Por Marcelo Tavares de Santanai

Como muitos acadêmicos consideram que já não se faz tanta Ciência pura (Ciência pela Ciência) e que cada vez mais caminhamos para a interdisciplinaridade, é aceitável em alguns momentos iniciarmos uma discussão com algumas premissas não técnicas nem científicas para buscarmos soluções aos problemas da sociedade. Na computação, redes federadas são sistemas computacionais que interagem entre si utilizando protocolos de comunicação e dados em comum de forma descentralizada, onde cada sistema participante da rede costuma ser chamado de , que pode inclusive funcionar como intermediário de comunicação entre outros dois nós. Exemplos de redes federadas conhecidas que estão em uso atualmente são as páginas Web, o sistema de e-mail, a Internet – que é tecnicamente a parte física de equipamentos onde trafegam e ficam armazenados os dados – e a Wikipedia como uma rede federada de informação. O contraponto das redes federadas atualmente são as redes sociais centralizadas e privadas, por exemplo, Facebook, Instagram e Twitter; podemos incluir nessa categoria aplicativos de mensagem como Signal, Telegram e WhatsApp.

Nessas redes sociais acontecem as retenções de nossos dados pessoais, o processamento desses dados para pesquisa, o uso desses dados para fins de lucro e outros fenômenos que motivaram as leis de proteção de dados pessoais. Para além dessas leis, e aqui temos as premissas não técnicas, vemos em menor ou maior grau fenômenos como “bolhas” de (des)informação, nichos de intolerância, seleção cultural controlada pelas regras das empresas detentoras das redes sociais e expropriação de nossa força de trabalho ao informarmos nossas preferências sem que as empresas gastem muito dinheiro com pesquisa; arrisco dizer que ocorrem até mesmo direcionamento das tendências futuras de consumo.

Considerando que esses fenômenos têm cada vez mais demonstrado prejuízo para a própria história da humanidade – vide episódio da invasão do Capitólio nos EUA que acaba de completar um ano – é natural que existam movimentos independentes de resolução desses problemas e que esses evoluam para uma boa usabilidade e viabilidade técnica, e inclusive já ganharam forma e nome: o Fediverseii (de federation universe). O Fediverso, na forma aportuguesada, é um aglomerado de redes federadas independentes que podem ser formadas por nós (no sentido de ponto de entrelaçamento numa rede) mantidos por empresas, comunidades, associações ou pessoas físicas, graças ao uso de softwares livres e protocolos públicos que proporcionam alto grau de transparência técnica e organizacional dessas redes, que podem ser orientadass desde publicação de mensagens curtas a vídeos, considerando uma escala de volume de dados armazenados, e ter diversos formatos como galeria de fotos, microblogging etc.

Dada a recente evasão do Twitter para a rede federada Mastodon, esta será utilizada como exemplo para explicações mais técnicas. A Mastodon é uma das redes federadas participantes no Fediverso e que é composta por muitos nós independentes, sem um controlador principal; você mesmo pode instalar um nó e começar a participar dessa rede. Esses nós usam o protocolo de comunicação ActivityPubiii que é recomendação oficial do W3C – a mesma organização que padroniza as tecnologias abertas da Web – e os softwares livres dos nós dessa rede estão publicados sob licença GNU Affero GPL 3.0, que podemos considerar a licença GPL mais forte em termos de manutenção da liberdade de código-fonte de programas na Internet por não permitir sequer que novas linhas de código fiquem desconhecidas do público dentro de computadores; ainda temos a possibilidade de alguém esquecer de publicar suas mudanças no código-fonte ou até mesmo mentirem sobre isso mas não precisamos entrar em paranoia por esse motivo pois com o uso de protocolos públicos e abertos, softwares livres e muita transparência de regras de funcionamento temos grande auditabilidade desse tipo de rede federada. Os programas para smartphone da Mastodon estão sob licença GNU GPL 3.0, mais adequada pois são para rodar em nossos equipamentos e não um serviço na Internet, e até mesmo os códigos-fonte das páginas Web da rede estão públicosiv.

Ainda usando a Mastodon como exemplo, numa rede federada descentralizada não há um endereço eletrônico principal que todos irão acessar mas podemos nos cadastrar em apenas um que conseguiremos ver e até interagir com conteúdos de outros nós, com algumas diferenças entre eles tais como a forma de moderação de conteúdo. Além disso, se um for encerrar suas atividades é possível migrar usuário e contatos para outro nó, uma espécie de portabilidade, mas não de conteúdo nesse caso conforme informações encontradas; porém, como o ActivityPub é um protocolo público, encontramos soluções para cópia e no caso a Mastodon tem orientações de como pedir nosso próprio conteúdo para downloadv. Podemos considerar esse exemplo como uma ‘rede social pública’ com transparência em alguns aspectos (regras de funcionamento, códigos-fontes de programas e serviços, e licenças de uso) e essa deve ser a tendência de entendimento do conceito de rede federada daqui em diante; torcendo para que as empresas não consigam tomar o conceito para si usando seus poderes financeiros como costumam fazer.

A transparência em si não é uma exclusividade das redes federadas, temos até uma boa discussão nos comentários de Mapa de Segurança Digital (12)vi sobre o uso do Signal, que é um serviço centralizado de mensagens com criptografia ponta-a-ponta e códigos-fontes de seus softwares públicosvii. Se a transparência do Signal é suficiente ou não cabe a cada um decidir, um dos nós da Mastodon no Brasil recomenda o aplicativo para quem desejar fazer comunicação criptografadaviii. Como um grande amigo sociólogo me ensinou tempos atrás podemos, em seu exemplo, ter uma empresa juridicamente registrada nos moldes das leis de um país mas com estatuto socialista, assim, o fato de existir um registro de empresa não significa que a mesma funcione obrigatoriamente de modo verticalizado ou centralizado. Parece-me que um bom caminho é cada vez mais termos consciência do que estamos utilizando para fazermos nossas escolhas, balancear segurança e facilidade de uso, para trazer cada vez mais pessoas para as boas práticas de comunicação e armazenamento de dados, recuperação de incidentes, identificação da transparência de plataformas e sistemas etc. Quem sabe um dia alcançaremos a Web 3.0 na visão dos técnicos ativistas há anos atrás, que é cada pessoa ter seu nó num equipamento sob seu controle e dentro de sua propriedade/casa, com troca de backups criptografados em outros nós de pessoas amigas também em suas propriedades, formando uma Web funcional de pessoas sem depender de empresas; confesso que não tenho discutido muito o assunto por falta de tempo, mas ainda continuo experimentando soluções para isso, tanto de hardware quanto de software.

Particularmente, acredito que as redes federadas públicas vão nos ajudar a ter ambientes, como dizem, menos “tóxicos” e resolver alguns problemas de (des)informação da atualidade, reduzir a seleção cultural e propiciar a evolução da sociedade da informação pelas próprias pessoas, estejam elas organizadas e até registradas em seus países como empresas, desde que exista transparência de funcionamento e serviço. Para finalizar, vale a recomendação de terceiros de buscar uma rede federada que tenha mais afinidade sem ir primeiro nos nós principais, o Fediverse Observerix por ajudar nisso. Segue uma sugestão de quatro semanas para quem desejar participar do Fediverso:

  • Semana 1: repense que tipo de conteúdo gostaria de publicar ou a forma de comunicação que gostaria de ter com amigos e familiares;

  • Semana 2: pesquise na Web quais redes federadas no Fediverso têm conteúdo de teu interesse e busque nós reginais;

  • Semana 3: verifique se as redes federadas desejadas têm aplicativos para computadores e ou smartphones, e se permitem comunicação privada se for de seu interesse;

  • Semana 4: entre na rede federada e faça um uso geral de suas funcionalidades, teste outra se preferir, antes de comunicar seu contato a amigos e familiares;

Àqueles que resolverem migrar sua comunicação ou parte para o Fediverso, nos vemos por lá. Em algum momento voltaremos a falar sobre rede federadas públicas.

Notas

i Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de São Paulo

iv todos os códigos-fontes pode ser encontrados em https://github.com/mastodon

5 COMENTÁRIOS

  1. Excelente texto Marcelo, valeuzão…vamos difundir na íntegra a sua contribuição!!

  2. Marcelo, em quais nós federados você está? Aliás, onde podemos encontrar essas mesmas discussões dentro do Fediverso? Creio que o obstáculo mais visível para permanecer lá é que muita gente ainda continua exclusivamente nas redes convencionais, afinal, o Twitter ainda não desabou.

  3. Há outras questões a discutir sobre estas redes, como a questão da ausência de algorítmos no feed dessas redes e como isso impacta na relação de consumo e produção de informação que nas mídia sociais se tornaram cada vez mais verticalizadas contrastando com a experiência no mastodon que é bem mais horizontal.

  4. Desculpem-me a demora, inicio de ano sempre consome um pouco mais na Educação.

    Alan Fernandes, concordo que o mais difícil é a migração de pessoas das redes convencionais e acho que um dos motivos que elas não entendem o próprio valor de seus dados, se soubessem cobrariam muito mais as empresas e as autoridades. Estou em ayom.media com @marcelotavares, e lá tem uma das minhas iniciativas educacionais: configuração ‘multiseat’ para laboratórios de informática.

    Mastodontico, certamente os algoritmos são uma das questões sobre Fediverso ficar mais interessante a todos, mas acredito que isso tem relação com a obstáculo do volume de usuários. Assim como no movimento do Software Livre, um volume grande de usuários pode levar a maior investimento aberto e transparente no Fediverso, ou seja, até mesmo empresas iriam financiar algoritmos transparentes com licenças livres. Da mesma forma que no Software Livre (onde temos Linux em todas as grandes nuvens corporativas, nos 500 supercomputadores mais potentes do mundo, na International Space Station e em Marte), se nós insistirmos do Fediverso creio que um dia vamos ter uma ambiente aberto, livre, transparente, amigável e muito útil a todos.

  5. Não sei quantos usuários o Xuíter ainda tem, certamente não são poucos, mas desde a compra do Twitter pelo E.Musk o número vem caindo (https://istoedinheiro.com.br/prejuizo-perda-de-valor-menos-usuarios-os-numeros-do-twitter-desde-a-compra-por-musk/), o que tem ajudado a fortalecer redes federadas e descentralizadas como o Mastodon. Segundo Amanda Silberling, o Mastodon já tem 8,7 milhões de usuários, quase o dobro de outra rede descentralizada que nos últimos dias vem fazendo sucesso no Brasil, a BlueSky (https://techcrunch.com/2024/02/14/bluesky-and-mastodon-users-are-having-a-fight-that-could-shape-the-next-generation-of-social-media/).

    É possível que a rede do Musk perca mais usuários se disseminar a cobrança de uma taxa anual (um dólar) para novas contas, medida que começou a adotar em alguns países visando diminuir o número de bots – segundo a empresa as ferramentas de IA não têm conseguindo resolver o problema.

    O texto de Amanda Silberling fala do trabalho de Ryan Barrett com a Bridgy Fed, uma ponte que visa permitir interatividade entre o protocolo “AT Protocol”, desenvolvido pela BlueSky (quando esta ainda era um projeto do Twitter) e o ActivityPub, protocolo da rede Mastodon. Se eu entendi bem o debate relatado no texto, o lado bom será uma interatividade (e alcance) maior no interior de redes federadas, e o lado ruim será o risco de devassamento de postagens feitas no Mastodon, o que talvez seja o dilema de sempre quando o assunto é rede social…

    E a Meta poderia em breve entrar nesse jogo: “Em breve, a aplicação Threads da Meta planeja tornar-se interoperável com redes ActivityPub como a Mastodon. A Flipboard e a Automattic, proprietária do WordPress.com e do Tumblr, também estão a apostar no ActivityPub. Para os utilizadores do Mastodon que pretendem manter-se isolados das redes sociais tradicionais, estas ligações a outras plataformas – em particular ao Threads, que tem 130 milhões de utilizadores ativos – podem representar uma ameaça maior do que uma ponte Bluesky de terceiros.” (traduzido com a versão gratuita do tradutor – DeepL.com)

    O que você pensa disso tudo, Marcelo?

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