. Suas palavras de ordem, suas atitudes, suas intenções, suas leituras… eram todas revolucionárias, mas coletivos desse teor se esquecem que organizações revolucionárias advém de práticas revolucionárias, não com melhores intenções registradas num papel A4. Por isso na época o coletivo punha muito o foco em baboseiras, queriam fazer um programa revolucionário com 10 pessoas, ter as mais belas palavras de ordem contra Bolsonaro, queriam ser verbalmente diferentes de todos os outros, queriam estar no comando de todos os centros acadêmicos, pois isso tornaria possível a luta, e pecavam por aquilo que era mais fundamental, discussão de método de luta.
Rompemos. Dessa vez, em definitivo. Não a amizade, continuamos a nos ver muito. Bebíamos na Lapa, no Baixo Meier, no Morro da Mangueira, fizemos freelas [gíria brasileira para freelancer] juntos. E nossas diferenças também sempre estiveram na ordem do dia.
Isso se interrompeu nos últimos dois anos. Meu “camarada” confirmava que estava apoiando a candidatura do então reitor da universidade a um cargo público, o mesmo contra o qual lutamos tantas e tantas vezes. Tinha se filiado a um partido da ordem, debochava e sabotava os movimentos aos quais já foi aliado. Tomou como dispositivo de luta os acordos de cúpula e entendeu que a luta dos estudantes atrapalhava a pauta… dos estudantes. A mesma história que nos aproximou mostrou um ponto inconciliável entre nós. Quase sempre o vejo, agora, tomando uma cerveja com a pessoa que há poucos anos atrás ele dizia ser “um nojo” de ser humano. Mesmo assim o acaso reuniu estes dois burocratas em potencial. Eu descobriria depois que ofereceram a ele um cargo e uma posição social avantajada no movimento estudantil, isto é, este que ocorre dentro das cúpulas. Ele que estava desempregado na época, e vários amigos seus tinham ido na onda, nem sequer hesitou.
Tantas e tantas vezes tomamos “porrada” juntos. Dividíamos cigarros de qualidade duvidosa dentro e fora dos muros da universidade. Talvez hoje ele fume Hollywood. Uma pena, com dinheiro sujo. Por um lado fico aliviado que não se vendeu por tão pouco, quero acreditar pelo menos que o caráter que ainda lhe resta ainda existe em algum lugar. Mas não é esse caráter ou essa minha esperança metafísica que se depara hoje com a oposição estudantil na universidade, ou com a esperança dos servidores e terceirizados nas lutas de hoje e de amanhã. Você conseguiu, Guilherme, você está enfim do lado dos vencedores. Só não conte comigo.
[1] Guilherme é um pseudônimo.
Existe também um outro perfil de “vencedores”. Os que, sem abandonar a verborragia “esquerdista”, estão retornando (ou adentrando) aos postos estatais com a posse do novo presidente. Talvez também recebendo para fumar Hollywood, ou talvez façam isso de graça ou a um custo irrisório. Fato é que os movimentos sociais são hoje a grande fonte de renovação dos quadros dirigentes do capitalismo. Seja à direita, seja à esquerda.
No Brasil, militância é fonte de renda. Quando não se recebe de imediato, vai-se abrindo caminho para o cargo futuro.