Por Manolo

Parece que toquei em algum ponto sensível ao submeter meu artigo “Bestializados?” à publicação pelo Passa Palavra.

Não demorou um dia, e temos um longo comentário, do tamanho de um artigo, assinado por Fagner Enrique. Para ele, eu fiz “uma análise correta […] do que está atualmente em jogo em termos de lutas sociais” na intentona bolsonarista. (Ao contrário do que começa a se formatar nas redes sociais, me recuso a chamar o putsch bolsonarista de Revolta dos Manés. Tenho amigos em Florianópolis, manezinhos da ilha que não merecem ser equiparados a bolsonaristas.) Apesar disso, Fagner Enrique diz que errei “na avaliação de que as medidas que estão sendo tomadas pelo Judiciário não configuram medidas de exceção”.

Este comentário é bastante interessante, porque assume avaliação da atual conjuntura semelhante à de jornalistas como Thaís Oyama, para quem Alexandre de Moraes estaria “pesando a mão” nas medidas repressivas. Diz além disso Thaís Oyama que “é a primeira vez que um magistrado retira um governador do cargo por conta própria”, repetindo a linha de surpresa com o fato de “um oficial não eleito retirar do cargo, sumariamente, um oficial eleito” que, como afirmei em meu artigo anterior, temos visto por aí.

Pensei de imediato no que diria o proverbial canário de Machado de Assis se lhe perguntássemos o que é o Direito e o que é ordenamento jurídico na atual conjuntura: “a norma, a norma pura, é o que é o Direito; fora daí, tudo é ilusão e mentira”. Ao contrário dessas ideias do canário, Direito, esse direito que temos diante de nós, é técnica de exercício de poder e de governo. Ponto. É nos movimentos da relação entre classes sociais antagônicas que o Direito deve ser entendido, porque não é senão uma série de fotografias da correlação de forças em cada momento desta luta. Chamarei a este canário de “canário-de-belchior”, em homenagem ao lugar onde se pôde encontrá-lo pela primeira vez.

Por isso mesmo, não acho de bom tom igualar sem maiores cuidados as posições de Fagner Enrique e Thaís Oyama só porque coincidem num ponto bem preciso. Com certeza observam a questão por pontos de vista distintos. Me pareceu digna de nota, apesar disso, a estanha coincidência de posições entre uma jornalista que publica desde há muitos anos nos principais veículos da imprensa capitalista, adotando posições de “liberalismo social”, e a de um militante anticapitalista que publica há anos textos muito interessantes aqui no Passa Palavra.

Fagner Enrique não está sozinho nesta coincidência. Tem se tornado comum em certos meios militantes avessos ao punitivismo sebastianista o alerta — corretíssimo — de que o punitivismo antibolsonarista não faz mais que reforçar a legitimidade do mesmo Estado que nos atacará no futuro. De que a idolatria dos sebastianistas a Alexandre de Moraes não faz outra coisa além de criar um novo Sérgio Moro, agora à esquerda. Quem segue esta linha age, figurativamente, como canários em minas de carvão. Isto levanta um problema: é por morrer que o canário alerta os mineiros da intoxicação no ar. Não é o destino que espero destes companheiros, real ou figurativamente. Para que os canários não morram, devemos refletir: é possível abordar o reforço do Estado no momento atual sem recorrer a chavões como “autoritarismo”, “medidas de exceção” e outros do tipo? Como fazê-lo?

Ao debater este ponto de crucial importância para o campo em que nos situamos, será preciso perceber em que se igualam e em que se distinguem o canário-de-belchior e o canário-de-mina, como quem diferencia um canário-da-terra e um canário-belga.

O problema, para começar, não é de “legalidade” ou “formalidade”, mas de correlação de forças. O problema não é existirem ou não “medidas de exceção” na atual onda de repressão aos bolsonaristas (que a meu ver não há), mas sim o fato de ser a força do aparato repressivo do Estado a barrar seus intentos golpistas, não a força de ações e mobilizações de trabalhadores. De trabalhadores, quer dizer, dos próprios trabalhadores em presença, não de seus representantes ou substitutos. É na ausência destas ações e mobilizações que o debate sobre “autoritarismo” passa a fazer algum sentido. Este ponto é fundamental. Por ele, distingue-se facilmente um canário-de-belchior de um canário de mina. Por isso mesmo, vale a pena aprofundar a distinção e explicitar o que a constitui.

(Para que fique bem explícito meu ponto de vista: se lá no começo de novembro os primeiros bloqueios nas estradas houvessem sido debelados não pela polícia ou pela sua própria tibieza, mas pelos próprios trabalhadores cujos bens de primeira necessidade começaram a ficar mais caros por causa do golpismo bolsonarista, talvez não estivéssemos aqui discutindo “autoritarismo” ou “medidas de exceção”, mas outros assuntos bem mais interessantes. E no entanto aqui estamos, então segue a vida.)

1.
Primeiro, tratemos do “autoritarismo” e as “medidas de exceção” envolvidas no inquérito das “fake news” (Inquérito STF 4871, aberto pela Portaria GP/STF 69/19).

Basta olhar a portaria que o abriu (tem cópia no processo da ADPF 572) para ver que ele foi aberto pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, para “velar pelas prerrogativas do Tribunal” (Regimento Interno do STF, art. 13, I), dentro do poder de polícia que exerce nas dependências do tribunal (RISTF, art. 42) e com plena autorização regimental (basta reler o art. 43 do RISTF no corpo de meu artigo anterior).

Quais “prerrogativas do Tribunal” estavam ameaçadas? A Portaria GP/STF 69/19 não especifica.

Não estava sob ameaça imediata nenhuma das prerrogativas da magistratura previstas quer no artigo 93 da Constituição Federal, quer no artigo 33 da Lei Orgânica da Magistratura. Havia verdadeiro cerco midiático bolsonarista contra o STF, mas, até onde me lembre, nada nem de longe parecido com o que vimos em Brasília em 8 de janeiro. (Se minha memória estiver me traindo, qualquer ação que vá além do cerco midiático só reforçará meu argumento.)

Além disso, como as notícias falsas (fake news) que geraram o inquérito envolviam crimes contra a honra cometidos pela internet, quem tem competência legal para julgá-los são os juízes do lugar onde a notícia foi publicada. Daí a “enorme latitude hermenêutica”, daí a considerável dose de “boa vontade” a que me refiro: para não precisar investigar, caso a caso, de onde vieram cada uma das publicações mentirosas, Dias Toffoli inverteu as coisas e inventou uma ficção de ubiquidade das ofensas pela internet para dizer que haviam sido cometidas dentro do próprio STF, e assim abriu o inquérito.

Juristas estavam cobertos de razão ao criticar este inquérito, mesmo do estreito ponto de vista das formalidades jurídicas.

Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Nada disso se aplica ao que está sendo movimentado contra os bolsonaristas em seguida à tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro.

As medidas “autoritárias” e “excepcionais” de Alexandre de Moraes se dão em outro inquérito: o Inquérito STF 4879/DF, o “inquérito dos atos antidemocráticos” a que me referi em meu primeiro artigo. Aberto por iniciativa da Procuradoria Geral da República, ele caiu nas mãos de Alexandre de Moraes por sorteio, como deve acontecer com qualquer inquérito ou processo, não por prevenção. (Sorteio: o processo é aberto, e os computadores do STF decidem aleatoriamente nas mãos de quem vai parar o proceso. Prevenção: o processo vai parar nas mãos de quem já está julgando caso envolvendo os mesmos fatos.) Deste inquérito vieram outros, desdobrados.

Onde está a exceção aí? Em lugar algum. Mesuras e salamaleques do processo penal foram seguidos à risca.

Existe ainda outra diferença significativa entre o “inquérito das fake news” e as medidas de repressão à tentativa de golpe de Estado do dia 8 de janeiro.

Veja-se, aqui, o caso da censura a O Antagonista, aquele veículo de notícias tão criterioso em suas ilações, boatos e notícias falsas quanto André Janones. Neste caso, do ponto de vista dos movimentos sociais, havia o que defender, mesmo se tratando de um lixo direitista. Há certa latitude hermenêutica envolvida quando se trata da liberdade de imprensa. No arranjo institucional da democracia capitalista, é preciso haver espaço para que frações dissidentes das classes capitalistas se expressem; esta “brecha” pode — e deve — ser explorada por trabalhadores. É preciso, de igual modo, haver um simulacro de “liberdade de imprensa” para as classes exploradas; quando não para dar-lhe com o Direito o que não se lhes dá nas condições materiais para seu exercício, ao menos para que se saiba onde estão e o que dizem os dissidentes e, assim, melhor cooptá-los ou reprimi-los. É essa “brecha” que aproveitamos aqui, inclusive.

Comparemos a situação com a dos “inquéritos dos atos antidemocráticos”. Do ponto de vista do governo, não há margem para latitude hermenêutica alguma além daquela que permita a mais rápida e eficaz repressão. Se na liberdade de imprensa existe o exercício de meios de dissidência tolerados pelas “regras do jogo”, num golpe de Estado o que se faz é mandar as “regras do jogo” para o inferno e arrebentar com quem discorda. Guardadas as proporções, é como a diferença, numa partida de dominó da praça da Piedade, entre bater as pedras com força no tabuleiro a cada nova jogada, para machucar as pernas dos adversários e assim desconcentrá-los, e derrubar o tabuleiro para acabar com o jogo e puxar briga. Não há margem alguma para discussão neste caso. Quem pensa ser possível que um governo abra mão de defender-se por todos os meios necessários é ainda o canário dentro de sua gaiola, a tomar o mundo pela loja do belchior. Pior ainda se pensa que tachar de “autoritário” quem prende e arrebenta serve para alguma coisa.

Como democracias capitalistas e seus governos lidam com quem derruba o tabuleiro? Com medidas de exceção e legislação de salvaguarda do Estado. A elas se deve dar alguma atenção.

2.
Não é correto dizer que Alexandre de Moraes esteja atuando somente, ou principalmente, por meio de medidas de exceção. Do ponto de vista técnico-jurídico adotado pelo governo, não há “medida de exceção” alguma envolvida. Mesmo se adotarmos o ponto de vista dos canários-de-belchior quanto ao ordenamento jurídico, mesmo interpretando-o de modo muito alargado, mesmo assim não há exceção alguma envolvida.

“Medidas de exceção”, do ponto de vista técnico-jurídico, são aquelas capazes de suspender os direitos e garantias fundamentais. São, classicamente, o estado de defesa — esse mesmo desenhado no rascunho de decreto, totalmente fora dos procedimentos constitucionais, encontrado na casa de Anderson Torres — e o estado de sítio.

Embora certos juristas tenham recomendado a decretação imediata de estado de defesa para lidar com as ameaças golpistas do bolsonarismo, não há até agora qualquer sinal de que Lula ou alguém do seu entorno avançará neste sentido. Pelo contrário: no que depender do presidente, em frontal contraste com a onda frenética de denuncismo antibolsonarista que tomou as redes sociais e com os clamores de seus correligionários para que não haja anistia contra crimes cometidos por bolsonaristas e pelo próprio Bolsonaro nos últimos quatro anos, há múltiplos sinais a indicar que Lula orientará concentrar a repressão somente contra os ditos “vândalos”. Em suma: vão distinguir muito marcadamente entre a “tia do zap” e o conspirador.

Além das medidas de exceção que não foram aplicadas até o momento — que, a se manterem os fatos e tendências atuais, dificilmente serão aplicadas — em qualquer ordenamento jurídico existem leis ordinárias, totalmente integradas à mais perfeita normalidade, que tratam dos chamados “crimes políticos”. Por isolar certos comportamentos daqueles contra os quais se usariam as medidas de exceção caso ocorressem em muito maior escala, os “crimes políticos” dão aos governantes as ferramentas necessárias para defender-se contra quem rompa com as “regras do jogo” na tentativa de tomar o poder. No caso brasileiro, eles estão previstos nos artigos 359-I a 359-U do Código Penal, que tratam dos chamados “crimes contra o Estado democrático de Direito”, que subtituíram e revogaram a extinta Lei de Segurança Nacional (LSN), e na Lei 13.260/2016 (Lei Antiterrorismo).

Durante todo o governo Bolsonaro, a extinção da LSN talvez seja a única modificação legislativa relevante para a atual situação. Resultou de reação contra o uso frequente e amiudado daquele câncer autoritário que era a extinta LSN por Bolsonaro e seus seguidores espalhados por todos os escalões da máquina do Estado. Professores universitários, jornalistas, influenciadores digitais, todos, sem exceção, corriam risco de serem enquadrados na LSN por qualquer guardinha de esquina. Bastava chamar de “genocida” o ex-presidente, ou criticá-lo por qualquer meio. Não faz muito tempo tudo isso, aliás. A extinção da LSN, e sua substituição pelos chamados “crimes contra o Estado democrático de Direito”, foi medida de contenção deste arbítrio. Comparando-se os crimes previstos na extinta LSN com os “crimes contra o Estado democrático de Direito”, aqueles que persistiram tiveram suas penas máximas reduzidas, e os que deixaram de existir já foram em boa hora.

Citei também o art. 43 do Regimento Interno do STF única e tão-somente para reforçar um fato simples: mesmo se não houvesse inquérito aberto, quebrar todo o salão nobre e o plenário do STF é fato mais que suficiente, do ponto de vista do governo, para justificar a abertura de outro inquérito por Rosa Weber, atual presidente do STF. Inquérito que ela poderia mandar abrir de ofício, sem precisar da iniciativa da Procuradoria Geral da República ou de quem quer que seja. Nada de excepcional aqui.

Até o momento, pelo visto, nenhuma medida de exceção está sendo usada. Pelo contrário: para usar um mote sarcástico dos últimos anos, “as instituições estão funcionando”. Funcionam precisamente para o que foram criadas: conter quem se afasta das “regras do jogo”. Os canários-de-belchior, assim, deveriam se mostrar satisfeitos, porque tudo o mais não é senão ilusão e mentira. Por que, então, andam insatisfeitos?

3.
Antes de prosseguir: não há exceção também porque, do ponto de vista do governo, a reação contra a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro com base na legislação de salvaguarda do Estado, nesses inquéritos e nas demais medidas que apontei, está sendo absolutamente proporcional à seriedade da ameaça. Tem sido — vou insistir muito neste ponto — até fraca, se observarmos o que está acontecendo nesses dias.

Veja-se, por exemplo, a tentativa de certos senadores, já no dia 9 de janeiro, de derrubar o veto imposto por Jair Bolsonaro, em 2021, a artigos da lei que instituiu os “crimes contra o Estado democrático de Direito”. Está em jogo na derrubada desses vetos principalmente a previsão de aumento em 50% do tempo de condenação, e perda de patente e graduação, contra militares que cometessem “crime contra o Estado de Direito”. Sobre o assunto, disse a senadora Eliziane Gama: “Esses vetos ainda não foram apreciados pelo Congresso Nacional. Pedi para que a gente possa colocar, em caráter de urgência, esses vetos em votação para que a gente possa derrubar”. Esta posição é semelhante à de outros senadores, não nominados na matéria do G1 onde se noticia esta negociação legislativa, para quem embora os dispositivos tenham sido vetados, a lei que instituiu os “crimes contra o Estado democrático de Direito” e extinguiu a LSN é anterior aos atos de 8 de janeiro; por isso, dizem estes senadores, os trechos vetados por Bolsonaro, se derrubados pelo Congresso, poderiam ser aplicados de imediato para punir militares coniventes com os bolsonaristas que invadiram e depredaram o Congresso, o STF e o Planalto. Se o Congresso avançar neste rumo, é certo que o assunto cairá no colo do STF por violação ao direito constitucional da irretroatividade da lei penal. Parlamentares bolsonaristas atentos à movimentação, aliás, já estão se articulando neste sentido. Digamos que isso passe tanto no Congresso quanto no STF; é “ilegal”, é “inconstitucional”, mas quem poderá parar o ordenamento jurídico de agir em flagrante excepcionalidade neste caso? Ainda mais com tanta comoção em torno do assunto?

Veja-se, ainda, a súbita inversão de posições entre esquerda e direita quanto à Lei Antiterrorismo. Logo em seguida à prisão de cerca de 1.500 militantes bolsonaristas, de uma hora para a outra parlamentares bolsonaristas se transformaram em aguerridos defensores dos direitos humanos, e interpretam a Lei Antiterrorismo para que os presos não sejam enquadrados em seus crimes. E o diabo é que eles estão certos. Lá atrás, em 2016, pressões de movimentos sociais, de ONG ligadas aos direitos humanos e de parlamentares de esquerda resultaram na retirada das expressões “motivação política” e “motivação ideológica” do texto da lei, antevendo seu possível uso indiscriminado contra ocupação de fazendas improdutivas e imóveis abandonados, contra manifestações políticas, etc. Agora, quem se beneficia dessa exclusão são os bolsonaristas, porque a Lei Antiterrorismo só considera como “terroristas” atos movidos “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”, e nenhum desses elementos está presente de imediato nos atos de 8 de janeiro. Com isso, certos parlamentares de esquerda defendem mudanças na lei para dar conta de atos como os de 8 de janeiro, sob o argumento de que em 2016 “o contexto era outro”.

Se o canário não olha para o mundo fora de sua gaiola, certamente não vê nem essas movimentações parlamentares, nem a força que tem tomado, logo em seguida aos atos de 8 de janeiro, o movimento “sem anistia” a que já me referi. Fosse por esse movimento, já viveríamos num tipo de distopia purgatória. Só lhe faltam as acusações de “colaboração horizontal” e o assassinato de reputação em público.

4.
Retomemos o fio da meada: por que os canários-de-belchior andam insatisfeitos, se não há medidas de exceção em curso?

Como adotam o ponto de vista do “liberalismo social”, é normal que canários-de-belchior olhem para o ordenamento jurídico com um viés normativista, formalista, inconscientemente neokantiano. Por este viés, há normas aplicáveis em qualquer tempo e lugar, independentemente da circunstância. As crises políticas mais agudas, que nossos canários-de-belchior tratam como assunto da “política” e não do “Direito”, são momentos privilegiados para que se perceba como as trincas e rachaduras do ordenamento jurídico são calafetadas o tempo inteiro por legisladores, julgadores, intérpretes e executores; são eles o elemento dinâmico desse mesmo ordenamento, que os canários-de-belchior não querem ver.

Aos nossos canários-de-belchior deve-se objetar, além de tudo que já foi dito, um erro factual muito significativo. Há entre eles quem enxergue na decisão que suspendeu por 90 dias o exercício do mandato de governador do Distrito Federal por parte de Ibaneis Rocha somente o uso da Lei Antiterrorismo. No afã de denunciar o “autoritarismo” desses novos tempos, e a persistência das — comprovadas — tendências autoritárias de Alexandre de Moraes, passam reto pelo fato de que a decisão citada não se baseia apenas na Lei Antiterrorismo, mas principalmente nos chamados “crimes contra o Estado democrático de Direito”. Além disso, para imputar a Ibaneis Rocha crime de responsabilidade por omissão, Alexandre de Moraes usou os arts. 101, I, II e IV e 101-A, I, II e IV, da Lei Orgânica do Distrito Federal. Bastaria a Alexandre de Moraes riscar a menção à Lei Antiterrorismo e estaria tudo, como tenho insistido desde sempre, previsto no mais burguês dos Direitos.

É o formalismo dos canários-de-belchior que os levou à tosca equiparação entre os bolsonaristas responsáveis pelos ataques de 8 de janeiro e os adeptos da tática black bloc nas manifestações de junho de 2013. Danem-se as diferenças de espectro político, alvos, organização, idade, profissão, classe social de origem, motivação, capacidade, resultados. Dane-se tudo. Seguem o lema de Fernando I, do Sacro Império Romano-Germânico: Fiat iustitia, et pereat mundus. Em bom português contemporâneo, “faça-se a justiça, e foda-se o mundo”.

Aqui começa a se mostrar frágil a posição de nossos canários-de-belchior. É que não existe “autoritarismo” em abstrato em lugar nenhum, mas sempre exercício de autoridade por uns sujeitos sobre outros. Autoridade, aliás, que se exerce de forma historicamente determinada, por meios historicamente determinados, sob condições historicamente determinadas, para alcançar resultados historicamente determinados.

Canários-de-belchior, de lá dos poleiros de suas gaiolas, costumam começar a piar contra o “autoritarismo” só quando juízes voltam sua autoridade contra frações das classes dominantes. Quando juízes exercem sua autoridade contra trabalhadores — desde as menores decisões judiciais cotidianas até as decisões de mais amplo espectro e repercussão — não há um só pio. Pelo contrário: em decisões como a redução de 30 para 5 anos do prazo para reclamar o FGTS não recolhido (RE 709.212/DF), a normalização jurisprudencial das declarações de incompetência para julgar casos de complementação de aposentadoria (RE 586.453/SE) e a autorização para corte de ponto de servidores públicos em greve (RE 693.456/RJ), o que se ouve nas gaiolas dos canários-de-belchior é a suave cantoria do assentimento feliz. Só assim a autoridade dos juízes está em perfeita consonância com o ordenamento jurídico, mesmo quando não se pode esconder a violação dos salamaleques processuais ou mesmo dos mais fundamentais direitos constitucionais.

É esta a contradição apontada por Fagner Enrique quando acusa o STF, o Judiciário e todas as classes capitalistas de “disfarçar o autoritarismo sob uma capa de legalidade democrática”. Diz ainda que “os capitalistas fazem isso sempre, em maior ou menor medida, entrando em contradição com o ordenamento jurídico e os princípios que eles mesmos ajudaram a conceber, para satisfazerem seus interesses”. É o reconhecimento desta contradição que separa, na atual conjuntura, canários-de-belchior e canários-de-mina. Isso tem consequências importantes.

5.
Concordo com Fagner Enrique: “o verdadeiro objetivo [das medidas de repressão ao golpismo bolsonarista] é tirar os bolsonaristas de circulação, privar-lhes de fontes de recursos, acabar com a capacidade de articulação de diferentes grupos bolsonaristas, destruir o movimento.” Divergimos porque Fagner Enrique considera “de exceção” todas as medidas sobre as quais escrevi até o momento. Necessárias, do ponto de vista do governo, para alcançar tal objetivo, espero a esta altura ter demonstrado como tais medidas são absolutamente normais e corriqueiras no ordenamento jurídico de uma democracia capitalista.

Fagner Enrique, ao defender que se tratam de “medidas de exceção”, diz que “afirmá-lo não significa fazer coro com os bolsonaristas, quando denunciam a ‘ditadura do STF’. Significa constatar um fato, com o qual temos de lidar à nossa maneira.” Concordo com a segunda parte, discordo da primeira. Concordo, porque na política, como aliás na vida, há fatos que se afirmam por sua própria força, gostemos deles ou não. Pouco há a fazer senão reconhecê-los para tomá-los como um dado da realidade e tirar deles conclusões políticas.

Mas o problema não está em rejeitar a denúncia das “medidas de exceção” simplesmente para não “fazer coro com os bolsonaristas”. Fagner Enrique errou o alvo ao tentar argumentar por esta via. Rejeito esta denúncia porque simplesmente não existem “medidas de exceção” na repressão estatal ao golpismo bolsonarista de 8 de janeiro, qualquer que seja o ponto de vista que se adote.

Não há exceção nem contradição na aplicação, pelo governo (entendido como os três poderes componentes do Estado restrito), de medidas plenamente previstas em leis já existentes para lidar com fatos que nelas se enquadram sem precisar de certa “hermenêutica generosa”. Na aplicação dessas medidas não houve nenhuma criação de normas novas retroagindo excepcionalmente para lidar com o golpe de Estado (apesar de haver quem as queira implementar). Não houve qualquer usurpação de competências ou prerrogativas; aliás, um conflito de competências entre ministério da Segurança Pública e Secretaria de Segurança Pública do DF está no centro dos debates em torno da fraca reação inicial à intentona bolsonarista. Não houve supressão, temporária ou permanente, de qualquer dos direitos fundamentais constitucionalmente previstos, quer dos envolvidos, quer da população em geral. Não houve, por parte do governo, qualquer ruptura constitucional. Tudo corre na mais escorreita legalidade, com medidas até brandas para os poderes de que um governo dispõe (como espero ter mostrado em meu artigo anterior, escolheu-se o caminho do menor impacto, e há um xadrez institucional em jogo).

Menos contradição há, ainda, quando as medidas adotadas contam com amplíssimo respaldo entre os pares do próprio STF, entre a maioria do Congresso Nacional, entre a maioria do Executivo (incluindo o presidente, que adotou medida semelhante) e além disso contam com o respaldo de algo entre 98% e 62% de entrevistados em pesquisas recentes (DataFolha e Atlas Intelligence, respectivamente). Acho até estranho, insisto, que as medidas não tenham avançado mais.

É este o fato que constato: as instituições “estão funcionando” na sua mais absoluta normalidade. Sem recurso a medidas de exceção, estão se mostrando plenamente capazes de lidar com a mais séria ameaça à democracia capitalista no Brasil desde o atentado do Riocentro. Permitem, aliás, sofisticada divisão de tarefas, sobre a qual reportagem de O Globo mostra que fui muito inocente em minha avaliação: frente ao curtíssimo intervalo de tempo entre a decretação de intervenção na Secretaria de Segurança do DF por Lula e o afastamento provisório de Ibaneis Rocha do governo do DF por Alexandre de Moraes, supus ter havido uma espécie de “jogo” de “tira bom, tira mau” entre os dois, quando as medidas haviam sido, na verdade, combinadas por telefone.

Aquilo a que assistimos, bestializados, é a continuidade da mais cruenta disputa pela ocupação do Estado restrito. Não é só a disputa pela cabeça do governo pela via das eleições; não é só a disputa pela influência sobre os rumos do governo por meio de ministérios e de políticas públicas; é isso, e também a disputa por cada DAS, por cada CCE, por cada FCPE, porque o acúmulo de DAS, CCE e FCPE são verdadeiro acúmulo de forças dentro da máquina administrativa federal. (Se você, que agora lê esta frase, se considera anticapitalista e não sabe o que é DAS, CCE e FCPE, isto evidencia o tamanho de um problema ao qual me referirei mais à frente.)

A isso se reduz a contradição, apontada por Fagner Enrique, entre “uma democracia reduzida a instituições” e “uma democracia enquanto participação popular”. Porque não sinaliza o que vem a ser a “participação popular” que espera, Fagner Enrique não sinaliza que nas democracias capitalistas essa “participação popular” sempre, desde sempre, foi restrita ao voto. Quando houve “participação popular”, ela precisou ser instituída na marra, pela força da mobilização coletiva de trabalhadores. Aliás, não há “participação” alguma na disputa por DAS, CCE e FCPE, nunca houve e nunca haverá, da mesma forma como nunca houve “participação popular” em reuniões do Conselho de Política Monetária (COPOM) ou da diretoria da Petrobras. Ao menos não com o Estado e com os governantes que temos diante de nós.

Porque não olhou para isso, porque contentou-se com formalidades até mesmo na definição da “participação popular”, Fagner Enrique fez coro com os canários-de-belchior. Não é bom caminho.

6.
Mas gostaria de voltar à afirmação de Fagner Enrique, de que numa democracia capitalista se disfarça “o autoritarismo sob uma capa de legalidade democrática”. Que “os capitalistas fazem isso sempre, em maior ou menor medida, entrando em contradição com o ordenamento jurídico e os princípios que eles mesmos ajudaram a conceber, para satisfazerem seus interesses”.

Esta chave de leitura da conjuntura é fundamental. Mas Fagner Enrique escolheu abordá-la da pior forma: em vez de evidenciar as contradições lá onde elas tem impacto real sobre a percepção dos fatos por trabalhadores, preferiu seguir o canto dos canários-de-belchior e denunciar o “autoritarismo” e as “medidas de exceção”.

Não é difícil ler a realidade a partir de contradições mais significativas, mais impactantes:

a) Por que o efetivo do Batalhão da Guarda Presidencial, presente no momento dos ataques com munição real, não atirou nos bolsonaristas? Além de trágico, teria sido ilegal, todos sabemos. Mesmo assim, todos também sabemos que, fosse outro o perfil dos atacantes, com certeza teriam tomado sabe-se lá quantos “tiros de advertência”.

b) Por que aos cerca de 1.500 detidos entre os dias 8 e 9 de janeiro na Academia Nacional da Polícia Federal foi permitido aguardar triagem de celular em punho, transmitindo notícias falsas ao mundo inteiro? Fosse numa delegacia ou numa central de flagrantes, os celulares teriam sido tomados logo na captura, e os detidos teriam sido espancados até desbloquearem os aparelhos e mostrar seu conteúdo. É ilegal, todo mundo sabe, mas acontece todos os dias na hora do baculejo.

c) Por que a súbita adesão de deputados bolsonaristas à defesa de direitos humanos para seus correligionários detidos? Estenderão eles a mesma solidariedade aos milhares de presidiários país afora, e às suas famílias?

d) Por que a prisão massiva de bolsonaristas apressou a abertura de dois novos blocos no Centro de Detenção Provisória no complexo da Papuda, prontos desde 2021 enquanto a superlotação carcerária na Papuda seguia com o descaso habitual?

A lista prossegue, o espaço falta. Estas contradições reverberam muito fácil. Permitem fazer debates. Explicitam como o discurso jurídico vai para um lado e a prática vai para o outro. Ressaltam, para quem ainda não o tenha percebido, que a Justiça tem lado. Permitem mostrar como o Judiciário é atravessado por desigualdades de cima a baixo. Evidenciam o que é, de fato, a autoridade judicial, como funciona, a quem serve. Põe novamente em contexto o que disse há muitos anos o finado Maurício Tragtenberg: “Nunca vi classe dominante apanhar. Classe dominante bate. Se ela bate em operário é lógico que a classe dominante é outra.”

Aproveitar a oportunidade para escancarar as contradições do Estado que tocam na experiência dos trabalhadores e mostrar como o perfil das pessoas envolvidas na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro condiciona a repressão antibolsonarista a ser muito mais suave que a repressão cotidiana contra trabalhadores: eis como abordar o reforço do Estado no momento atual sem recorrer a chavões como “autoritarismo”, “medidas de exceção” e outros.

Já um juiz “autoritário”… Um “oficial não eleito“ que “retira do cargo, sumariamente, um oficial eleito”… quem se interessa por isso? Os governadores? Os parlamentares? Os prefeitos? É com eles que pretendemos construir alianças e acumular forças? O perfil autoritário de um ministro do STF é, sem sombra de dúvidas, um elemento conjuntural relevante. Deve ser levado em conta a cada passo da militância. Mas é por aí que se deve se deixar interpelar pela realidade, e agitar as contradições? Do ponto de vista que adoto, minha resposta é um sonoro não.

7.
Gostaria de retomar, para terminar, a figura dos canários-de-mina. É aos que se dedicam a alertar sobre os riscos do reforço da militância a um Judiciário “autoritário” — lugar onde situo Fagner Enrique quando não está seduzido pelo canto dos canários-de-belchior — que gostaria de finalizar com uma provocação sincera e honesta.

A repressão estatal ao bolsonarismo não está aí para que nos resumamos a debater truísmos. Não está aí, somente, para que nos divertamos com o enésimo vídeo de bolsonaristas em vertigem. Não está aí para que adiramos à mais nova hashtag antibolsonarista.

Deve servir também para que tiremos lições. Com urgência.

A velocidade e extensão da repressão aos bolsonaristas; seu simplicíssimo enquadramento no ordenamento jurídico já em vigor (sem qualquer recurso a medidas de exceção); a profundidade do apoio às medidas adotadas; estes fatos, dos quais anticapitalistas não deveriam tirar os olhos sequer por um segundo, deveriam evidenciar a enormidade das tarefas que impõem a si próprios.

O “horror” “autoritário” de “um oficial não eleito retirar do cargo, sumariamente, um oficial eleito” não passa nem pelo cheiro do que poderá acontecer quando anticapitalistas arriscarem ultrapassar um só milímetro além do que se avançou em 2013.

É este, não outro, o conjunto de fatos sobre os quais devemos meditar. É com eles que devemos lidar à nossa maneira. O resto é diversionismo.

4 COMENTÁRIOS

  1. Ando pensando o que caracteriza o comportamento de jornalistas como o Gleen Greenwald, Rui Costa Pimenta, que têm apelado frequentemente para “liberdade de expressão” de notórios extremistas de direita e denunciado as “medidas de exceção” dos poderes democráticos, e acho que a provocação do Manolo acerta em cheio ao caracterizá-los de neokantianos, reivindicando um direito que é ahistórico.

  2. Sugestão: os links indicados no texto poderiam – ao clicarmos – ser abertos em outra guia ou aba, sem que a página principal saia do PP.

    obrigado

  3. Todo analista do fascismo clássico que se preze denunciou a passividade interessada, quando não a colaboração entusiasmada dos liberais com seus regimes fascistas. Por outro lado, os libertários de outrora pegaram em armas para combater os fascistas. Enquanto os libertários de hoje chamam “autoritários” os liberais que prendem fascistas, dentro do regime democrático. Com a ilusão de que se tal “autoritarismo” for denunciado pelos anticapitalistas, num futuro em que seja o proletariado a querer fazer a sua revolução, será tratado com mais condescendência… Talvez até acreditem que esses “oprimidos” adoradores de Brilhante Ulstra também prestariam a mesma solidariedade abstrata com revolucionários presos pelo autoritarismo dessa “democracia” (entre “aspas”, que é para demonstrar o quanto ela é falsa). Mas, não interessa, libertários são a favor da “liberdade transcendental”, seja de quem for e em que condições for… Que esses “patriotas” provem um pouco do seu próprio veneno, enquanto observamos, aprendemos e cuidamos dos nossos… Pois, desde que o Estado é Estado, a classe dominante não poupa recursos repressivos institucionais e não institucionais contra os trabalhadores…

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