Por João Bernardo
Nos meios de esquerda cada vez mais se ouve falar de capital fictício, um refrão geralmente acompanhado por outro, a crise estrutural do capitalismo. Mas será que existe, ou mesmo possa existir, um capital fictício? E será que o capitalismo está em crise e, ainda por cima, numa crise estrutural?
O capitalismo é um modo de produção em que as relações sociais são mediadas pela relação com o tempo de trabalho. O que define as relações entre classes no capitalismo não é o fabrico nem a posse e a acumulação de produtos materiais, mas o facto de haver quem detenha o controle sobre o seu próprio tempo de trabalho e sobre o tempo de trabalho alheio ou, pelo contrário, seja desprovido do controle sobre o próprio tempo de trabalho e, portanto, sobre o dos outros. Por isso eu defino o tempo como a substância do capitalismo. A extorsão de mais-valia, que constitui o âmago e o motor do capitalismo, consiste na desigualdade estabelecida na relação entre, por um lado, o tempo de trabalho despendido nos processos produtivos, tendo em conta a intensidade e a complexidade do dispêndio, e, por outro lado, o tempo de trabalho que, através dos respectivos processos de produção, é incorporado nos produtos consumidos pelos trabalhadores, tanto bens materiais como bens e serviços imateriais.
Assim definido — e é assim que deve definir-se — será que é fictício o tempo, não os simples períodos marcados pelo relógio, mas um tempo com uma densidade crescente devida ao aumento da complexidade do trabalho e da intensidade do esforço? E será que o capitalismo se tornou fictício pela desmaterialização que o caracteriza nas suas modalidades tecnológicas mais evoluídas, aquelas em que a informática ocupa um lugar imprescindível nos sistemas produtivos e em que o trabalho virtual assume uma importância cada vez maior?
Ora, um modo de produção cujas relações sociais são mediadas pela relação com o tempo de trabalho exige formas específicas de dinheiro, tão ilusórias ou reais como é ilusória ou real a sociedade capitalista. O dinheiro é indispensável à articulação das relações sociais no capitalismo, e quem o considerar em alguma medida ilusório terá de considerar ilusório também o próprio capitalismo.
Mas o problema é muito mais vasto. Por mais que se recue na história, é difícil encontrar sociedades estáveis e regularmente organizadas em que não tenha existido dinheiro, entendido como qualquer tipo de veículo simbólico destinado a intermediar relações sociais, mesmo que elas não implicassem a troca de bens ou serviços. Aliás, a génese do dinheiro é exterior ao mero quadro dessas transferências, porque o dinheiro teve a sua origem directa em cerimónias de relacionamento social. Só por uma grande ignorância se pode supor que o dinheiro seja característico do capitalismo e que desapareceria no dia em que o capitalismo desaparecesse.
Para entendermos o dinheiro no capitalismo temos de conhecer as múltiplas formas de dinheiro nos sistemas sociais anteriores ao capitalismo. A única história legítima é aquela que, explicitamente ou pelo menos implicitamente, se fundamenta num estudo comparativo. Só por contraste com outras modalidades pecuniárias, próximas ou distantes, tanto no espaço como no tempo, é que o dinheiro no capitalismo deve ser estudado. Nos seus suportes materiais, no seu escopo, na definição dos seus circuitos, nas esferas sociais que abrangia e nos sistemas de inter-relacionamento que veiculava, o conhecimento das formas pré-capitalistas de dinheiro é indispensável para definirmos em que aspectos o dinheiro no capitalismo apresenta inovações e em que aspectos prolonga formas anteriores ou mesmo arcaicas. Quem supuser que o capitalismo levou a presença do dinheiro a um auge nunca antes atingido deverá estudar o kula das Ilhas Trobriand. Aliás, os sistemas pecuniários outrora vigentes nas ilhas do Oceano Pacífico são prenhes de ensinamentos.
E basta mencionar o dinheiro para pressupor o crédito, que sempre surge quando na circulação pecuniária ocorrem dilações temporais, o que não pode deixar de suceder, dada a continuidade das sociedades. Assim, praticamente não existiu dinheiro sem ter existido crédito, e considerar como fictícios os mecanismos do crédito é um resultado da mesma ignorância que considera o dinheiro como ilusório e que reduz o capitalismo ao fabrico de bens palpáveis.
Nem sequer se deve imaginar que o capitalismo esteja a levar o crédito e, portanto, o sistema financeiro a um nível nunca antes alcançado. Pelo contrário, porque as rivalidades desencadeadas no interior dos sistemas arcaicos de troca de presentes (ou troca de dons, se preferirem designá-los assim), originando as formas extremas de potlatch, fazia com que, em cada momento, o volume total de presentes devido à totalidade dos membros de uma dada sociedade ultrapassasse muito o volume efectivamente disponível dos meios materiais usados como suporte pecuniário, tornando obrigatório o crédito e gerando o recurso a meios de pagamento fiduciários. Esta era a regra geral e um exemplo especialmente elucidativo ocorria nas Novas Hébridas, agora chamadas Vanuatu, onde os empréstimos se contraíam e eram pagos num dado tipo de porcos, empregues como dinheiro, e as redes de crédito desenvolveram-se a tal ponto que o número total de animais em dívida era sempre superior à quantidade efectivamente existente. Estes créditos constituíam a preocupação obsessiva de toda a população e tornavam-se no nexo mais forte das relações sociais. Então, seria tudo aquilo tão fictício como o famigerado capital fictício? Nomeadamente, seriam fictícios os porcos das Novas Hébridas?
E porquê fictícios?
Em Outubro de 1956 C. P. Snow publicou um artigo intitulado The Two Cultures, que obteve naquela época uma grande repercussão, embora não nos meios onde seria desejável. O autor lastimava a divergência entre os estudos sociais e os estudos científicos, que fazia com que as pessoas dedicadas aos estudos sociais não vissem nenhum inconveniente em se manter completamente ignorantes quanto às matérias científicas. Decorreram sete décadas e a situação só piorou, tanto mais agora, quando a ecologia serve de quadro para a invenção de novas superstições e quando alguns identitarismos assumem que a ciência é uma emanação do Ocidente e, por isso, detestável, preferindo-lhe os vários ersätze de algumas feitiçarias primitivas. Do desinteresse, passou-se à hostilidade. É nesta crescente divergência entre humanidades e ciência que residem as confusões acerca do fictício.
A pretensa oposição entre real e fictício torna-se impossível de sustentar se for colocada no plano científico. O exemplo mais imediato que me ocorre é o da relatividade restrita a velocidades constantes. Se num dos seus artigos de 1905 Einstein estabeleceu a equivalência entre massa e energia, e se aquilo a que ainda insistimos em chamar matéria é essa massa-energia, será que a massa se tornou fictícia, e a matéria com ela? E quando uma partícula se comporta como onda e uma onda como partícula, será qual a fictícia, ou serão ambas, ou nenhuma? E a energia que surge no vácuo é fictícia ou será fictício o vazio, ou nem uma coisa nem a outra? De um modo ainda mais flagrante, o que sucede àquela realidade aparente que seguramos nas mãos quando o princípio da incerteza, devido a Heinsenberg, esvai as partículas em relações de probabilidade? Serão as partículas fictícias quando não as observamos e tornar-se-ão reais quando as observamos? E se lhes observarmos a posição é fictício o momentum, e inversamente? Schrödinger tentou ultrapassar o problema e manter na mecânica quântica uma noção clássica de realidade e causalidade, mas fracassou tragicamente — tragicamente para ele — quando Max Born usou a função de onda de Schrödinger como medida das probabilidades no indeterminismo quântico. Neste ponto os adeptos dos estudos sociais fariam bem em estudar o caso de David Bohm, um físico de mérito cujas convicções marxistas o levaram a transpor para a mecânica quântica a noção clássica de realidade, incluindo uma causalidade determinista, mediante a tão debatida teoria das variáveis ocultas. Mas afinal as experiências dirigidas por Alain Aspect, e outras subsequentes, puseram de lado a tentativa de Bohm. Inspirar-se no determinismo de Marx para conceber um determinismo quântico foi um ensaio sem êxito. Uma vez mais, como se para isso não tivesse bastado a lição soviética, verificamos que é perniciosa qualquer ambição de condicionar a pesquisa científica por dogmas estabelecidos nos estudos sociais. Perante o universo que a ciência nos abriu, o termo fictício deveria ser usado com muito cuidado, ou mesmo posto de parte.
Qual é, então, a realidade do capital fictício?
O dinheiro é um transmissor de certos tipos de informação e, por isso, deve ser considerado como uma modalidade específica de linguagem. As articulações entre unidades mínimas de som e entre unidades mínimas de significado, critério indispensável para a definição de linguagem, são transpostas no dinheiro para a articulação entre unidades pecuniárias no interior de sistemas pecuniários. Ora, a linguagem, enquanto conjunto de símbolos colectivos e organizados colectivamente, é a condição necessária para a articulação das relações sociais, tanto reais como imaginárias, ou seja, tanto no presente como projectadas no futuro. A linguagem não se limita a narrar, porque tem a capacidade de criar. Se ela servisse só para classificarmos e sistematizarmos o nosso conhecimento do presente não teria havido nenhuma alteração na história das sociedades, que se reduziria à repetição do idêntico, o que mostra que a importância decisiva da linguagem consiste em conceber futuros possíveis e em organizar o modo de os alcançar. A nossa linguagem caracteriza-se pela antecipação, e é exactamente isto que ocorre com o dinheiro, cuja circulação não só permite a durabilidade das relações presentes, mas constitui a ponte para relações futuras, previsíveis ou desejadas. Esta ligação do presente ao futuro cabe aos instrumentos pecuniários usados no crédito, precisamente aqueles que tanta gente nos meios de esquerda considera estultamente como capital fictício. Se fosse fictício, então a função do dinheiro deveria limitar-se a reproduzir o presente e, sem sequer se darem conta, esses professados revolucionários estariam a prescindir do futuro.
Enquanto antecipação do futuro, o crédito equivale à capacidade antecipadora da linguagem e, se ele fosse fictício, então a nossa linguagem sê-lo-ia também. É indispensável entender o que as palavras significam. Quando, por exemplo, se diz de alguém que tem uma fortuna de muitos biliões e que uma catástrofe financeira lhe fez perder não sei quantos biliões, isto refere-se apenas às múltiplas formas de crédito a que essa pessoa pode ou não se candidatar para prosseguir a sua actividade económica. Nada existe ali de fictício, porque não se trata de qualquer realidade material presente e diz estritamente respeito a uma projecção no futuro, como elementos planeados para a execução de um projecto. Então se, tal como o crédito, a linguagem representa em palavras e símbolos não palpáveis uma realidade que se pretende de outra ordem, é preferível que aquela gente que esbraveja contra o capital fictício prescinda da linguagem, ou seja, fique calada. Seria óptimo.
Com efeito, os meios de esquerda onde proliferam as noções de que o dinheiro seria característico do capitalismo e de que existiria um capital fictício adoptam com naturalidade a quimera de uma sociedade sem dinheiro, quando nenhuma sociedade estável e complexa pode prescindir de formas pecuniárias. Se o dinheiro, porém, enquanto transmissor de informações, é uma modalidade de linguagem, então o desejo de abolir o dinheiro equivale ao desejo de abolir a linguagem, de dispensar a sintaxe e mesmo as palavras. E quem considerar que o dinheiro reifica as relações sociais decerto considera também que a linguagem as reifica. Contudo, o processo é inverso e são certas situações e conjunturas que propiciam a reificação, não os elementos linguísticos ou pecuniários em que a reificação se objectiva.
Mas a capacidade antecipadora da linguagem já havia sido dispensada a partir do momento em que o mantra do capital fictício passou a aparecer atrelado ao mito apocalíptico da crise estrutural do capitalismo.
Se correspondesse aos diagnósticos e às previsões, essa pretensa crise estrutural arrastar-se-ia há mais de século e meio, um longo período em que o capitalismo se desenvolveu enormemente e criou novas formas. Um moribundo que dura a vida inteira tem muito tempo de vida. A noção de crise estrutural resulta da transformação da análise séria em esperança religiosa e consiste numa errada interpretação da sucessão e sobreposição de crises sectoriais e regionais, sem as quais o capitalismo não se desenvolve. Aquilo a que Schumpeter chamou destruição criativa ou que Trotsky apelidou de desenvolvimento desigual e combinado consiste precisamente na compreensão de que o capitalismo nunca cresce homogeneamente nem harmoniosamente e só progride mediante a liquidação abrupta e tantas vezes prematura de tecnologias mal elas começam a ser ultrapassadas, lançando assim no desemprego trabalhadores com qualificações tornadas obsoletas e condenando regiões que haviam sido prósperas. Aquilo a que erradamente chamam crise estrutural não é mais do que o processo de desenvolvimento económico específico do capitalismo, ou seja, é o contrário de uma crise, é o movimento de acumulação e expansão do capital. Hoje as implicações do refrão da crise estrutural são mais paradoxais ainda, quando a informática serve de quadro ao aprofundamento da mais-valia e abriu uma época de crescimento do capital cujos limites não somos capazes de prever.
Nestas circunstâncias, falar de capital fictício e de crise estrutural é o mais trágico sintoma da incapacidade da esquerda para proceder à crítica do capitalismo existente e, portanto, da sua incapacidade para intervir nas lutas sociais contemporâneas.
A ilustração de destaque reproduz parte de uma obra de Quentin Matsys (1466-1530)
e no texto reproduzem-se obras de Hans Holbein, o Jovem (c. 1497-1543)
e de Marinus van Reymerswaele (c. 1490-c. 1546).
Para Marx a crise é algo inerente ao capitalismo e uma das formas de crise do capital, particularmente relevante no Capitalismo recente, é a crise financeira, que tem uma relação umbilical com a forma como o Capitalismo atual lida com o crédito e com o capital fictício. Não por acaso praticamente toda a tradição crítica da esquerda, em especial a esquerda bolchevique, tem no conceito de capital fictício um ponto de apoio para toda e qualquer análise de conjuntura e crítica ao sistema capitalista. Por conta disso, eu esperava e espero um tratamento a sério do tema, por parte de um dos maiores intelectuais vivos e expoente de práticas de esquerda não bolcheviques e sim autonomistas, conselhistas etc. Ou seja, é urgente e todos nós queremos saber como a teoria de João Bernardo, com seu enfoque diferenciado daquele da tradição bolchevique, articula a prática dos gestores e o capital fictício, e como sugere que os trabalhadores lidem ou não lidem com o tema em suas lutas (por exemplo, sabemos que o autor considera nefasta a diferenciação entre o capital produtivo, industrial, e o capital especulativo, financeiro, na medida em que essa diferenciação se dá de modo a legitimar e defender capitais nacionais (e “nacionalistas”) menos desenvolvidos (que seriam “produtivos” e “bons” para o país, geradores de emprego, etc., ao contrário do capital financeiro e especulativo, que seria ligado à ganância dos bancos e seria “mau” para o país e para os trabalhadores). Ao operar tal distinção valorativa, esses autores marxistas demonstram incompreensão dos métodos de articulação de capitais do Capitalismo contemporâneo e acabam fornecendo legitimação para o prolongamento de métodos de exploração via mais-valia absoluta, que barram o desenvolvimento econômico e sua concomitante ampliação da complexidade de relações entre capital industrial e capital financeiro etc., que traria como benefício a exploração dos trabalhadores via mais-valia relativa.
Acredito que não falo apenas por mim quando afirmo que esperamos contribuições teóricas que esclareçam – se existe – a diferenciação de abordagem entre a linha bolchevique e a linha conselhista/autonomista acerca do capital fictício, esse conceito que se demonstra tão central e poderoso em análises de toda uma tradição da esquerda anticapitalista. Nesse sentido, quero manifestar minha felicidade em ver João Bernardo adentrando este debate, que certamente renderá muitos frutos no debate e de repente em artigos posteriores, mas não posso deixar de apontar que o texto que inicia o debate tem um tom bastante improdutivo e desestimulante de qualquer diálogo, na medida em que entre um ou outro insight genial acaba por lidar com sarcasmo com temas muito relevantes para a prática e para a teoria anticapitalista, chegando ao ponto de sugerir um silenciamento dos autores que lidam com o tema, sem citar nomes e sem operar qualquer análise imanente de qualquer texto ou abordagem sobre o capital fictício, ou mesmo uma análise concreta acerca do modo como o capital fictício opera ou como aparenta operar no Capitalismo de hoje. Nesse sentido o autor cai em algo análogo ao criticado procedimento de análise por dedução ou profissão de fé daqueles que sem analisar o mundo real ficam vociferando a crise estrutural ao dobrar da esquina. Quem são os interlocutores deste texto? Em meio ao sarcasmo podemos no máximo imaginar um ou outro, o que joga o debate para terrenos inócuos.
O risco, de um ensaio assim constituído, é um debate de surdos, uma mera provocação sem pretensão de avanços teóricos e muito menos organizativos na esquerda anticapitalista, e por isso vou tentar trazer a seguir alguns pontos para reflexão e debate construtivo entre camaradas. Reconheço desde já que é desagradável o tamanho do meu comentário, talvez até maior que o artigo. Pelo desculpas ao autor e aos leitores, mas minha intenção é ver esse debate acontecer, seja comigo, seja com outros leitores, pois considero uma crítica ao conceito de capital fictício algo urgente e sei que João Bernardo é um dos poucos militantes anticapitalistas capazes de levar a termo tal crítica, devido a suas longas pesquisas sobre a categoria dinheiro e pela potencialidade que sua teoria dos gestores carrega.
Vale lembrar que o satirizado conceito de capital fictício está em Marx. Esse capital é chamado de fictício porque rompe e se desprende da relação com a produção real dos trabalhadores, onde o valor é gerado e ampliado, e aqui não importa se tal valor é gerado em serviços ou bens palpáveis, o capital fictício se desliga de todos, e por isso é “fictício”. O capital fictício depende do crédito para se expandir, mas ele não é o crédito, por isso o sarcasmo acerca de presente e futuro não se justifica. Marx define o capital fictício em contraposição ao capital real, mas como algo simultaneamente distinto do capital dinheiro de empréstimo e do capital portador de juros ligado ao crédito bancário.
O capital real, no processo de produção e por meio da exploração da força de trabalho, gera mais-valia que garante sua própria expansão. O capital fictício, pelo contrário, se desenvolve a partir do sistema de crédito e perde a relação com qualquer produção real, portanto não possui substrato real (mas apenas especulativo) para garantir sua própria expansão e lucratividade.
A função produtiva capitalista desempenhada pelo dinheiro, crédito e capital financeiro é mais ou menos a explicada abaixo, na explicação de Maria de Lourdes Rollemberg Mollo, em artigo de 2011 intitulado “Crédito, capital fictício, fragilidade financeira e crises: discussões teóricas, origens e formas de enfrentamento da crise atual”, e já aviso que daqui pra frente nada mais faço que parafrasear e citar trechos deste artigo, na esperança de fomentar o debate com o autor e leitores desse artigo que o Passa Palavra publica em boa hora.
“Quando as funções técnicas do dinheiro, no processo de circulação do capital produtivo, transformam-se em função autônoma de um capital particular, surge o capital financeiro que, ao estruturar-se nos bancos e demais instituições financeiras, permite amplo desenvolvimento do chamado sistema de crédito. Uma soma de valor ou dinheiro, uma vez transformada em força de trabalho e meios de produção, dá origem, no processo de produção, a uma mais-valia. Esse dinheiro que se valoriza passa, então, a ser capital e seu valor de uso, o de gerar capital. Segundo Marx, a “qualidade de capital potencial” do dinheiro permite que ele se torne mercadoria de “gênero peculiar”, o capital portador de juros. Conforme o próprio Marx, “emprestar dessa maneira é, portanto, a forma adequada de ceder valor como capital e não como dinheiro ou mercadoria”. É preciso passar pelo processo de produção para gerar valor e, assim, tornar-se capital, ou seja, dinheiro que se valoriza. “Em seu processo de circulação, o capital nunca é capital e sim, mercadoria ou dinheiro …” (Marx, 1974, p. 397). Com o capital produtor de juros: o dono do dinheiro, para valorizar seu dinheiro como capital, cede-o a terceiro, lança-o na circulação, faz dele a mercadoria capital; capital não só para si, mas também para os outros; é capital para quem o cede e a priori para o cessionário, é valor que possui o valor de uso de obter mais-valia, lucro…. É justamente a valorização do dinheiro nesse processo que permite o pagamento do juro ao cedente, o capitalista financeiro e o lucro de empresário ao que tomou o empréstimo para empregá-lo na produção. O crédito, usado pelo capitalista industrial, potencializa a produção, apressando a reprodução do capital e aumentando sua escala. Permitirá, assim, a geração maior de mais-valia. A utilização de recursos de terceiros possibilita que o capitalista invista em meios de produção e contratação da força de trabalho antes de obter lucro suficiente para financiar com recursos próprios tal investimento. Isso justifica a afirmação de Marx (1972, p. 381) de que “capital produtor de juros só produz juros verdadeiramente na medida em que o dinheiro emprestado é efetivamente convertido em capital e um excedente produzido, do qual o juro é uma parte” Se o dinheiro é empregado na produção e as mercadorias produzidas são vendidas, o crédito é pago e o capital se reproduz em maior escala e ritmo, permitindo que, da mais-valia aumentada, saiam os lucros de empresário e os juros do capital emprestado.”
Já quanto ao capital fictício o cenário é totalmente distinto. Segundo Marx: “primeiro se transforma o dinheiro embolsado em juros e quando se tem os juros se acha em seguida (por cálculo de capitalização) o capital que o produziu” (Marx 1972, p. 464).
E Maria Mollo segue explicando:
O processo de capitalização é descrito por Marx como decorrente do hábito já difundido do uso do crédito, potencializando a produção. Só essa prática social amplamente difundida permite que “toda renda monetária determinada e regular apareça como juro de um capital, derive ela ou não de um capital” (Marx, 1974 p. 534). Assim, toda renda regular é capitalizada à taxa de juros vigente e a soma obtida é considerada capital, mesmo que não tenha sido convertida em meios de produção e força de trabalho, não gerando, portanto, valor novo. A esse não capital, Marx chama de capital fictício.”
Ainda, segundo Marx (1974, p. 534):
Seja de 5% o juro médio anual. Nessas condições, soma de 500 libras renderia anualmente, se transformada em capital produtor de juros, 25 libras esterlinas. Assim, considera-se toda receita fixa anual de 25 libras esterlinas juro de um capital de 500 libras. Todavia, essa ideia é puramente ilusória, excetuado o caso em que a fonte das 25 libras seja diretamente transferível ou assuma forma em que se torne transferível.
Marx define o capital fictício como títulos que têm “movimento próprio”, e que quando “se tornam invendáveis, desfaz-se essa aparência de capital” (Marx, 1974, p. 535). Tratando do tema, Brunhoff lembra que não há como o capital fictício gerar valor novo maior, porque ele não passa pelo processo de exploração, por isso é dito fictício.
Marx associa ainda esse capital aos títulos da dívida pública porque a soma emprestada ao Estado não apenas não existe mais, mas ainda porque ela jamais foi destinada a ser despendida como capital, a ser investida, e seria apenas seu investimento como capital que teria podido fazer dela um valor suscetível de se conservar por si mesmo (Marx, 1972, p. 465). Marx associa, também, o capital fictício às ações que se transformam em mercadorias cujo “valor de mercado se determina diversamente do valor nominal, sem que se altere o valor (embora se modifique a valorização do capital efetivo” (Marx, 1972, p. 467).
Mollo explica que o “crédito, apesar de ser dívida e penhora sobre o futuro, uma vez despendido na produção, permite a obtenção de mais-valia maior, reproduzindo o capital de forma ampliada, o que viabiliza seu pagamento. Diferente é, porém, a valorização de títulos como as ações, quando se distanciam dos valores reais que lhe deram origem e tanto mais quanto se distanciarem deles […]. A perda de relação ocorre porque os valores das ações dependem de expectativas de dividendos capitalizados e lucros provenientes da mera venda a preços maiores das ações sem relação direta com a produção real. O capital fictício é, pois, uma categoria da circulação, um caso claro de autonomia da circulação em que seu valor aparece, cresce ou cai conforme oferta e demanda, sem relação direta com a produção cujos valores-trabalho são gerados. Os valores fictícios ampliam-se com o uso dos valores das ações para caucionar empréstimos ou os chamados derivativos de crédito, ou seja, dívidas derivadas de dívidas. Isso também ocorre com os produtos financeiros compostos de dívidas negociados ao longo do crescimento da bolha imobiliária que desencadeou a crise” (de 2009).
Sobre tais dívidas derivadas de dívidas Marx já falou em “duplicação ou multiplicação do capital bancário” graças às diversas formas em que um mesmo capital ou crédito aparece em mãos diferentes.
Citando Guttmann, Mollo explica que historicamente o desenvolvimento do capital fictício na economia mundial contou,
“na segunda metade dos anos 1980, com os chamados junk bonds, ajudados pela onda de ofertas hostis de compras que opõem os interesses dos acionistas (buscando valorizar suas ações) e diretores. Oposição que levou à imposição da lógica da maximizar o valor de mercado das ações. No final dos anos 1990, a combinação de busca de ganhos com elevados riscos e lançamentos primários de ações, IPO (Initial Public Offering), assim como a revitalização da NASDAQ (National Association of Securities Dealers Automated Quotations) criaram mistura potente para consolidação industrial centrada na internet. Finalmente, em meados de 2000, foi a vez das hipotecas imobiliárias e canais não tradicionais de securitização que inflaram o valor dos ativos financeiros.”
Mollo explica que os ganhos especulativos ocorrem
“quando se espera a valorização dos títulos os quais são embolsados sempre que seus preços sobem. Para que tal valorização ocorra, contudo, é necessário renda maior, proveniente de lucros e salários gerados na produção para sustentar demandas e ampliar, então, preços. O próprio crédito, porém, ampliado e usado de forma a caucionar novas dívidas e compras de ativos financeiros, permitiu que a autonomia entre circulação e produção aumentasse ao longo dos últimos anos.”
Outro ponto que mostra como é urgente entendermos e entendermos bem o modo como o capital fictício opera é o fato de que o processo de reprodução do capital, elástico por natureza, pode ser tensionado ao extremo e a crise econômica adiada pela “demanda fictícia”, criada pela fluidez de pagamentos que o acesso a crédito permite e pela própria produção aumentada (ver Mollo, 1989, p. 127).
Analisando o processo de financeirização das economias, Mollo cita Zerbato (2001), que explica que quanto mais a engenharia financeira é sofisticada, maior é a liquidez e menor parece ser a aposta individual dos aplicadores nos ativos financeiros. Desse modo maior pode ser, então, a divergência entre preços dos títulos e ações e os capitais reais que lhe deram origem.
Chesnais explica que para os aplicadores individuais no mercado financeiro, as compras de títulos e vendas rápidas a preços maiores permitem aliar liquidez e rentabilidade e ampliam o caráter especulativo das operações. Guttmann (2008), contudo, chama atenção para o fato de que, financiadas por crédito, tais operações ampliam muito a rentabilidade esperada.
Na sequência Mollo cita uma questão que deve chamar atenção de João Bernardo, pois toca na prática dos gestores: “Marx analisou, também, a separação entre propriedade e função do capital, ou seja, sua aplicação pelos não proprietários, como potencializadora do crescimento da especulação. Dizia ele: se o sistema de crédito é o propulsor principal da superprodução e da especulação excessiva no comércio, é só porque o processo de reprodução, elástico por natureza, se distende até o limite extremo, o que sucede em virtude de grande parte do capital social ser aplicada por não-proprietários (sic) dele, que empreendem de maneira bem diversa do proprietário que opera considerando, receoso, os limites de seu capital (Marx, 1974, p. 510).
E Mollo conclui:
“A autonomia entre circulação e produção que define o capital fictício, porém, não é mais que relativa. Seus limites encontram-se justamente no processo de geração das rendas que sustentam as compras de ativos. Elas precisam crescer para fornecerem a demanda necessária à manutenção da valorização fictícia do capital. Quando tais rendas (lucros e altos salários provenientes da produção) param de crescer ou crescem pouco, a demanda e o preço dos títulos e ações caem, mostrando todo o seu caráter fictício. Na crise atual, os limites objetivos originam-se de uma produção que cresceu menos do que as finanças. Se os recursos aplicados nos mercados financeiros não voltam para investimento na produção, como ocorreu com o predomínio das operações financeiras sobre as produtivas na chamada financeirização, conforme Chesnais (1996 e 2004) e Epstein (2005), faltarão recursos para, aplicados nos mercados financeiros, manter a valorização dos títulos e os consequentes ganhos fictícios obtidos com eles. Essa foi a razão objetiva para a crise. A propósito disso, diz Marx, interest and rent, which anticipate surplus value pressupose that the general character of reproduction will remain the same. ….Secondly, it is presupposed more over that the specific relations of this mode of production remain the same during a certain period,… Thus the result of production crystallizes into a permanent and therefore prerequisite condition of production that is, it becomes a permanent attribute of the material conditions of production. It is crises that put an end to these apparent independence of the various elements of which the production processes continually counts and which it continually reproduces” (Marx, 1976, p. 518 , grifo nosso).”
Pablo,
Não é uma grande descoberta, a de que as minhas teses sobre o dinheiro são opostas às defendidas por Karl Marx. Desta oposição resulta um dos principais eixos de todo o meu trabalho, como procurei esclarecer num pequeno texto publicado no blog do Translatio Studii (aqui). Aliás, talvez caiba explicar que esse texto foi endereçado a um grupo, constituído em torno do Prof. Mário Jorge da Motta Bastos, que há mais de dois anos vem denodadamente a discutir os três volumes do Poder e Dinheiro, desde o primeiro encontro, em Setembro de 2020 (aqui), até ao encontro mais recente, no final de 2022 (aqui).
As concepções de Marx sobre o dinheiro, se já na sua época eram arcaicas, hoje são peças de museu, e pretender usá-las para analisar a realidade actual equivaleria a colocar a múmia de Ramsés para governar o Egipto.
Nas cinquenta ou sessenta páginas que compõem a quinta parte do Economia dos Conflitos Sociais (aqui) expus com algum detalhe os mecanismos que, na minha perspectiva, geram e regem o dinheiro na economia capitalista. Curiosamente, embora seja essa a minha obra com maior número de citações académicas, a maioria dos leitores não se interessou pelas páginas sobre o dinheiro. É que na extrema-esquerda o dinheiro é como a arte, tem má reputação.
Depois, neste site procurei desenvolver alguns aspectos do dinheiro que abordara no Economia dos Conflitos Sociais, nomeadamente aqui e aqui, e também aqui.
Quanto ao estilo deste breve manifesto, ele depende do objecto e, se o objecto for ridículo, como sucede com o tal capital fictício, o estilo não pode deixar de ser sarcástico.
Eu achei que depois desse comentário do Pablo o JB fosse apresentar finalmente sua crítica ao capital fictício. Ao contrário, o autor preferiu se manter no modo Tim Maia fase racional (melhor fase do cara, diga-se de passagem).
“Por isso eu defino o tempo como a substância do capitalismo.” Ninguém consegue entender a crítica do JB porque simplesmente não entendem isso. É o tempo a substância. Isso o diferencia do Marx e muda todo o arcabouço crítico sobre a realidade capitalista. É “substancial” ler o texto levando isso em consideração para entender a crítica que ele empreendeu sobre o capital ficticio. Enquanto não lerem o JB de acordo com os conceitos/as categorias que ele utiliza para desvendar nossa realidade (e não os/as de Marx) a análise de seus textos ficará relegada a comentários como os anteriores. Falar que não existe crítica – ou que ela não está dada de maneira inteligível – é triste de ler.
O tempo como substância do Capitalismo é algo de Marx. JB tem o mérito de ter feito uma leitura adequada dessa questão em Marx, mas isso é Marx. O texto não faz uma crítica ao capital fictício, nem enquanto conceito, nem enquanto categoria que opera na realidade capitalista. O máximo que faz é pontuar em nível alto de abstração que o conceito de capital fictício é ridículo e que convém descartá-lo em prol da interpretação do papel do tempo e do controle e manejo do tempo no Capitalismo, seja do tempo de trabalho, seja do tempo de realização do valor, o que levaria à questão não abordada da aceleração da rotação do capital via modalidades de crédito. Esse foco assimilando crédito e capital fictício (que não são a mesma coisa) e a questão de como opera hoje a categoria dinheiro (que Marx aborda de modo bastante precário, mesmo para o século XIX, e que seria este conceito arcaico de dinheiro que estaria subjacente ao conceito de capital fictício) não serve como crítica ao conceito de capital fictício, pois o capital fictício tem muitas particularidades e formas de ser que teriam que ser deslindadas. Ao relacionar capital fictício com esse enfoque no tempo como substância do capitalismo o texto de JB pode até ser lido como trazendo bases metodológicas para a crítica do capital fictício, mas não mais que isso, e não creio que JB pretende ou considera que um ensaio como esse seja uma crítica ao conceito e sim uma provocação aos que o usam de maneira acrítica. É como se JB dissesse: vocês se apegam a esse conceito porque estão presos ao século XIX e não entenderam como o Capitalismo funciona. E JB pode estar certo. Mas devido ao peso do capital fictício no Capitalismo contemporâneo (e nas análises desse Capitalismo) é preciso uma crítica e não apenas um descarte do conceito ou mesmo a indicação de caminhos para uma crítica. Até porque grande parte da esquerda tem uma relação bastante complicada com o Estado, e foca grande parte de sua energia na crítica da relação entre o fundo público e, justamente, ele, o capital fictício. Uma crítica que consiga se mostrar capaz de desmontar o conceito de capital fictício faria uma revolução, hoje, nas análises e práticas da esquerda. E não é dizendo que o tempo é a substância do capital que se vai diminuir o impacto do capital fictício nas operações capitalistas ou nas críticas e análises de conjuntura da esquerda.
O texto articula capital fictício com a questão das crises capitalistas. Sabemos que as chamadas bolhas financeiras são sintomas agudos de crise econômica, mas não podemos esquecer que são, também, ensaios que preparam a saída da crise por meio da desvalorização de um capital supervalorizado, o que na prática significa a bancarrota de empresas e o aumento do desemprego. A crise econômica é, portanto, parte saudável do sistema, por mais paradoxal e esquisito que isso pareça. As bolhas financeiras de capital especulativo ocorrem devido ao excesso de capital acumulado e sem vetores rentáveis de investimento produtivo. Não tendo para onde correr, e não podendo ficar parado, entesourado, sob pena de se desvalorizar e deixar de ser capital (pois capital é o valor em processo de valorização), o capital superacumulado passa a ser empregado em investimentos especulativos e toda a gama de modalidades de valorização do capital portador de juros, aquele que cresce sem precisar passar pelo circuito produtivo, ou seja, como D – D’, dinheiro que resulta em dinheiro acrescido. Trata-se, nalguns casos, de capital fictício, dinheiro que assume a forma de crédito ou de derivativos de crédito e que pode, do ponto de vista lógico, crescer até o infinito – daí a analogia com uma bolha, já que quando a crise explode ele é pulverizado e se mostra enquanto riqueza fictícia, papel sem valor, riqueza que aparentava existir mas que não tinha correspondência na criação de valor por meio dos processos de exploração dos trabalhadores. Identificar capital fictício e crédito não convém porque o crédito e o capital financeiro são essenciais aos processo de produção em larga escala. Os bancos e o crédito não são um bicho papão que só traz negatividades para o sistema, pelo contrário. O crédito cumpre funções importantíssimas de equilibrar o preço da moeda e apenas ele é capaz de dar uma resposta às necessidades de investimento em magnitudes e momentos de escassez de divisas, de modo que permite investimentos produtivos reais e, assim, o crescimento econômico na amplitude e organização necessária. Nestes casos o capital do crédito não é fictício e atua eficazmente no processo de valorização do valor. Outro momento em que o crédito cumpre função real na economia é quando é usado para financiar o consumo e, portanto, possibilita a monetarização dos consumidores e a realização do valor. Por outro lado, quando o crédito aumenta exponencialmente e não encontra saídas de investimento produtivo, de modo que a produção e consumo estejam ambos lastreados em capacidades de compra via inchaço do crédito e, portanto, em algo “imaterial”, temos a formação da bolha especulativa e, no limite, a eclosão de alguma das várias modalidades de crise (superacumulação, subconsumo, superprodução etc).
Os dois principais veículos de formação de capital fictício são a dívida pública e o mercado de ações. Com o aumento da composição orgânica do capital, inerente ao desenvolvimento das forças produtivas, o capital passa a encontrar algumas dificuldades de manutenção do ritmo do processo de expansão e acumulação e, dada a superacumulação, passa a atuar em vias lucrativas alternativas, tal como o mercado de ações. Isso se dá também com as empresas de controle estatal. É importante salientar que o Estado, por meio do fundo público e da dívida pública, atua de modo a garantir a lucratividade dos setores estratégicos do capitalismo (além daqueles setores atrelados aos governantes desde o financiamento eleitoral e com poder de pressionar o Estado via lobistas etc.). É por ter isso claro que parcela da esquerda foca na crítica do capital fictício enquanto instrumento de sucção do valor, lutando pela destinação deste valor não aos títulos e demais formas de ser do capital fictício e sim em serviços públicos etc capitaneados pelo Estado. Quando o Estado enfrenta uma crise fiscal e deixa de ter poder de manejamento da dívida pública, quando o mercado de ações entra em crise, enfim, quando o conjunto de elementos do sistema capitalista dão sinais de colapso, por conta da instabilidade inerente ao sistema, a especulação e a centralidade da esfera financeira aparecem enquanto “fuga para a frente”, no sentido de que não se trata de uma solução para as contradições do capital, mas tão somente do deslocamento temporal destas. Nesse sentido, além de estar ligado à operacionalidade das megaoperações capitalistas de hoje e às questões relativas ao planejamento econômico do Estado e empresas, o ganho de expressividade do capital financeiro e especulativo também aparece tanto como sintoma quanto como solução temporária para as crises econômicas. João Bernardo toca neste tema, mas me parece necessário destrinchar e demonstrar se o que é comumente chamado de capital fictício é tão somente um meio natural de desenvolvimento ampliado do capital (portanto sinal de força e vitalidade do sistema) ou se apresenta peculiaridades que sinalizam uma crise do sistema.
A volatilização do Capital Ficticio
Para compreender e debater sobre o Capital Fictício é obrigatório recorrer a exemplos concretos.
Caso contrário não apenas o assunto se torna quase indecifrável, como também se acirram as chamas da fogueira da vaidade e do sarcasmo – estes conhecidos sintomas da síndrome do “gênio incompreendido”.
O melhor exemplo de Capital Fictício é a mal denominada “Dívida” Pública, em especial no caso brasileiro.
Parte expressiva dela é constituída de operações overnight, as quais atingem atualmente cerca de R$ 2 trilhões.
São aplicações efetuadas após o fechamento do mercado e resgatadas no dia seguinte, antes da abertura. Portanto com liquidez total, garantidas pelo Estado e remuneradas (quase sempre) pela maior taxa de juros reais do mundo.
Por outro lado, como não fica indisponível para o investidor sequer por um único dia, não há como o devedor (o Estado brasileiro) utilizar o recurso: nenhum emprego é gerado, nada se produz, não redunda tampouco em qualquer melhoria de serviços para a população em geral.
Com efeito na aparência o Capital está reproduzindio a si mesmo (D-D’), sem se materializar na forma de mercadoria (D-M-D’).
Todavia a contabilidade precisa ser equacionada. Então se desfaz a ficção do Capital se ampliar independente da mais-valia.
A remuneração do overnight advém de uma carga tributária altamente regressiva, quanto menos se ganha mais imposto se paga.
Não há banquete grátis: são os trabalhadores e os pobres que pagam a conta, através de um processo financeiro de transferência de renda e apropriação de patrimônio.
O Capital Fictício é também o Capitalismo retornando à sua origem de acumulação primitiva, numa inequívoca prova de sua senilidade e incapacidade de produção de novo valor.
Além disto, como jamais se materializa diretamente em relações de produção, o Capital Fictício se reduz a mero registro escritural. Não passando de um dado digital, sendo exato por isto apenas “fictício”.
Em algum momento a ficção acaba colidindo com a intransponível realidade. E as crises recorrentes do Capitalismo se tornam mais e mais brutais.
Para se criar um novo ciclo de acumulação, uma imensa quantidade de forças produtivas precisa ser destruída, inclusive Capital Variável (nós, a classe trabalhadora).
O último exemplo histórico foi a II Guerra, quando enfim a Crise de 1929 foi superada.
Hoje vivemos ainda sob os efeitos da Crise de 2008, para cuja superação se impõe uma nova guerra global. Não bastam para isto as guerras localizadas, que nunca cessaram.
Como ocorrer uma guerra generalizada sem rapidamente escalar para o nível nuclear?
Eis a questão para o Capitalismo em sua crise terminal. Desta vez será preciso destruir tudo, sendo a Ucrânia só um dos pontos de ignição.
Ainda assim tem gente insistindo em permanecer cego para tamanho impasse. Talvez recuperem a visão quando expostos ao brilho de mil sóis.
Leitura Empática acertou no nó da questão. Por isso eu iniciei este breve manifesto com a questão do tempo. Mas não se trata de um tempo newtoniano, absoluto, «os simples períodos marcados pelo relógio». Aquele tempo que constitui a substância do capitalismo é um tempo plástico, que se aprofunda à medida que os trabalhadores adquirem novas qualificações para lidar com novas tecnologias. Definem-se assim os sucessivos patamares da mais-valia relativa, e em cada um desses patamares as pressões da produtividade levam a um aumento da intensidade do trabalho, cada tipo de qualificações admitindo tipos específicos de intensidade. Este conjunto formado pelo aumento de qualificações e pelo aumento da intensidade leva a um aumento da complexidade do trabalho, e é o aumento da complexidade que provoca o aprofundamento do tempo. No mesmo período, se medido pelo relógio, o tempo torna-se mais denso (aumento da intensidade) e mais profundo (aumento da complexidade).
Trata-se, portanto, de um tempo incompreensível nas noções newtonianas, anteriores a 1905, que vigoravam na época de Marx. Por isso eu apresentei uma pequena lista de resultados a que chegou a física do século XX e que serve — ou deveria servir, a quem saiba ler — para mostrar que deixou de ser válida a noção de matéria prevalecente no iluminismo.
Ora, foi essa noção de matéria que Marx herdou e que o inspirou no seu tratamento do dinheiro, levando-o a defender, em pleno capitalismo, noções pecuniárias mercantilistas. E se a tentativa de utilizar para o capitalismo a noção mercantilista de dinheiro já era antiquada na época de Marx, hoje ela é simplesmente ridícula. Reside aqui a minha crítica ao tal capital fictício. Na minha nota anterior remeti para um texto publicado no blog do Translatio Studii, onde escrevi que «ao considerar John Law como um burlão, em vez de um visionário, e basta este exemplo, Marx comprometeu toda a análise do dinheiro». É hilariante que os adeptos do capital fictício continuem a fazer o mesmo agora. Estudem John Law e Jacques Necker, em seguida os saint-simonianos e por aí adiante até hoje, e se o tal capital é fictício, então o capitalismo é fictício também, o que corresponde a dizer que nada disso é fictício.
Aqui acrescento algo que me esqueci de mencionar no meu anterior comentário. Num brevíssimo capítulo do Democracia Totalitária (aqui), págs. 139-142, procurei mostrar como o dinheiro electrónico se adequou às novas formas de exploração da classe trabalhadora.
Mas, continuando, a minha crítica à noção de capital fictício não se limita a situar as teses de Marx no decurso do tempo, mas também na ampliação do espaço. Por isso, naquele meu curto manifesto evoquei mecanismos pecuniários revelados pela história económica e pela antropologia económica e que eram ignorados na Europa na época de Marx. Para facilitar a vida ao leitor, mencionei duas pistas de leitura, o kula das Ilhas Trobriand e o crédito em porcos-dinheiro nas Novas Hébridas. Com estes dois exemplos é toda uma nova perspectiva sobre o dinheiro a abrir-se.
Qual quê! Foi como se não tivesse dito nada.
O novo comentário de Pablo é uma prova. No seu afã de escrever, Pablo esqueceu-se de ler. Mas esse comentário tem a utilidade de resumir muito daquilo que eu tenho criticado ao longo de toda a minha obra. Infelizmente, sou incapaz de resumir aqui os cinquenta e sete anos de escrita que são a minha resposta ao comentário de Pablo e a todo esse tipo de noções.
E, é claro, a noção de capital fictício traz atrelada a expectativa apocalíptica da grande crise terminal. Houve uma época em que as esperanças da esquerda residiam na grande revolução, de pé oh vítimas da fome, povos de todo o mundo uni-vos, bandeiras ao vento. Mas agora a esquerda desistiu. Já não são os trabalhadores a destruir o capitalismo, será ele a destruir-se a si mesmo, o que é muito mais confortável, poupa-nos o trabalho. A emancipação dos trabalhadores foi substituída pelo hara-kiri do capitalismo.
Para concluir, a síntese de tudo o que eu penso sobre este assunto resume-se à noção do dinheiro como uma modalidade de linguagem, um veículo de informação, sendo, como toda a linguagem, uma condição necessária para a articulação das relações sociais. É daqui que deve partir quem quiser entender o que está contido naquele meu brevíssimo manifesto.
CAPITAL & CAPITULAÇÃO
JB: “… a síntese de tudo o que eu penso sobre este assunto [capital fictício etc] resume-se à noção do dinheiro como uma modalidade de linguagem, um veículo de informação, sendo, como toda a linguagem, uma condição necessária para a articulação das relações sociais.”
MOIMEICHEGO: JB atravessou o Rubicão…
João,
Já havia lido todos os links que vc passou, na época de publicação de cada. Já li e sou simpático a praticamente tudo que o Sr. escreveu nesses mais de 50 anos, incluindo textos inéditos que recebi em nossos diálogos ao longo dos anos. Conheço o caso do Kula e concordo com a noção do dinheiro como uma modalidade de linguagem, tendo inclusive ido ler Benveniste para entender melhor a questão. Concordo ainda com a grande maioria de suas críticas ao Marx. E no entanto escrevi os dois comentários acima e não tenho a mínima ideia de como relacionar ou usar sua obra para criticar o capital fictício e seus adeptos. Pelo contrário, como o Sr. reforça o aspecto de que capital é uma relação social, por exemplo no livro “Capital, Sindicato, Gestores”, me parece mais claro o caráter fictício do capital fictício, em uma perspectiva autonomista. Se olhar o dinheiro como linguagem muda tudo isso, ótimo, mas eu não entendi como, e imagine então quem não conhece sua obra.
Quando nos colocamos a ler um texto nesse sitio, principalmente quando o título do texto é tão sugestivo, esperamos que o autor dialogue mais com autores que utilizem tal conceito – dos quais caçoou – e expresse de forma mais clara os pontos de discordância fundamentais. A não ser que se queira brincar de enigmas, nesse caso caberá aos leitores embarcarem ou não nessa aventura pra tentar entender o que disse o autor mesmo não dizendo. Dessa forma eu me coloco ao lado dos que sentiram a falta da crítica direta ao objeto ‘capital fictício’.
Ao analisar uma das partes deste objeto – nesse caso a adjetivação – João ignora o objeto por completo. Ou seja, não adianta debater a forma se ‘fictício’ está empregue na nomeação dessa forma. E é exatamente na discordância com o uso de ‘fictício’ que João apresenta um panorama interessante, que dá a entender melhor a sua estrutura de raciocínio sobre os sistemas de crédito e o funcionamento do capital especulativo: é a escalabilidade do sistema econômico, não a nível espacial (embora haja) mas a nível temporal.
Com o advento da computação e das novas tecnologias de informação, a especulação alcança limites inimagináveis, distorcendo ainda mais as condições espaciais e temporais com a transformação de tudo que existe em seu correspondente virtual. Daí podemos ampliar o objeto de análise e suas consequencias atuais. O virtual não é mais fictício, é hiper-real: em geral, constituído dos metadados dos objetos reais, seja nos ciclos de rastreio de mercadorias através das redes blockchain, seja na criação de criptomoedas que, a princípio sem lastro, adquirem lastro na confiança depositada pelos especuladores/participantes da rede blockchain, um lastro sensível e volúvel, mas uma espécie de lastro ainda assim.
O texto é interessante para levantar questões em torno do conceito de fictício e as consequências de sua adoção, mas em nada trata – diretamente – do objeto chamado (erroneamente, na visão do autor) ‘capital fictício’, e o estilo de escrita peculiar do João, de chamar a galera pra porrada mesmo não deixando bem claro quem, só aumenta mais a curiosidade de nós, leitores. Se o presente texto fosse apenas o ponto de partida de algo maior, seria mais interessante. Mas o autor se satisfez em terminar aí, no ponto de início. Com esse título seguido do conteúdo que não busca de forma alguma destrinchar de fato o conceito e os autores que o utilizam, apenas se limitando ao esculacho e à zoeira, o texto cheira a clickbait e, infelizmente, esperávamos mais do que isso vindo de um autor do porte do João.
Peço licença para mais uma intervenção em tom improdutivo.
É comum neste site, entre os comentadores, avaliar os textos não pelo que dizem ou querem dizer mas pelo que deixaram de dizer ou não quiseram dizer. Além disso, não raro os leitores pretendem que o autor preencha uma lacuna – real ou ilusória – que eles gostariam de ver preenchida mas não querem se dar ao trabalho de preencher. Passam da crítica à terceirização das relações de trabalho para a tentativa de terceirizar o trabalho intelectual.
O conceito de capital fictício – que uns vieram aqui defender abertamente, enquanto outros vieram defender que seja criticado, mas não querem eles mesmos empreender o esforço, ou vieram defender de maneira velada, fazendo demagogia – , assenta na noção de especulação e reprodução do capital não intermediada pela materialização em mercadoria, como um deles tão bem expressou. Mas como as pessoas não querem ler o que está escrito, e sim aquilo que gostariam que estivesse escrito, ou que gostariam de escrever mas não escreverão, ignoraram a indicação expressa, pelo autor, de que essa noção é errônea e ultrapassada, porque a materialização esperada é típica da mecânica clássica, que a ciência e próprio capitalismo já ultrapassaram.
Ou é pura desonestidade mesmo…
Mas, enfim, derrotado, um deles escreveu – e eu teria vergonha de tê-lo escrito – que conhece a obra do autor, mas não sabe usá-la para o fim desejado e, no fundo, pelo menos nesse ponto, não a entendeu. Talvez por isso não escreva o tratado que tem em mente, já projetado num de seus longos comentários, cuja publicação talvez fosse muito bem-vinda neste ou noutros espaços, mas que não será escrito, porque espera que outra pessoa o faça.
Estranho. A minha sensação é oposta “àqueles que sentiram a falta da crítica direta ao objeto ‘capital fictício’”. Não consigo vislumbrar em que parte o autor não foi direto ao ponto. A sensação é que não devem ter lido, por exemplo, a partir do “Qual é, então, a realidade do capital fictício?”. Não sei como o autor poderia ser mais direto e claro.
Concordo com Polese e Lanord. Esse texto de JB só pode ser lido como um pontapé inicial, já que carente de aprofundamentos.
Talvez, se Polese – com as devidas adequações – transformasse seu comentário em ensaio, tivéssemos o início de um debate mais qualificado.
Como leitor do PP há tempos, acho triste esse clima de Fla x Flu que alguns trazem, sem discutir uma ideia sequer.
O tempo como substância do capitalismo é de Marx? Mas só acessoriamente. Às vezes lá está, outras vezes não. O Capital começa com um tratado a respeito da mercadoria; a mais-valia aparece só depois. Dirão que é o método de exposição do Marx, que eu certamente não o li direito. Mas a reificação desse método está flagrante na obrigatoriedade de se considerar tudo uma mercadoria – incluído aí o dinheiro.
O Economia dos conflitos sociais dispensa esse método de exposição e já parte da mais-valia, da defasagem dos tempos como o cerne da questão, estabelecendo aí mesmo a luta de classes como o motor da história. Não se amarra à necessidade de considerar tudo mercadoria – muito menos o dinheiro.
Quem lesse o artigo do João Bernardo com isso em mente certamente não estaria nessa chateação de boa parte dos comentaristas.
Em meio aos insultos e invenções (que talvez Freud explique) o Fagner pontuou algo interessante:
“O conceito de capital fictício […] assenta na noção de especulação e reprodução do capital não intermediada pela materialização em mercadoria […] essa noção é errônea e ultrapassada, porque a materialização esperada é típica da mecânica clássica, que a ciência e próprio capitalismo já ultrapassaram”
O conceito de capital fictício não diz respeito “à não materialização em mercadoria”, no sentido de materialização da “mecanica clássica”, se fosse isso o uso da mecânica quântica e da própria existência de relação-capital no setor de serviços já serviria para desmontar o conceito de capital fictício. Ele diz respeito, como eu disse e Fagner não leu, à inexistência de um processo de valorização, de uma relação-capital onde valor seja gerado, independentemente de se tratar de uma relação social que resulta em mercadorias palpáveis ou não palpáveis (serviços etc).
João Bernardo apontou que o capital fictício não é fictício. Creio que seria mais adequado dizer que o capital fictício não é capital.
Achei bem interessante o comentário de Goldman Sucks, se puder explicar melhor como a não consideração de tudo como mercadoria fundamenta ou pode fundamentar uma crítica ao capital fictício eu agradeceria. Parece que por essa via podemos chegar a algum avanço também.
P.s: infelizmente não estou escrevendo nenhum tratado de crítica ao capital fictício. Se pudesse até o faria. E peço desculpas ao JB se pareceu que eu estava terceirizando trabalho. Deus me livre dar trabalho a outros. Mas aprendi com JB e com o Passa Palavra que aquilo que só nós somos capazes de dizer estamos obrigados a dizer, e JB é o único intelectual que conheço capaz de fazer uma crítica ao conceito de capital fictício. Agora se quiserem me indicar outros autores, uma bibliografia, fiquem à vontade.
Tempo, Linguagem e Modo de Vida
-> 《 A linguagem não se limita a narrar, porque tem a capacidade de criar. 》
-> 《Por isso eu defino o tempo como a substância do capitalismo. 》
O Modo de Produção não se limita ao campo econômico. O que se produz é a própria Realidade, compreendida como a materialidade histórica das relações sociais.
Até mesmo a Ciência já admitiu não haver nenhuma “realidade objetiva” independente da subjetividade da observação. Nada existe além das Relações Sociais e tudo é por elas gerado.
Inclusive o tempo e a linguagem. Inclusive os mundos. Cada Modo de Produção, e cada Cultura, criam seu mundo. E nossa percepção, nossa noção do Tempo e nossa linguagem são determinadas por cada mundo.
Quando olhamos para nosso mundo e vemos coisas e as nomeamos com palavras, trata-se de algo transparente para nós, como é todo procedimento ideológico visando dissimular a produção do real.
Ao se distinguir apenas coisas (as mercadorias) fica oculto o processo de produção do qual resultam. Quando olhamos para um ser vivo (seja ele qual for), o percebemos como se fosse individual e separado da complexa e interconectada rede de relações tornando a vida possível.
Nossa percepção do mundo é fragmentada, porque determinada por um modo de vida alienado. Não percebemos os processos, enxergamos apenas o resultado deles. Em nossa linguagem não prevalecem os verbos, mas substantivos e adjetivos.
Ao se tornar mundial e integrado, o Capitalismo expandiu-se por todo o planeta e cada espaço foi colonizado.
Além disto o Capitalismo também coloniza o próprio tempo, para transformar cada instante de nossas vidas em tempo de trabalho. Tudo deve ser mercantilizado, não pode restar nenhum tempo livre.
Ócio, lazer, emoções e mesmo as experiências de vida e memórias são apropriados como mercadorias a serviço da reprodução ampliada do Capital.
O Capitalismo tem a pretensão de mercantilizar a Vida.
A luta anti-capitalista só pode se dar através de outras relações sociais, fundadas na solidariedade comunitária e embriões de um outro mundo e de um outro modo de vida. Já também trazendo em si a possibilidade de uma outra linguagem e de uma outra noção do Tempo.
No seu afã de escrever, Pablo esqueceu-se novamente de ler (e, por consequência, interpretar/reinterpretar). “Mas as pessoas não querem ler o que está escrito, mas sim o que gostariam que estivesse escrito”, conforme bem salientou Fagner.
O último comentário de Pablo (especialmente o terceiro parágrafo) deixa bem claro que ele ainda efetua suas análises preso aos conceitos e a relação entre tempo e matéria anteriores a 1905, que vigoravam na época de Marx. E não há problema nenhum nisso, caso ache que ainda é a melhor forma de analisar a realidade.
Goldman Sucks esclareceu um ponto base da obra de JB “O Economia dos conflitos sociais […] parte da mais-valia, da defasagem dos tempos como o cerne da questão”, mas Pablo não quis reinterpretar/ressignificar tudo que leu a partir desse “novo” cerne e, obviamente, em conjunto com a visão científica atual entre tempo e espaço (e seus conceitos atualizados) e, por isso, continua não entendendo nada do que fora escrito.
Peço desculpas, antecipadamente, pela prolixidade.
Se você concordar que “o tempo que constitui a substância do capitalismo é um tempo plástico, que se aprofunda à medida que os trabalhadores adquirem novas qualificações para lidar com novas tecnologias” excluirá, necessariamente, a existência de um “capital fictício” e achará ridículo quem o utiliza para explicar a realidade capitalista, assim como JB. Cai por terra, por exemplo, a afirmação “Esse capital é chamado de fictício porque rompe e se desprende da relação com a produção real dos trabalhadores, onde o valor é gerado e ampliado, e aqui não importa se tal valor é gerado em serviços ou bens palpáveis, o capital fictício se desliga de todos, e por isso é ‘fictício'”. Ora, não há de se falar em rompimento e desprendimento da relação com a produção real dos trabalhadores se levarmos em consideração a substância do capitalismo (nos termos do JB) e a visão científica atual entre a relação tempo e espaço (e seus conceitos atualizados, claro), que o JB leva em conta e tenta explicar sucintamente em seu manifesto e, posteriormente, em suas respostas aos comentários. Por consequência, a própria noção de dinheiro “como uma modalidade de linguagem (e lembremos sua capacidade antecipadora), um veículo de informação, sendo, como toda a linguagem, uma condição necessária para a articulação das relações sociais” por si só afastaria a existência de um “capital fictício”. Pablo, o “processo de valorização, de uma relação-capital onde valor seja gerado, independentemente de se tratar de uma relação social que resulta em mercadorias palpáveis ou não palpáveis (serviços etc)”, está no tempo. O capital fictício só existiria se desconsiderarmos a noção atual de tempo, que é elástica (e se aprofunda à medida que os trabalhadores adquirem novas qualificações para lidar com novas tecnologias, definindo-se, assim os sucessivos patamares da mais-valia relativa).
E para finalizar, ainda não entendi porque tanta implicância em JB ser sarcástico em seus textos, se fosse Marx (o Deus que tudo sabe e pode) tenho certeza que achariam demais – lembremos de Miséria da Filosofia.
Para dar gás ao nobre esforço do Pablo, lanço minha pergunta.
No Economia dos Conflitos Sociais, JB caracteriza o dinheiro como unidade para o estabelecimento de preços; e as séries de preços seriam a “condição operacional dos desequilibrios estruturais da esfera dos valores e das relações sociais que os fundamentam”. O dinheiro “permite o funcionamento desequilibrado e imprevisível deste modo de produção” (p. 256)
Talvez me falte mais leitura, de fonte primária e secundária, a respeito do “capital fictício”, e para entendê-lo melhor eu jogo para o público minha questão. Oras, a ideia de um capital que termina por não produzir valor, em quê se diferencia de um empreendimento fracassado? Outro exemplo que me vêm à mente: setores produtivos inteiros que são sustentados à base de subsidios estatais. Não se tratariam também de capitais que, nos termos concretos e atuais do capitalismo, produzem mercadorias praticamente desprovidas de valor? Os setores improdutivos que ganham sobrevida com recursos protecionistas, devido a que utilizam tecnologias e formas de trabalho já obsoletas (por tanto, empregam um “tempo de trabalho” em função, digamos, logarítmica em comparação com tempo de trabalho socialmente necessário a nível global). Já o caso do empreendimento fracassado, poderia ser uma empresa saudável até o aparecimento de um concorrente internacional, ou de uma inovação determinante no mercado, que termina por destruir o valor do seu stock, de sua maquinária, de praticamente toda sua operação como empresa.
Em que medida não podemos falar de capital fictício para casos como estes, onde as relações sociais capitalistas são mantidas mesmo em situações onde não parece haver uma produção de valor, ou onde o valor desaparece do dia para a noite?
No seu afã de ser simpático, e puxar saco, Leitura Empática foi dogmático.
“Se você concordar que “o tempo que constitui a substância do capitalismo é um tempo plástico, que se aprofunda à medida que os trabalhadores adquirem novas qualificações para lidar com novas tecnologias” excluirá, necessariamente, a existência de um “capital fictício” e achará ridículo quem o utiliza para explicar a realidade capitalista” – Essa frase não faz sentido, é apenas uma tautologia dogmática.
“Ora, não há de se falar em rompimento e desprendimento da relação com a produção real dos trabalhadores se levarmos em consideração a substância do capitalismo (nos termos do JB) e a visão científica atual entre a relação tempo e espaço (e seus conceitos atualizados, claro), que o JB leva em conta e tenta explicar sucintamente em seu manifesto e, posteriormente, em suas respostas aos comentários.” – Essa frase não faz sentido, é apenas uma tautologia dogmática.
“Por consequência, a própria noção de dinheiro “como uma modalidade de linguagem (e lembremos sua capacidade antecipadora), um veículo de informação, sendo, como toda a linguagem, uma condição necessária para a articulação das relações sociais” por si só afastaria a existência de um “capital fictício”.” – Essa frase não faz sentido, se faz, favor explicar como se dá esse processo e porque isso afastaria a existência do capital fictício.
Pablo, o “processo de valorização, de uma relação-capital onde valor seja gerado, independentemente de se tratar de uma relação social que resulta em mercadorias palpáveis ou não palpáveis (serviços etc)”, está no tempo.” – Isso é óbvio.
“O capital fictício só existiria se desconsiderarmos a noção atual de tempo, que é elástica (e se aprofunda à medida que os trabalhadores adquirem novas qualificações para lidar com novas tecnologias, definindo-se, assim os sucessivos patamares da mais-valia relativa).” – Essa frase não faz sentido, se faz, favor explicar como se dá esse processo ou então assumir que seu comentário todo é um tributo ao personagem Chicó em O auto da compadecida: “não sei, só sei que foi assim”.
Em Miséria da Filosofia Marx cita zilhões de vezes e faz um debate sério com Proudhon, utilizando o sarcasmo como ferramenta de argumentação e de disputa política. Aqui os comentadores (alguns anônimos, o que não os impede, ou pelo visto os estimula, a desrespeitar um dos comentadores, que tenta, pelo visto inutilmente, fazer algum avanço no debate) não se dão o trabalho de citar nenhum teórico do capital fictício e muito menos alguma notícia ou qualquer coisa real que envolva o capital fictício, e muito menos explicar o que diabos querem dizer, como no caso das tautologias colocadas pelo Leitura Empática como se fossem argumentos.
A defasagem de tempos que caracteriza a mais-valia diz respeito a uma relação social de exploração, que ocorre no plano real, entre sujeitos, e não imaginário: há uma defasagem entre input e output, entre o tempo de trabalho incorporado e o tempo de trabalho despendido (o grau de complexidade do trabalho – central para a mais-valia relativa – e portanto a forma de ser do tempo aqui referido, tempo de trabalho pago e não-pago, não muda nada na relação de defasagem/exploração, ou então por favor escrevam o artigo “Como Einstein e a mecânica quântica superaram o conceito de mais-valia de Marx”). No capital fictício o tempo atua e tem um caráter totalmente distinto do papel que cumpre nas relações sociais de criação de valor. Nele o principal papel do tempo é o da diferença de preço entre o momento da compra e o momento da venda do título etc, portanto não tem nada a ver com o processo de exploração do tempo de trabalho, o processo de produção de valor. Há aqui algo de similar com o capital comercial, que durante séculos foi considerado o criador de riqueza (a esperteza do vendedor, de vender mais caro do que pagou), e até hoje fundamenta os apologetas do capitalismo, no sentido de que o patrão merece seus lucros devido a ter sido empreendedor e ter colocado seu capital para financiar um empreendimento.
Lucas,
Acho que consigo responder um pedacinho da sua questão. Empreendimentos fracassados fazem parte “saudável” do sistema, em alguns sentidos, mas geralmente quando há a superacumulação. O Meszaros, inclusive, dá grande relevo ao tema, mas com outro enfoque, quando relaciona crise estrutural do capital e ampliação do complexo industrial militar. Como o essencial para o capital é a produção e não a realização do valor, haveria setores e períodos em que a produção capitalista se daria sem a pretensão de realização do valor, ou seja, a venda do produto. E em períodos de guerra, essa produção se daria até mesmo sem a pretensão de conclusão da mercadoria. O filme O aviador, com o Di Caprio, mostra um pouco disso. Mercadorias bélicas se tornariam obsoletas antes de sua conclusão, dando lugar a um novo projeto de uma nova mercadoria mais moderna e assim sucessivamente, tudo financiado pelo Estado. Ou seja, há inumeráveis realizações parciais e prévias do valor, mas sem que isso resulte na produção de uma mercadoria final com valor de uso. Nesse processo pessoas são postas a trabalhar, pesquisadores são postos a criar, transportadores levam as partes do produto e os insumos de um lugar a outro, muitos serviços e inclusive o setor de propaganda é posto a agir, ou seja, mesmo que fracassado, o empreendimento gera relações sociais e movimenta a vida econômica da sociedade. O capital financeiro também faz isso, movimenta e ajuda na organização da produção em larga escala, mas o capital fictício não, e em especial o chamado capital fictício parasitário; diz respeito apenas a instrumentos de sucção do valor produzido em outros lugares e de especulação. Não chega nem a ser um capital que fracassou, pois não põe relações sociais em marcha, não há intencionalidade produtiva e só rebate na produção capitalista indiretamente, no momento da realização dos valores, ou seja, à medida em que seus preços, uma vez realizados pela venda de títulos, são usados para comprar mercadorias, bens de consumo.
Ahhhhh, linguagem !
http://www.mlwerke.de/me/me25/me25_413.htm
A quantidade de paga-lanche por código binário aqui é IMPRESSIONÍVEL 🤣
Jão num dexa no gelo que quer que a esquerda vá tomar no verbo, seus filho da letra. Daí us maluco abre o berrero memo, engraçadão tiu.
O tiozão qué que alguém vá e corra atrás do preju. O expediente dele já deu, gradece aí Jão pelas preza ✌️mas ele já tá fazendo hora extra, caraiu. 🤣🤣
Mó pinta de embromation no texto pra no fim dá uma dessas 🤦🏽 : ” Nestas circunstâncias, falar de capital fictício e de crise estrutural é o mais trágico sintoma da incapacidade da esquerda para proceder à crítica do capitalismo existente e, portanto, da sua incapacidade para intervir nas lutas sociais contemporâneas.”
Fagner Enrique já tinha dado a letra aí ó. Fazeno memo um complemento só…maió exemplo de terceirização que esse aí fo fim fo texto, tá prá vê ainda…
Vou contar uma história que já contei num dos meus livros, não me lembro qual. Era uma vez uma fábrica de gelo. Os operários produziam, armazenavam e transportavam gelo. Estaria a mais-valia, entendida como tempo de trabalho excedente, materializada no gelo? Um dia houve um corte de electricidade em toda a região, que durou muitas horas, e o gelo da fábrica derreteu-se, voltou a ser água. E a mais-valia derreteu-se também? Seria, então, mais-valia fictícia, como o tal capital fictício das bolhas especulativas e das acções que sobem e descem?
Se tivesse lido o ultimo comentário de Pablo para Lucas, João Bernardo poderia se abster de sua história-espantalho.
A concretude dos exemplos sobre o Capital Fictício
Em meu primeiro comentário neste artigo destaquei ser necessário recorrer a exemplos concretos para se abordar o Capital Fictício. Neste sentido citei o caso óbvio do overnight.
Com exceção do Pablo, ninguém mais postou qualquer exemplo concreto…
Agora a conhecida, e excelente, estória da fábrica de gelo é novamente trazida. Ótimo.
Então é preciso acrescentar o fato ocorrido no mesmo lugar na tarde seguinte. Talvez o dono seja um azarado, ou não.
Ao final do expediente, a fábrica foi assaltada e toda a produção do dia foi roubada. Entretanto, o ladrão transportou o gelo num veículo sem refrigeração. Derreteu tudo.
Porém o empresário não teve prejuízo, pois tinha seguro. Além disto, mentiu para os trabalhadores e os assediou a arcar com metade do prejuízo. Afinal, estavam todos no “mesmo barco”.
Há uma crucial diferença entre produção e realização de valor. O valor já está presente na mercadoria no momento de sua produção, como trabalho não pago. Ainda assim deve ser realizado, materializado, no instante da venda. Caso contrário, permanece “fictício”.
É dos desalinhamentos entre a produção e realização de valor que eclodem as crises recorrentes do Capitalismo.
O Capital não é dinheiro, tampouco crédito ou mesmo dívida. Também não é um ativo, seja tangível ou não. O Capital é uma relação social: D-M-D’.
Para se materializar na forma de mercadoria o faz através da mais-valia. Por sua vez para assumir de novo sua forma “fictícia” (intangível), a mercadoria precisa ser vendida.
Ou, como neste exemplo aqui, haver algum tipo de ressarcimento monetário.
Resta saber: como o empresário acabou recebendo mais do que o valor da mercadoria, quem pagou a conta?
Primeiro os trabalhadores da empresa, duplamente. Tanto pelo trabalho não pago (na produção), como pela metade do valor (na realização).
Depois os clientes da seguradora, em sua maioria também trabalhadores.
Nada há de “fictício” no Capital, a não ser a ficção de ser possível sua ampliação por si mesmo (D-D’) independente da mais-valia.
Pablo,
vou tentar sanar minha ignorância sobre esse debate lendo o(s) capítulo(s) do Capital referentes a este tema.
De todas formas, me parece que seguimos girando em torno de outros debates que não concluem. Por exemplo a questão da produção e da realização do valor. Se o valor não é realizado, ele foi apenas valor em potência, do contrário não se explica como algo pode perder valor. Aqui o exemplo da fábrica de gelo é bem ilustrativo. Tenho a impressão de que algumas pessoas ainda pensam que o valor é um atributo material das mercadorias — por mais que o próprio Marx o tenha negado — pela formação “setentista” que receberam, de quando os militantes revolucionários tratavam de ensinar Marx para os operários, fazendo contas que explicavam porque as peças produzidas por eles continham muito mais valor do que seus salários: a extração da mais-valia.
Outro debate é a transformação de valor em preço. Se rechaçamos essa identidade, ou essa correlação necessária, não existe algo como um “sobrepreço”, medido com base no valor da mercadoria. Assim, quando uma bolha estoura, não seria a adequação dos preços aos seus reais valores, e sim uma reorganização das séries de preços.
Por fim, o último debate que vejo que está longe de concluir é outro que você menciona, a “sucção de valores produzidos em outros lugares”, isto é, a redistribuição da mais-valia no seio da classe dominante. Esse ponto é especialmente interessante para estudar os conflitos entre os exploradores.
Mas enfim, quis apenas enumerar alguns debates que são no mínimo tangenciais à temática aqui abordada, e que eu vejo que estão longe de estarem saldados entre leitores de Marx.
Pablo, há alguns problemas de fundo em sua argumentação, problemas que antecedem até a escolha e recorte das citações.
O maior deles é que você pretende explicar um sistema ideológico pelo outro. Nomeadamente, você quer aferrar o sistema econômico proposto por João Bernardo na Economia dos conflitos sociais ao sistema de Marx n’O Capital, como se fossem equivalentes pelo fato de que João Bernardo se vale de alguns conceitos do sistema de Marx. Ora, nós dois sabemos bem que não é esse o caso, e me reservo o direito de não me estender muito no assunto. A aparente semelhança pelo recurso à mais-valia como pilar de sustentação dos dois sistemas cai por terra quando Marx (e também Engels) recorrem abundantemente a anacronismos conceituais como “economia natural” (“anacronismos” pelos olhos de hoje), ou a explicações com base em modelos abstratos onde o capitalismo inteiro é tomado como uma só empresa, quando, além da exploração da mais-valia do trabalho, funciona à base das defasagens entre empresas, defasagens que deveriam estar desde o início nesses modelos abstratos e resultam em modelos muito distintos. Alterando um pouco os termos, é quase como se você quisesse criticar Bourdieu, por exemplo, porque em seus Contrafogos ele não referenciou adequadamente Mauss, Wittgenstein, Panofsky, Aristóteles ou Durkheim; ou porque, em vez de fazer este debate teórico naqueles curtíssimos artigos e entrevistas, orienta a ler as obras onde estes debates teóricos são feitos de forma extensa e profusa. Sabemos que isso não leva a lugar nenhum além de ração para Lattes.
Outro problema, Pablo, está em que você insiste em exigir do autor um estilo que não é o dele. Que você não gosta da ironia e sarcasmo de João Bernardo, isso está óbvio. Mas e os argumentos por trás dessas figuras de estilo? São válidos ou não? Este é o ponto central — exceto quando a carapuça cabe. Como parece dar mais atenção ao tom que ao conteúdo, evita dizer o que quer que seja sobre o assunto. Faz como todo bom acadêmico: traz os autores de referência, e espera que sejam reafirmados em sua posição de autoridade, ou refutados de modo bem preciso. Não é a isto que se propôs o autor num texto curto e provocativo.
Do ponto de vista que adoto, os argumentos apresentados por João Bernardo neste artigo são perfeitamente válidos. Aliás, é esse mesmo ponto de vista que me leva também a mim a desconfiar muito da maioria da literatura sobre “capital fictício”, especialmente a literatura marxista. Por quê?
Ora, de um lado a economia acadêmica mainstream desistiu há muito de debater a fundo dinheiro e crédito — e é esta a economia que se ensina nas universidades e forma milhões de economistas pelo mundo todos os anos, não a marxista. Não se pode esperar muito daí além de técnicas operacionais capazes de mover massas monetárias e creditícias de um lado para o outro, ou, quando muito, nova teoria monetária, que faz o mesmo sob outras orientações e pressupostos.
Por outro lado, a antropologia olha para dinheiro e crédito com muita atenção há bastante tempo, e tem fartura de material empírico sobre o assunto na forma de relatos etnográficos, pesquisas arqueológicas, etc. É esse material que torna obsoleta toda, literalmente toda a teoria do dinheiro e do crédito em Marx, seja porque nunca existiu nada como aquilo que Marx apresenta como origem histórica, seja porque descreve inadequadamente as múltiplas formas de dinheiro e crédito sob o próprio capitalismo. Claro, a bem do rigor conceitual Pablo insistirá que “capital fictício não é capital financeiro, nem capital comercial, nem capital bancário”; mas sem dinheiro ou crédito, nenhum deles existe. Tenha má teoria de base sobre qualquer desses dois, e terá más teorias sobre suas derivações.
Ainda está para se construir uma teoria unificada sobre dinheiro e crédito com base nessa profusão de relatos parcelares e teorias situadas, teoria esta que ajude, inclusive, a circunscrever melhor o dinheiro e o crédito no capitalismo como um caso específico dentro de um panorama mais amplo. Existem boas tentativas neste caminho, embora ainda insuficientes. Um exemplo: por menos que eu goste do livro Dívida, do precocemente falecido David Graeber, ele tem a vantagem de reunir o que havia de mais avançado na teoria antropológica do valor no momento de sua redação, o que me permitiu ir atrás das fontes, conhecer outras formas de dinheiro e crédito (algumas extintas, outras ainda em vigor)… De modo semelhante, quem lê o Poder e Dinheiro, por exemplo (vol. 1, vol. 2 e vol. 3), vê ali um enorme esforço de elevar a uma teoria monetária mais abstrata, ainda que historicamente circunscrita, as múltiplas formas de dinheiro e crédito existentes num pedaço restrito da Europa medieval onde vigeu o regime senhorial, formas que estiveram na base da formação do sistema monetário, creditício e bancário do período inicial do capitalismo. A abrangência é mais restrita que a do livro do David Graeber, mas não é por isso que se descarta o esforço, e nenhum dos dois esgota o tema.
Mas ora, o caráter fragmentário dos esforços teóricos em torno das evidências empíricas sobre dinheiro e crédito não são um problema deste artigo, ou deste autor em particular, mas da teoria monetária e creditícia como um todo. As teorias sobre dinheiro e crédito mais “operacionais” da economia mainstream fornecem ferramentas para movimentar massas de dinheiro e crédito para lá e para cá para obter certos efeitos de curto prazo, mas pressupõem ocultar a exploração de trabalhadores. A teoria marxista — e também a teoria econômica anarquista de Proudhon e Kropotkin, que ninguém se engane — conquanto evidencie a exploração como pressuposto oculto, sustenta-se em economia mainstream ultrapassada, quase pré-científica. (Não esqueçam os interlocutores menos avisados que o adjetivo “científico” na expressão “socialismo científico” é totalmente tributário, de cabo a rabo, de uma definição de “ciência” cujo limite é Hegel.) A teoria crítica do dinheiro e do crédito vinda da antropologia, por sua vez, apresenta enorme potencial para as lutas emancipatórias, mas implica ruptura tão drástica com as teorias econômicas mainstream e as de origem marxista e anarquista que dificilmente se conseguirá encontrar nelas imediatamente conceitos operativos, prontos, à mão, para substituir aqueles dois outros conjuntos teóricos anteriores.
Ainda é preciso ter em mente outro aspecto: para continuar no caminho das comparações com a Física, se a teoria antropológica do dinheiro e do crédito representa um avanço científico neste campo semelhante à revolução einsteiniana de 1905, ainda é possível descrever fenômenos creditícios de forma relativamente confiável usando a mesma teoria ultrapassada, da mesma forma como ainda hoje se usa o bom e velho S=So+VT da física para descrever o movimento retilíneo uniforme. É neste sentido que se deve olhar para a teoria linguística do dinheiro apresentada por João Bernardo neste artigo — parente próxima, aliás, das teorias antropológicas a que tanto me refiro. Ela tem enorme potencial para entender adequadamente as lutas sociais, mas ainda é pouco compreendida, e menos ainda usada. Quem duvida pode passar os olhos rapidamente pela discussão sobre os tipos de dinheiro (cap. 5.2 da Economia dos conflitos sociais) e sobre as operações do dinheiro (cap. 5.3 da Economia dos conflitos sociais); conjugar esta teoria com o debate sobre a reprodução em escala ampliada do capital (cap. 6 da Economia dos conflitos sociais); depois, retornar aos “clássicos” sobre o assunto e ver o que sai. O próprio Pablo, que conhece bem a Economia dos conflitos sociais, sabe que relacionar crise estrutural do capital e ampliação do complexo industrial militar não faz sentido algum para o sistema teórico desenhado naquele livro, porque ali a fabricação de armamentos está plenamente inserida na reprodução dos ciclos produtivos.
Portanto, em vez de terceirizar o trabalho intelectual, entendo ser muito mais interessante reconhecer qual o estado da arte na teoria, e daí em diante partir para a crítica e a construção. Isso é trabalho para todos nós, não para um só.
Vou ser sucinto pois já escrevi demais. Concordo com tudo que Manolo escreveu, e no entanto:
Não está claro para mim (e nem para ninguém que conheço e que leu o artigo) como e em que medida as revoluções teóricas propostas no modelo do JB implicam na reavaliação (e descarte) do conceito de capital fictício. O trecho em que Manolo explica que “Tenha má teoria de base sobre qualquer desses dois[conceito, o dinheiro e o crédito], e terá más teorias sobre suas derivações [como por exemplo o capital fictício].” Mas isso é apenas uma base metodológica para a crítica do conceito, e o conceito precisa ser criticado extensa e intensivamente por quem é capaz de fazê-lo.
O modelo de JB é radicalmente distinto do de Marx quanto a muitos pontos. Alguns que me vêm à cabeça:
1) anacronismo do modelo de uma só empresa, estruturante de O Capital.
2) papel do Estado no Capitalismo
3) concepção de dinheiro
4) problema da conversão de valores em preços (acaba sendo consequência da abordagem inovadora quanto ao dinheiro)
5) como se dá a produção e repartição global da mais-valia (por onde a mais-valia do gelo derretido não escorre pelos ralos)
6) relação entre condições gerais de produção e unidades particulares de produção
7) papel desempenhado pelos gestores no sistema
Conheço todas essas diferenças e concordo com a posição de JB quanto a todas elas, e no entanto não faço a mínima ideia de como tais diferenças implicam no descarte do conceito marxista de capital fictício. E se é feito o descarte, como explicar os fenômenos? O que é proposto no lugar? Os títulos da dívida e outras modalidades mais complexas de capital fictício especulativo e “parasitário” (como os Carcanholo e outros teorizam) são o que, nesse sistema? modalidades atuantes na repartição da mais-valia? Eu e a torcida do Flamengo não entendemos. O ensaio é muito bem escrito, traz ideias interessantes e é provocativo. Tentei com os comentários estimular maiores explicações, seja do autor, seja dos leitores, e não é porque o estilo do autor me desagrade ou os sarcasmos, mas porque a crítica ao capital fictício traria implicações diretas para a prática de muitas organizações de esquerda. E nesse caso não basta o sarcasmo, é preciso ser pedagógico. Não estamos debatendo um texto literário.
Novamente, ou Pablo não lê o que se disse, ou então não sei. E não vou me dedicar a outro comentário longo. Se incomoda o fato de que não há o que colocar no lugar do “capital fictício”, cabe a ele, e a quantos mais interessados no tema e igualmente incomodados, elaborar o assunto, sistematizar estudos, escrever, propor. Se querem fazer conhecimento científico capaz de ser usado em lutas sociais, não há outro caminho além desse. Se querem coisas prontas, vão lá no Passei Direto.
Sendo eu ateu, o que é que coloco no lugar de Deus?
Diálogo fictício
Temos aqui um artigo sobre Capital Fictício no qual nem o autor, tampouco quase todos os participantes na área de comentários, se referiram a exemplos concretos.
Sem isto o diálogo não avançou sequer um passo.
Quais casos considerados como de Capital Fictício poderiam ter sido citados? Sem analisá-los e confrontá-los com o conceito é impossível saber se há ou não Capital Fictício.
É possível o Capital se reproduzir por si mesmo, independente do Trabalho? Ou é isto uma ficção?
Além do exemplo do overnight (postado por mim) há outras operações financeiras passíveis de serem caracterizadas como Capital Fictício, entre elas:
– mercado futuro;
– swap;
– derivativos (principalmente derivativos de derivativos);
– short (e sua reversão como short squeeze).
Em todas estas operações o Capital, tido como “fictício”, parece estar reproduzindo a si mesmo, enquanto há apenas transferência de renda (ou até patrimônio).
O PassaPalavra é um dos raros sites focados na questão da Autonomia. Poderia ser uma referência obrigatória. Poderia… Quase sempre não o é. Triste desperdício.
Mesmo assim é publicado neste site muito material de leitura imprescindível. Como é o caso do artigo “Cracolândia: da porrada à gestão da salvação”, por Isadora Guerreiro e Luís Jacon.
Nem todos estão perdidos.
Onde é que está o exemplo concreto da existência de um pônei?
É curioso que os fiéis da ficção leiam um texto que diz que o dinheiro é um tipo de linguagem que relaciona as defasagens de tempo (mais-valia) entre o presente e o futuro da relações sociais; onde também está escrito que essa linguagem é tão plástica quanto plásticas são as formas de exploração e de concorrência entre os capitalistas na distribuição da mais-valia. Mas não consigam ver que essa plasticidade linguística pode ir além da prosa a que estão acostumados.
Aí não adianta. Nem o melhor dos leitores de jornal pode ser capaz de entender uma poesia.
[ChatGPT, resuma minha posição sobre o assunto deste artigo e sobre os comentários]
Ao contrário do que se disse ou insinuou aqui nos comentários, João Bernardo não nega que existam mercado futuro, swap, derivativos (principalmente derivativos de derivativos), short (e sua reversão como short squeeze) e outras operações do capital fictício. Tratar assim a questão é mudar de assunto para falar de outra coisa. O argumento central de João Bernardo é outro: de que o termo “fictício” não deve ser usado para criticar as operações do mercado financeiro que aparentam não ter lastro no processo produtivo. Só isso. Comparativamente, tanto quanto as operações do chamado “capital fictício”, o dinheiro atualmente em circulação no mundo é em grande parte fiduciário (ou seja, “fictício”) e tem lastro na “palavra” do Estado, que assim garante seu valor; ou nas forças repressivas do próprio Estado, que combatem na porrada quem desvaloriza dinheiro com falsificação e fraudes. Nem por isso, entretanto, se vê crítica marxista séria a tachar de “fictícia” a nota de R$ 10,00 com que se paga a média de café com leite e o pão com manteiga. Isto porque, se a concepção de dinheiro-mercadoria em Marx teve o mérito de elevar-se progressivamente de um dinheiro-mercadoria propriamente dito a um “equivalente geral” (decalcando a dialética da dominação e da escravidão da Fenomenologia do Espírito), estava errada quanto às origens históricas da moeda, quanto à ficção de “economia natural” necessária a seu exercício dialético, e quanto à própria concepção do que vem a ser “mercado”. A mesma concepção errada de dinheiro-mercadoria implicava, por extensão lógica, a crítica, como “fictícias”, a operações de crédito “sem lastro”, ou seja, as que Marx entendia como independentes do trabalho como fonte do valor, “independentes” por força de seu modelo aferrado à concepção de dinheiro-mercadoria, mas que outras concepções de dinheiro (e de economia) podem radicar muito facilmente no cerne do processo produtivo capitalista. Demonstrar? Debater com autores? Não, não ganho minha vida com isso, escrevo nos intervalos porosos de minha jornada de trabalho. Deixo a tarefa para quem ganha a vida com pesquisar e escrever. Meus resumos e estudos, deixo-os comigo, publico-os quando quero e quando dá. Além disso, o assunto é público e notório, uma guglada resolve. Saindo deste curto manifesto rumo à Economia dos conflitos sociais, o problema das operações de crédito no capitalismo, nesta obra, não está inscrito a ferro e fogo no circuito D-M-D’. O autor se dedica analisar quem emite dinheiro (mercadoria, metálico, fiduciário, creditício, escritural), em qual o âmbito de circulação veicula-se cada forma de dinheiro emitido, e quais relações de exploração cada forma de dinheiro exprime e reproduz. Embora João Bernardo afirme, em resumo, que as muitas formas de dinheiro de crédito e dinheiro contábil servem para capturar poupanças de trabalhadores (intensificando assim sua exploração e desvalorização) e hierarquizar a repartição da mais-valia entre as empresas ou governos com distintas inserções e posições no processo produtivo capitalista, nesta obra João Bernardo não avança além disso em abstração. Resume-se a analisar concretamente os mecanismos assim descritos com base nos Direitos de Saques Especiais (DSE); no funcionamento da economia soviética e no counter trade vigente no âmbito do Conselho para o Auxílio Econômico Mútuo (CAEM); na crise do sistema Bretton Woods, e no fim do padrão-ouro; entre outros. Dá, apesar disso, excelente ponto de partida para quem queira aprofundar a questão com mais estudos.
As ideias…, as ideias, confesso, interessam-me mais do que os homens; interessam-me acima de tudo. Elas vivem; combatem; agonizam como os homens. Naturalmente pode-se dizer que só as conhecemos pelos homens, assim como só temos conhecimento do vento pelos caniços que ele inclina; mas mesmo assim o vento importa mais do que os caniços.
– O vento existe independentemente dos caniços – arriscou Bernard.
Sua intervenção fez saltar Édouard, que a esperava havia muito tempo.
– Sim, eu sei: as ideias não existem senão pelos homens; mas é aí mesmo que está o patético: elas vivem às custas deles
André Gide em Os moedeiros falsos
Submissão do trecho abaixo, postado por ChatGPT, à ferramenta de análise de texto da Open_IA:
《O argumento central de João Bernardo é outro: de que o termo “fictício” não deve ser usado para criticar as operações do mercado financeiro que aparentam não ter lastro no processo produtivo. Só isso. 》
Resultado:
• não localizada nenhuma compatibilidade no corpo do artigo.
• localizadas as seguintes compatibilidades nos comentários, todas postadas por arkx Brasil:
《Com efeito na aparência o Capital está reproduzindio a si mesmo (D-D’), sem se materializar na forma de mercadoria (D-M-D’).
Todavia a contabilidade precisa ser equacionada. Então se desfaz a ficção do Capital se ampliar independente da mais-valia.
A remuneração do overnight advém de uma carga tributária altamente regressiva, quanto menos se ganha mais imposto se paga.
Não há banquete grátis: são os trabalhadores e os pobres que pagam a conta, através de um processo financeiro de transferência de renda e apropriação de patrimônio.》
《Nada há de “fictício” no Capital, a não ser a ficção de ser possível sua ampliação por si mesmo (D-D’) independente da mais-valia.》
《Em todas estas operações o Capital, tido como “fictício”, parece estar reproduzindo a si mesmo, enquanto há apenas transferência de renda (ou até patrimônio).》
Busca avançada:
• localizadas 3 pastagens não publicadas sobre o pônei.
Recomendação:
• evitar o uso de ferramentas rudimentares de AI, como o ChatGPT.
FICTÍCIO OU VIRTUAL?
a conferir:
http://www.antiper.org/2023/02/13/antiper-chatgpt-olocausto/
Agora, que os ânimos se acalmaram e os leitores coléricos foram passear para outros prados, talvez seja interessante abrir uma nova perspectiva.
Ainda antes de terminar o século XVIII, Rivarol defendera que um governo devia proteger os súbditos «na razão inversa da mobilidade da sua riqueza», atribuindo o primeiro lugar ao lavrador, «verdadeiro filho da terra, cuja riqueza é tão imóvel como ela o é». Em segundo lugar vinha o mercador, que, apesar de se mover, tem de respeitar a imobilidade dos caminhos, dos rios e dos mares. Relegado para o fim da escala estava o financeiro, que «tal como um mágico, pode com um traço de pluma transportar a fortuna para o fim do mundo e, nunca acumulando nada senão símbolos, evade tanto a natureza como a sociedade».
Ora, Rivarol é uma das figuras — muito poucas — na origem do que eu poderia chamar o conservadorismo anticapitalista ou, invertendo os termos, um anticapitalismo conservador, inaugurando uma linhagem que forneceu o quadro económico para a revolta na ordem, que o fascismo haveria de consubstanciar. Até hoje a sua lição não se perdeu, como mostra a popularidade do refrão do capital fictício.
Na França da primeira década do século XX, Pierre Biétry, chefe de uma corrente sindical que reivindicava quase cem mil filiados, anti-socialista e promotor da conciliação das classes, distinguia entre, por um lado, o «capital que especula», meramente parasitário, e, por outro lado, o «capital que trabalha», responsável pelo crescimento da produção e da riqueza colectiva e com o qual, pretendia ele, os trabalhadores se deveriam aliar.
Ao mesmo tempo, no que então parecia ser o outro extremo do movimento operário, Édouard Berth, o mais destacado entre os discípulos franceses de Georges Sorel, distinguira, numa série de artigos publicada em 1907 e 1908, duas formas de capitalismo: o capitalismo comercial, financeiro e usurário, caracterizado pelo parasitismo e por isso forçado a proteger-se com o recurso ao Estado, e o capitalismo industrial, que desenvolveria as forças produtivas e não temia a livre concorrência. E em Itália outros sindicalistas revolucionários, igualmente influenciados por Sorel, nomeadamente o mais significativo teórico desta corrente, Arturo Labriola, admitiam também a existência de um capital produtivo, distinto do capital especulativo e parasitário.
Em 1919, para sustentar a sua estratégia política, Mussolini invocava uma diferenciação entre capitalistas produtivos e capitalistas parasitários e considerava que o Estado liberal estava nas mãos dos capitalistas parasitários, sendo necessário gerar uma nova elite através de uma revolução baseada nos trabalhadores antimarxistas e nos empresários produtivos.
Mas Mussolini era então uma figura menor na génese do que haveria de ser o fascismo radical, e eram sobretudo as proclamações de Alceste De Ambris e os seus projectos políticos que se baseavam na distinção entre capital parasitário e capital produtivo.
Ao mesmo tempo, em Março de 1919, outro personagem de relevo no velho sindicalismo revolucionário e no fascismo nascente, Sergio Panunzio, apresentou um Programa de Acção a que estava subjacente a oposição entre capital produtivo e capital estéril.
O mesmo se passava do outro lado do que haviam sido as linhas de frente durante a Grande Guerra.
Aliás, já um autor da estatura de Werner Sombart, em obras de 1909, 1911 e 1913, havia colocado num lado os empresários, a quem atribuíra o sentido do concreto, do qualitativo e do útil, e no outro lado os comerciantes, acusados de reduzir tudo aos termos abstractos e quantitativos do dinheiro. E num livro publicado em 1912 um universitário de Munique, Julius Schenk, distinguiu entre a «economia comercial», que apenas buscava o lucro, e a «economia de produção», animada pela criatividade dos engenheiros e artesãos. Ou, para nos elevarmos a uma altura muitíssimo superior, cabe evocar a distinção entre Cultura e Civilização que fundamentou a obra de Oswald Spengler.
A um nível rasteiro, e já depois da Grande Guerra, Gottfried Feder foi um dos dois fundadores do Partido Operário Alemão, de que Hitler depressa se apossou, convertendo-o em Partido Nacional-Socialista. Nas Memórias escritas na prisão, em Nuremberga, enquanto aguardava a condenação à morte, Alfred Rosenberg resumiu as teses de Feder: «Ele sustentava que as grandes crises económicas se deviam inteiramente ao que chamava escravidão do juro, à qual se tinham progressivamente submetido todos os países do mundo, devido à mobilidade do capital dedicado aos empréstimos e à finança. Ele procedia a uma distinção rigorosa entre isso e o capital industrial com raízes locais, cuja protecção, considerava ele, devia indubitavelmente ser uma das funções do Estado».
E se o fascismo é sempre gerado pelo cruzamento entre o eco das reivindicações sociais da esquerda no nacionalismo da direita e o eco desse nacionalismo nas ilusões da esquerda, necessariamente aquela dicotomia entre os dois tipos de capital havia de se reproduzir na ala conservadora do fascismo.
Eugène Schueller, um industrial que desempenhou um papel significativo no fascismo francês, defendeu num jornal dirigido contra o Front Populaire a existência de uma oposição entre o capital industrial, a quem caberia guiar a sociedade, e o capital financeiro, acusado de parasitário.
Ao mesmo tempo, o chefe nacional da Falange Española, José Antonio, lastimando os conflitos entre patrões e operários, explicava que «nem uns nem outros sabem que são decerto protagonistas de uma luta económica, mas na qual, aproximadamente, ambos estão do mesmo lado. E quem se situa no lado contrário, contra os patrões e contra os operários, é o poder do capitalismo, a técnica do capitalismo financeiro».
Gregor Strasser, que era a figura mais significativa da ala social do nacional-socialismo germânico, até ser expulso no final 1932 e assassinado em Junho de 1934, declarou no parlamento em Maio de 1932 que «a riqueza de uma nação reside no trabalho e não no capital», entendendo por «trabalho» não só a classe trabalhadora mas igualmente os detentores de uma propriedade «moralmente justificada por ter sido criada com esforço e poupança» e produtora de «bens úteis à vida». Esta distinção entre capital produtivo e capital especulativo serviu a Strasser para defender uma modalidade de socialismo que se opunha só a um certo tipo de propriedade.
Não era muito diferente a visão que prevalecia na ala racial do nacional-socialismo, pois Alfred Rosenberg, na sua célebre obra de 1930, estigmatizou «a ciência da bolsa e das finanças», acusando-a de se ter tornado «um jogo com valores fictícios, um mágico ilusionismo de números, com que certos meios provocam uma distorção sistemática na passagem da produção para a comercialização». — «Um jogo com valores fictícios … com que certos meios provocam uma distorção sistemática na passagem da produção para a comercialização», escreveu o principal doutrinador do nacional-socialismo, e ainda há quem se espante por eu ter usado o sarcasmo!
Que concluir de tudo isto?
«Sempre que os protestos contra a hegemonia do capital bancário permeiam os movimentos populares», preveniu Franz Neumann no Behemoth, «temos o indício mais claro da aproximação do fascismo».
(O leitor interessado nas referências bibliográficas pode consultar o Labirintos do Fascismo (São Paulo: Hedra, 2022), vol. 2, págs. 139-147.)
Uma rápida impressão: acho que o João Bernardo com a importante nota acima procedeu a um desvio… A questão não era ser contrário ao capital “fictício”, mas o que se queria saber é se ele existe ou não como tal…
Creio eu que o João Bernardo não está a meter a conversa noutro caminho. Se queres saber se capital fictício existe ou não, basta olhares para as notícias sobre as flutuações na bolsa de valores; lá está a prova da existência do que o João Bernardo denomina crédito, e do que adverte, uma vez mais, para não ser chamado de capital fictício. O que o João Bernardo escreveu no seu último comentário não é senão a consequência lógica do que está no manifesto que estamos a debater e comentar. Quem conhece o que João Bernardo já escreveu sobre dinheiro e crédito, percebe à legua a ligação entre o seu último comentário e alguns aspetos da sua obra. O primeiro ponto que destaco neste sentido é a crítica ao caráter fictício com que certas teorias concebem o crédito; este é, e não outro, um dos assuntos deste breve manifesto, ao lado da crítica à denominada crise estrutural que, segundo alguns, levará o capitalismo a autodestruir-se. Esta crítica ocupa capítulos inteiros dos livros “Marx Crítico de Marx” e “Economia dos Conflitos Sociais”. O segundo ponto que destaco é a exposição da afinidade dos fascistas com a crítica ao capital especulativo, apresentada no livro “Labirintos do fascismo”. A ligação entre estes dois pontos não é evidente em si mesma, especialmente porque o segundo ponto mencionado é conhecido somente por alguns poucos a entender da poda. Ao cruzar estes dois aspetos aparentemente dissociados, João Bernardo está a enfatizar, tal como faz amiúde na sua obra, os incomuns pontos de convergência entre esquerda e direita, entre certas teorias oriundas do movimento operário e certas “teorias” do fascismo, estranhos como um cão a dançar. Ele está a rodear sempre a mesma questão, a bater no ferro frio, na enésima tentativa de chamar a atenção para estas estranhas convergências. Parece que cai tudo em saco roto, mas paciência.
Respondendo a um dos comentadores anteriores e prolongando o que o outro comentador escreveu, não creio que se trate de um desvio, mas de uma nova perspectiva, a partir de cima, ampliando o panorama. Se considerarmos o dinheiro — e portanto o crédito — como uma modalidade específica de linguagem, pelo facto de veicular informações e armazená-las, além da sua capacidade antecipadora, então é desprovido de sentido falar de capital fictício, é um conceito vazio, sem correspondência operacional. Isto além da dificuldade de falarmos hoje de fictício, com os novos conhecimentos que vamos tendo acerca da realidade. Quando Rivarol descreveu o financeiro «tal como um mágico, … nunca acumulando nada senão símbolos», ele estava exactamente a considerar que o capital do financeiro era fictício. E o mesmo fizeram todos os autores e políticos que mencionei, distinguindo um capital real, investido na produção material, tanto agrícola como fabril, e um capital especulativo e parasitário, que não assentava em nada de material. É esta oposição entre material e especulativo que sustenta a noção de capital fictício. Até que por fim Rosenberg, em O Mito do Século XX, empregou as concepções que hoje vigoram na esquerda, falando de «jogo com valores fictícios» assente em «uma distorção sistemática na passagem da produção para a comercialização». A genealogia é esta e as consequências estão resumidas na frase de Neumann que citei, e ele estava bem situado para saber do que falava.
Não se trata de um detalhe semântico. Trata-se de uma grande tragédia social e política.
Um bem haja, João Bernardo, por nos elucidares acerca do ponto de vista que adotas. No entanto, pergunto: a noção de dinheiro como linguagem que apresentas, será ela operacional? Quer dizer, terá capacidade de explicar fenómenos económicos tal como hoje se os concebe? Além disso, derribado o conceito de capital fictício, será a concepção de dinheiro como linguagem capaz explicar adequadamente fenómenos como bolhas especulativas e dívida pública? Já agora quanto às malsinadas crises estruturais, por onde poderíamos começar a conceber uma teoria das crises no capitalismo, relacionando-as às lutas sociais, sem incorrer no estreito descritivismo da actual teoria económica? Alguém citou a propósito um certo Benveniste, que desconheço. É economista? Agradeço-te imenso por nos aclarares.
Um célebre anarquista brasileiro na década de 1910 (que depois, em 1922, se tornou um dos fundadores do PCB) organizava jornais e para os ilustrar na pedagogia da revolução, sozinho, promovia “polêmicas” com ele mesmo sob vários pseudônimos, refiro-me ao Astrojildo Pereira. Quase sempre, e não sei como explicar isso, tenho a impressão de que o João Bernardo polemiza aqui com personagens seus. Se estiver errado, que me desculpem os interlocutores anônimos, mas é que as intervenções do “Arturino” e suas excelentes indagações e interrogações, deram-me essa impressão novamente. Que me desculpe o senhor Arturino, mas se for mais um pseudônimo lanço palmas à excelente pedagogia do João Bernardo…E confesso que estas últimas intervenções foram muito esclarecedoras!
Pessoa fictícia pergunta-me se eu não invento comentadores para polemizar comigo e considera possível que um outro comentador seja eu mesmo. Com igual lógica deveria perguntar se ele próprio não será uma invenção minha. Mas não. Todos os comentadores podem ficar tranquilos, eu não forjei nenhum deles. Usei muitos nomes, e vários ao mesmo tempo, na actividade política clandestina, durante o fascismo, mas depois do 25 de Abril de 1974 nunca mais recorri a pseudónimos.
Arturino Coelho Matos, antes de mais não sei o que o notável linguista Émile Benveniste tenha a ver com o assunto, embora alguém o citasse aqui a este respeito. Benveniste escreveu uma obra que usei bastante, mas num domínio muito diferente, Le Vocabulaire des Institutions Indo-Européennes, livro de um linguista escrito para historiadores, e que os linguistas não lêem porque se destina a historiadores e os historiadores não lêem porque provém de um linguista. Os autores que mais me influenciaram quando comecei a estudar o dinheiro no capitalismo, há muitos e muitos anos atrás, foram obviamente John Maynard Keynes e, depois, Axel Leijonhufvud e Nicholas Kaldor. Mas o que sobretudo me inspirou, por contraste com o capitalismo, foram as pesquisas que prossegui acerca do dinheiro no regime senhorial em Poder e Dinheiro (Porto: Afrontamento, 1995, 1997 e 2002), e que se encontram nomeadamente no vol. I, págs. 473-582 e no vol. III, págs. 21-577. Esse estudo serviu-me para situar o dinheiro no capitalismo num contexto histórico muitíssimo mais amplo e, portanto, para pensar de outra maneira o dinheiro no capitalismo.
Na perspectiva que adopto, as chamadas bolhas, as crises especulativas e outros fenómenos do mesmo tipo não derivam de nenhum capital fictício e só encontram explicação no plano das relações sociais, no desfasamento (defasagem, para os brasileiros) entre o presente e o futuro ou, sendo um pouco mais lírico, entre os desejos e as possibilidades. Tal como os mecanismos do crédito conseguem retrair ou expandir a actividade económica. E também há, evidentemente, o roubo directo, porque entre o fulano que me encosta uma faca à barriga para me roubar os símbolos fiduciários que tenho na minha carteira e o hacker que penetra no meu computador para me roubar as senhas de acesso a outros símbolos fiduciários, a diferença reside apenas no grau de qualificações do mariola.
Então, eu creio que essas questões devem ser estudadas directamente no nível das relações sociais e que o dinheiro, como qualquer outra linguagem, é apenas um mecanismo articulador das relações sociais, tendo como função transmitir informações e, ao mesmo tempo, adulterar as informações. Por exemplo, sem o dinheiro a exploração da mais-valia que caracteriza o capitalismo tornar-se-ia evidente e não se poderia realizar, porque o tipo de dinheiro existente no capitalismo consegue dissimular os desfasamentos entre os tempos de trabalho incorporados e o tempo de trabalho despendido. Outros sistemas económicos, com outros modos de exploração, exigiam outros tipos de dinheiro.
Isto significa que o dinheiro não é transparente e levanta muitos problemas, mas esses problemas residem estritamente na esfera pecuniária. Aliás, se considero o dinheiro como uma modalidade específica de linguagem, então o dinheiro obedece a uma sintaxe própria. Vejamos um caso. A hiperinflação não consiste só numa perda de léxico (denominações pecuniárias que alteram permanentemente o significado), mas também num caos na sintaxe (alteração permanente das relações entre denominações pecuniárias), levando necessariamente à substituição daquela linguagem por outra. Basta ver duas situação actuais, ambas trágicas, a da Venezuela e a do Líbano. A hiperinflação é um dicionário e uma gramática que se esvaem em fumo, e a população vê-se obrigada a criar ou adoptar outra linguagem.
Mas — note bem! — não foi a hiperinflação que destruiu o bolivarianismo venezuelano nem desfez o equilíbrio de poderes libanês. O processo é inverso. É a profunda crise interna desses regimes que se exprime na hiperinflação e, ao mesmo tempo, encontra na hiperinflação os seus mecanismos de articulação ou talvez, nestes casos, de desarticulação.
Caro Arturino,
Citei ter recorrido a Benveniste, a propósito da tentativa de compreender a concepção de João Bernardo do dinheiro como linguagem, porque quando soube dessa teoria inovadora me pareceu importante entender melhor o que é linguagem, e Benveniste é um dos maiores estudiosos do tema após Saussure. Para Benveniste a linguagem restringe-se ao uso da língua na confecção da peça comunicativa, portanto para ele empregar a palavra “linguagem” para se referir a aspectos ou textos não verbais constitui um equívoco. Com isso pode parecer que a teoria de Benveniste leva ao oposto de qualquer interpretação do dinheiro como linguagem, na medida em que extrapola a linguagem para além da língua, mas na minha opinião não é bem assim; embora eu não seja um estudioso de Benveniste, me parece que as contribuições teóricas dele acerca da linguagem como mecanismo social dotado da função de “significar” e toda sua teoria sobre sistemas expressivos não verbais permitem um olhar mais amplo e profundo sobre o que é a linguagem e qual é a função social da linguagem, e me pareceu mais fácil entender e concordar com o conceito de dinheiro de João Bernardo após ter lido Benveniste.
Achei estranho que falas desse debate tenham se direcionado direta e indiretamente a intervenções minhas como se eu fosse ou estivesse sendo um crítico vulgar ou um leitor colérico ou agindo de má-fé, quando minha intenção neste debate foi desde o início conseguir explicações mais didáticas, tais como as últimas intervenções de João Bernardo e a intervenção de ChatGPT, intervenções muito elucidativas que com certeza ajudaram os leitores deste ensaio a compreender melhor o que está por detrás e para além das provocações e das conclusões sintéticas e bombásticas. Ainda tenho muitas dúvidas sobre as implicações dessa nova forma de ver o capital fictício, mas sinceramente desanimei de perguntar para ser rotulado de analfabeto funcional por camaradas com quem militei e debati e construí teoria conjuntamente durante anos. Ainda assim não resisto a fazer uma: em seu último comentário, João Bernardo esclareceu que a melhor metodologia para entender o capital fictício é voltar as atenções para as relações sociais, tendo como parâmetro a concepção de que o dinheiro, em suas diversas formas sociais e como qualquer outra forma de linguagem, é apenas um mecanismo articulador dessas relações sociais. A seguir JB desdobra essa ideia citando os casos da hiperinflação venezuelana e libanesa, pontuando que a hiperinflação é consequência, e não causa da crise daqueles regimes. Até aqui tudo bem, me parece uma concepção muito interessante e operacional. Entretanto, como essa concepção está se contrapondo ao modo hegemônico de concepção do capital fictício, não posso deixar de notar que para alguns dos adeptos do conceito de capital fictício a expansão do capital fictício no capitalismo contemporâneo também é consequência, e não causa das crises capitalistas (nas relações sociais). Para eles, essa expansão se deve e sinaliza uma crise estrutural do sistema capitalista de relações sociais, e os exemplos de João Bernardo poderiam levar a essa mesma interpretação, apenas renomeando o capital fictício por outros nomes. Pergunto então se a monumental expansão desses títulos e modalidades de crédito etc. constitui, para João Bernardo, formas de respostas capitalistas a crises capitalistas, portanto um sinal de crise no (e não do) capitalismo, ou constitui, pelo contrário e tomando a concepção de dinheiro como linguagem, apenas formas mais complexas e evoluídas de relações capitalistas e, portanto, sinal de força e vitalidade do sistema? Em suma: para João Bernardo a expansão do que os marxistas ortodoxos chamam de capital fictício indica força/vitalidade ou debilidade/crise no Capitalismo?
Vou responder às perguntas formuladas nas últimas linhas do comentário anterior.
Escrevi no artigo, evocando dois autores tão diferentes como Schumpeter e Trotsky, que o crescimento do capitalismo nunca ocorre homogeneamente e que os sinais de crises sectoriais ou regionais são um indício da força e da vitalidade global do capitalismo.
As novas formas de dinheiro e de crédito que ultimamente se têm multiplicado são as adequadas à nova fase de desenvolvimento do capitalismo, impulsionada pela informática, pela internet, pela produção digital e pela inteligência artificial. Se a distinção entre natural e fictício já tinha sido tornada obsoleta pela ciência, agora o carácter arcaico dessa distinção está patente aos olhos de todos, ou melhor, de todos os que vêem com olhos de ver. A informática inaugurou um campo de expansão do capitalismo cujos limites não somos sequer capazes de vislumbrar, projectando ainda mais para o futuro as operações económicas presentes, daí a supremacia assumida pelo crédito e o aparecimento das novas modalidades de crédito.
E, de uma vez por todas — pelo menos agarro-me a esta esperança — a minha rejeição do capital fictício é total, o que significa que o recuso como conceito. Não é um conceito pertinente. Não é um conceito que eu substitua por outro. Escrevi num comentário que, sendo ateu, não coloco nada no lugar de Deus. É como se me perguntassem o que coloco no lugar do éter.
Em França, o economista Jean Michel Servet* tem o mesmo ponto de vista que o João Bernardo sobre dinheiro como linguagem. Fala como historiador das paleo-moedas. Escreveu sobre o grau de “liberdade” que o acesso ao dinheiro/moeda deu desde a Idade Média. Ele defende a moeda como instrumento de uma possível “liberdade” para defender os “comuns”. Como algumas moedas locais (fondantes) podem levar a um socialismo de guildas ou corporações. Isto pode assemelhar-se também de certa maneira às teorias em França de Jacques Duboin (abondancisme). Mas não estamos longe de um quadro de referência problemático do tipo de terceira via, um certo planismo de tipo fascista.
Nota: Não sei se o comunismo vai abolir os meios de troca, talvez o dinheiro? Mas ainda se teria de saber o que é o comunismo. E este debate não parece estar na ordem do dia quando se pensa que a “esquerda” quer taxar o “fictício”… Será que se pode taxar o vento? E mesmo que seja, será comunismo taxar os lucros “fictícios” da indústria do armamento ?
* Les Monnaies du lien ; https://presses.univ-lyon2.fr/product/show/les-monnaies-du-lien/744
O último comentário do Pablo me fez imediatamente lembrar da discussão a respeito do éter dos finais do século XIX. O JB pelo jeito também teve sensação parecida. O curioso é que o próprio artigo menciona a relatividade restrita a velocidades constantes, o que deixa tudo mais divertido.
Mas a turma do éter acabou abandonando sua teoria depois de diversas experiências (https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Experi%C3%AAncia_de_Michelson-Morley), o que permitiu aos físicos inaugurar um novo campo teórico com a relatividade.
A turma fictícia entretanto está presa ao éter. Tomam o conceito como realidade. Pablo escreveu: “em seu último comentário, João Bernardo esclareceu que a melhor metodologia para entender o capital fictício é voltar as atenções para as relações sociais”. Ora, como se a questão fosse entender o capital fictício! Como se a relatividade restrita tivesse sido elaborada para explicar o éter e não para descartá-lo de vez!
Entretanto o capital fictício não é apenas um conceito inadequado para explicar a realidade, é sobretudo pernicioso. E isso já deveria ter ficado claro depois de tantos comentários.
O artigo e o debate são sobre o capital fictício. Falar “capital fictício” em uma das intervenções não significa tomar o conceito como realidade, é apenas uma forma sintetizada (e essa síntese é uma das funções de qualquer conceito) de se referir aos exemplos “de capital fictício”: títulos da dívidas pública, overnight, mercado futuro, swap, derivativos e derivativos de derivativos, short e sua reversão como short squeeze e demais formas de ser do… capital fictício. Ou do que as correntes econômicas hegemônicas e o marxismo ortodoxo chama de… capital fictício. Ficou claro que no modelo aqui apresentado o conceito é inadequado e pernicioso, mas é preciso entender a questão a fundo e detalhadamente, para não achar que bastaria responder, diante da pergunta:
– “Vamos nos mobilizar e pressionar o governo para parar de direcionar nossas riquezas para o capital especulativo e parasitário! Deixar claro que somos contra o capital fictício, a especulação, o pagamento dos juros da dívida, os juros altos direcionados aos banqueiros, você nos apoia, camarada?”
– “Desculpem, eu descartei o conceito de capital fictício porque entendo o dinheiro como linguagem. Passar bem!”
Apenas o entendimento amplo e profundo do que são essas práticas chamadas de capital fictício é que se poderá saber o que fazer ou não fazer diante delas, e saber dar uma resposta melhor que essa acima, ainda que no final das contas seja essa a resposta a ser dada. Afinal, nós enquanto anticapitalistas não podemos nos contentar em apenas nós termos entendido algo, nosso foca é prática, a remodelação prática das relações sociais, o que é uma tarefa coletiva e portanto todo conhecimento que alcançarmos precisa ser expandido até se tornar uma arma dos trabalhadores na luta contra o capital. Um conceito que assumiu tal importância no debate das esquerdas, nas práticas e nas teorias sociais, impõe que, mesmo que seja para descartá-lo, se o conheça profundamente. A comparação com a discussão a respeito do éter é inadequada e objetiva tirar o debate dos caminhos construtivos e jogá-lo num palco de stand-up comedy.
Algumas intervenções me parecem que vêm de gente que gostaria muito de ter sido comediante, não conseguiu e aí fica fazendo piadas em contextos inadequados e com pseudônimo. O conceito de capital fictício tem hoje um papel muito grande nas lutas sociais e nas análises de quem está comprometido com as lutas sociais e com a compreensão das características do Capitalismo, seus rumos, suas crises, suas forças, suas debilidades, as formas dos trabalhadores o combaterem. Portanto um artigo revolucionário, e certamente polêmico, publicado em um site que é uma ferramenta das lutas sociais, não devia ser espaço para comentários jocosos, insultos e arrogância. Um dos comentadores teve a audácia de dizer que “teria vergonha” de dizer que não sabe. Eu não sei como vocês pretendem dialogar com os trabalhadores com uma postura dessas. Eu tenho orgulho de dizer que não sei, e graças a isso cada vez não sei menos coisas. Certa vez o Passa Palavra publicou o seguinte Citando:
Já percebi que afastamos muitas pessoas dos nossos ensinamentos, por termos uma resposta para tudo. Não poderíamos, no interesse da propaganda, fazer uma lista das questões que nos parecem totalmente irresolvidas? Sr. Keuner, personagem de Bertolt Brecht (1898-1956).
Agradeço ao João Bernardo pelos esclarecimentos dos últimos comentários e ao Paulinho pela dica do autor.
Pablo, você viajou sério. Não é o conceito de capital fictício que tem “um papel muito grande nas lutas sociais e nas análises de quem está comprometido com as lutas sociais e com a compreensão das características do Capitalismo, seus rumos, suas crises, suas forças, suas debilidades, as formas dos trabalhadores o combaterem”. Vejo, sim, muita gente falar de como andam altas as taxas de juros, os lucros dos bancos e a dívida pública, porque isso são fatos. Conto nos dedos de uma só mão quem fala de capital fictício. Só se fala disso nos meios de certa esquerda universitária, e olhe lá. Em vez de ficar remoendo mágoas em torno de um conceito morto, seja atento à sua opção pragmática, recorra aos fatos e dê-lhes novo enquadramento teórico. É a isso a que muitos comentários aqui convidam. Basta que você pare de pegar ar, resolva suas mágoas em outro canto, e se atenha ao que importa.
Prompt: “O que é o capital ficticio?”
Resposta: “O capital fictício é um conceito econômico que se refere a ativos financeiros que não possuem valor intrínseco ou material, mas que são criados com o objetivo de gerar lucro por meio da especulação financeira. Esses ativos podem incluir ações, títulos, derivativos, entre outros instrumentos financeiros. O capital fictício é diferente do capital produtivo, que é investido na produção de bens e serviços reais.
O capital fictício é criado a partir da promessa de um retorno financeiro futuro, e seu valor é baseado em expectativas de ganhos futuros, bem como nas condições do mercado financeiro. O capital fictício pode ter efeitos positivos na economia, como fornecer financiamento para projetos de investimento, mas também pode levar a bolhas especulativas e crises financeiras quando as expectativas de ganhos futuros não se materializam. Alguns críticos do capital fictício argumentam que ele pode ser um reflexo da instabilidade e da irracionalidade do sistema econômico capitalista.”
Prompt: “O capital ficticio pode ser definido como o capital que se reproduz sem a extração de mais-valia?”
Resposta: “O capital fictício é geralmente definido como ativos financeiros que não possuem valor intrínseco ou material, mas que são criados para gerar lucro por meio de especulação financeira. Embora o capital fictício possa ser visto como um meio de reproduzir capital sem a extração de mais-valia direta, nem todo capital fictício está desvinculado da produção de bens e serviços reais. Na verdade, muitas vezes há uma conexão entre a criação de capital fictício e a economia real.
Por exemplo, as ações de uma empresa que produz bens e serviços podem ser compradas e vendidas no mercado financeiro, e o valor dessas ações pode ser impulsionado não apenas pela performance real da empresa, mas também pelas expectativas e percepções dos investidores. Da mesma forma, a criação de instrumentos financeiros como títulos e derivativos pode estar ligada a atividades econômicas reais, como a tomada de empréstimos e a gestão de riscos.
Embora a extração de mais-valia não seja necessariamente uma parte direta do processo de criação de capital fictício, as condições macroeconômicas que permitem o crescimento do capital fictício, como a desregulamentação financeira e a especulação, podem levar à extração de mais-valia de outras formas, como a exploração do trabalho precário e a transferência de riqueza dos trabalhadores para os investidores. Em geral, a relação entre o capital fictício e a extração de mais-valia é complexa e multifacetada, e depende das condições econômicas e políticas específicas em que o capital fictício é criado e utilizado.”
Prompt: “O capital fictício é fictício de verdade?”
Resposta: “Embora o termo “capital fictício” possa sugerir que esses ativos financeiros são completamente imaginários ou fictícios, eles são, na verdade, criados e negociados no mercado financeiro e podem ter um valor real em termos de sua capacidade de gerar lucro ou prejuízo.
O termo “fictício” é utilizado porque o valor desses ativos não se baseia diretamente em bens e serviços reais, mas sim em expectativas, percepções e projeções sobre o futuro. O valor do capital fictício é, em grande parte, determinado pelas condições macroeconômicas, pelas taxas de juros e pelas expectativas dos investidores.
Embora o capital fictício possa ter uma base real em termos de sua conexão com a economia real e a produção de bens e serviços, ele também pode ser criado e negociado com base em percepções e expectativas que não estão necessariamente alinhadas com as realidades econômicas. Isso pode levar a bolhas especulativas e crises financeiras quando as expectativas de ganhos futuros não se materializam.
Em resumo, o capital fictício não é completamente fictício, mas seu valor é determinado em grande parte por fatores não relacionados diretamente à produção de bens e serviços, o que pode torná-lo instável e vulnerável a flutuações do mercado financeiro.”
-> 《– “Vamos nos mobilizar e pressionar o governo para parar de direcionar nossas riquezas para o capital especulativo e parasitário! Deixar claro que somos contra o capital fictício, a especulação, o pagamento dos juros da dívida, os juros altos direcionados aos banqueiros, você nos apoia, camarada?”》
Não, não apoio!
• Como se pretende “pressionar” o governo?
Através de petições públicas, abaixo-assinados, twitaços? Moções parlamentares, pedidos de CPI, ações na Justiça? Ampla campanha virtual nas redes sociais, pequenos atos públicos na frente do BC?
A única forma de pressionar o governo, qualquer governo, é através de um poderoso e capilarizado movimento de massas. E jamais a bandeira de luta contra o “capital fictício” será capaz de sustentar, e muito menos deflagrar, um movimento com estas características.
• Contrapor um Capital (tido como fictício, especulativo e parasitário) a outro (supostamente produtivo) é uma ilusão.
Não há um Capital bom e sadio ao qual se contrapõe um outro ruim e nefasto. Nenhum Capital é produtivo. Quem produz riqueza é o Trabalho. Todo Capital jorra sangue por todos os poros, porque para se reproduzir precisa parasitar um corpo que trabalha.
Atrelar a luta de emancipação dos trabalhadores, e povos que resistem à proletarização, a ilusões é condená-la previamente ao fracasso.
Também não existe nenhum Capitalismo Cognitivo, Verde ou mesmo Selvagem. Assim como não existe mais-valia relativa em estado puro. O Capitalismo incorpora de forma combinada e desigual diversas modalidades de opressão e exploração, sem as quais não pode ao menos freiar a queda inexorável da taxa de lucro.
-> 《 A informática inaugurou um campo de expansão do capitalismo cujos limites não somos sequer capazes de vislumbrar, projectando ainda mais para o futuro as operações económicas presentes, daí a supremacia assumida pelo crédito e o aparecimento das novas modalidades de crédito.》
A transformação da C&T (Ciência e Tecnologia) em força produtiva de fato amplia as possibilidades de reprodução do Capital, como em seus primórdios já o fizera a máquina a vapor.
Todavia, quanto mais o Capital se expande mais perto está de seus limites intransponíveis. O Capital não pode prescindir do Trabalho e da Dívida (crédito). Nem é capaz de em termos absolutos ter ilimitada reprodução ampliada, devido as limitações dos recursos naturais. E, em termos relativos, a queda da taxa de lucro é intrínseca à sua composição orgânica.
Para superar sua crise estrutural o Capital exige uma nova guerra mundial. Este cenário não se desdobra numa eutanásia do Capitalismo. Muito pelo contrário. Não será o Capital quem nos libertará dele mesmo. Antes de colonizar Marte, a impensável destruição causada pelo Capital inviabilizará a vida humana aqui na Terra.
Quanto ao costume, cada vez mais comum, de “conversar” com ferramentas de IA, é aconselhável ler o artigo no link abaixo:
A Conversation With Bing’s Chatbot Left Me Deeply Unsettled
https://pdf.fivefilters.org/makepdf.php?v=2.6&url=https%3A%2F%2Fwww.nytimes.com%2F2023%2F02%2F16%2Ftechnology%2Fbing-chatbot-microsoft-chatgpt.html&api_key=&mode=multi-story&output=html&template=A4&images=1&date=1&sub=&title=Your+Personal+Newspaper&order=desc&date_start=&submit=Create
Um primo que pesquisa Inteligência Artificial comentou esses dias que é engraçado como ChatGPT inventa informações e as responde com absoluta convicção.
Ao ler alguns comentários penso que talvez isso seja o que mais o aproxima de seres humanos….
Já que fui eu a dar o pontapé de partida, vou esboçar uma síntese.
Acusaram-me de ter sido sarcástico. Meu Deus, que horror! Vivemos na época do politicamente correcto, que é o mesmo que dizer, a apologia do lugar-comum, ou pior, dos múltiplos lugares-comuns, cada um de cada capela, e poderá haver pecado maior do que o de rir do lugar-comum? Negar o lugar-comum é obrigar a pensar, terrível esforço. Pablo acusa-me também de ser bombástico, mas será que conhece a etimologia do termo? Que honra, a de me colocar entre os discípulos do grande Paracelsus!
Também disseram que no manifesto que inaugurou esta sucessão de comentários eu não dei nenhum exemplo concreto. Mas, se lerem bem, não fiz outra coisa quando enumerei alguns dos passos decisivos da física que deixaram sem sentido a noção de fictício e, portanto, invalidaram a noção de uma economia natural. Mas quando, num comentário de 18 de Fevereiro, eu mencionei a anulação do conceito de éter e outro comentador, Goldman Sucks, num comentário desse mesmo dia, escreveu que «o último comentário do Pablo me fez imediatamente lembrar da discussão a respeito do éter dos finais do século XIX» e acrescentou que «a turma fictícia entretanto está presa ao éter», logo Pablo veio dizer que «a comparação com a discussão a respeito do éter é inadequada e objetiva tirar o debate dos caminhos construtivos e jogá-lo num palco de stand-up comedy». Sarcástico, bombástico e comediante — tanta coisa que eu sou! Ora, pelo contrário, é esse mesmo o centro do problema, e quem não entender a anulação do éter não entende a anulação do capital fictício.
Também dei no meu manifesto os exemplos concretos do dinheiro nas ilhas do Pacífico, nomeadamente do kula nas Ilhas Trobriand e do dinheiro-porcos nas Novas Hébridas. Algum dos dos meus críticos foi estudar estes casos, ou o afã de defenderem os seus sacro-santos dogmas os distraiu de estudarem os casos concretos que evoquei?
Houve comentadores pacientes que se deram ao trabalho de analisar o que eu escrevi, mas o comentário de Fagner Henrique foi taxado por Pablo de «insultos e invenções (que talvez Freud explique)». Pior ainda, a respeito de um comentário muito elucidativo que Leitura Empática escreveu em 12 de Fevereiro, Pablo falou de «afã de ser simpático, e puxar saco», o que ao mesmo tempo insulta o comentador e me insulta a mim. Por que motivo o tal capital fictício atinge tanto o âmago de algumas pessoas? Diz o provérbio árabe que uns ladram e os outros passam, então sigo adiante.
Mas antes de prosseguir quero explicar que destaco os comentários de Pablo porque foi ele o único que não se limitou a considerar-me um ignorante e apresentou uma argumentação ou, aliás, sucessivas argumentações que mudou ao longo dos dias. Não menciono aqui Arkx Brasil porque ele assume uma posição distinta, decorrente de uma linha de argumentação muito diferente das que foram usadas nos restantes comentários, o que me obrigaria a tratar de questões exteriores à estrita problemática do dinheiro. Agora, continuando.
Durante a revolução portuguesa escrevi Marx Crítico de Marx, que foi publicado quando o nervo da revolução tinha já sido quebrado (Porto: Afrontamento, 1977, 3 vols.), e tentei aí, entre muitas outras coisas, ultrapassar os becos em que Marx se enfiou ao falar da transformação dos valores em preços. Se Marx tivesse pedido a Engels para se encarregar disso, decerto não teria caído em erros que Böhm-Bawerk tão facilmente desvendou. Pretendi nessa obra apresentar um modelo em que a mais-valia é produzida globalmente pela totalidade da classe trabalhadora e apropriada pela globalidade das classes capitalistas, que só posteriormente repartem entre si a mais-valia apropriada.
Aliás, este modelo fundamenta a minha crítica às teses do nacional-desenvolvimentismo, assentes na noção de que o proletariado de umas nações possa ser explorado pelos capitalistas de outras nações, quando eu, pelo contrário, defendo que o primeiro objectivo é a luta dos trabalhadores das nações subdesenvolvidas contra os capitalistas destas nações. Mas não é isto que está agora em causa.
O que agora está em causa é uma certa noção de dinheiro. Escrevi no Marx Crítico de Marx: «Do modelo que proponho decorre […] uma concepção que nega o dinheiro enquanto expressão naturalizada das mercadorias e o considera uma expressão institucionalizada da prática dos capitalistas, enquanto veículo de realização institucional das suas conjecturas. O dinheiro deixa de relacionar-se com mercadorias tomadas como naturais para se relacionar com práticas tomadas como conjecturantes. É o dinheiro que permite a efectivação da articulação sempre concreta entre o bloco das possibilidades de produção e o bloco das possibilidades de realização» (vol. II, pág. 196).
Foi a discordância relativamente às teses de Marx acerca do dinheiro e a perplexidade perante a ausência do papel do Estado em O Capital que me levou a dedicar vinte e quatro anos da minha vida à pesquisa que resultou nos três volumes de Poder e Dinheiro.
«A síntese de tudo o que eu penso sobre este assunto», indiquei no meu comentário de 11 de Fevereiro, «resume-se à noção do dinheiro como uma modalidade de linguagem, um veículo de informação, sendo, como toda a linguagem, uma condição necessária para a articulação das relações sociais. É daqui que deve partir quem quiser entender o que está contido naquele meu brevíssimo manifesto». Poderia ter sido mais claro? Então, sou-o agora. Se colocarmos o dinheiro enquanto modalidade de linguagem no quadro de um modelo em que a mais-valia é produzida pela globalidade dos trabalhadores e apropriada pela globalidade dos capitalistas, e só depois repartida entre esses capitalistas, temos o fundamento da minha crítica à noção de capital fictício.
É a partir daqui, da junção destas duas questões, que a questão do dinheiro deve ser entendida. Haverá algo mais claro?
E deixei explícitas as pistas bibliográficas, quando mencionei Keynes e Leijonhufvud. Trata-se do dinheiro no capitalismo como linguagem dos desequilíbrios e dos desfasamentos (desfasagens, para os brasileiros).
Ah, mas isso não é Marx!
Pois não, não é.
Finalmente, o mais importante de tudo. Escreve Pablo, no seu último comentário, que «o conceito de capital fictício tem hoje um papel muito grande nas lutas sociais e nas análises de quem está comprometido com as lutas sociais». Mas é este mesmo o problema. Por duas vezes eu citei Franz Neumann, no Behemoth, quando ele previne que «sempre que os protestos contra a hegemonia do capital bancário permeiam os movimentos populares, temos o indício mais claro da aproximação do fascismo». Mas será que os leitores se deram ao trabalho de averiguar quem foi Franz Neumann? Façam-no, e meditem depois no «papel muito grande» que «o conceito de capital fictício» possa ter «nas lutas sociais». A questão é esta, e só esta. E é urgente.
Manolo, basta observar as bases teóricas e metodológicas da militância de esquerda que fórmula os programas e estratégias para notar a unanimidade do conceito de capital fictício (e da crítica ao capital especulativo), que por isso está presente ou implícito em praticamente todas as análises de conjuntura das organizações de esquerda e é considerado um evidente inimigo em comum para organizações que face a outros temas se degladiam.
João Bernardo, foi isso que eu disse. A crítica ao conceito de capital fictício é urgente e importante para as lutas anticapitalistas e por isso vim aqui debater este ensaio bombástico (um elogio) que da forma como foi publicado, ou seja, sintetizado, focado em sarcasmos e sem as explicações que vieram no decorrer do debate, estava sendo desconsiderado como um ensaio ruim, meramente provocativo, e sendo objeto de piadas por leitores que não se deram ao trabalho de vir aqui comentar e debater com o autor. Minhas intervenções foram interpretadas como se eu estivesse atacando o texto, quando eu objetivava ver a coisa melhor explicada e em diálogo com as teorias do capital fictício. Antes desse texto eu não via problema algum em usar o conceito (tirando a centralidade que ele assume nas abordagens marxistas ortodoxas) e ao mesmo tempo criticar (munido do modelo teórico de Economia dos conflitos sociais) quem separa o industrial do especulativo, o produtivo do financeiro etc. fazendo eco – na esquerda – a abordagens fascistas e nazistas do tema. Eu não unia uma coisa à outra, não entendia os desdobramentos e não saberia por onde começar se me pedissem uma crítica ao conceito. Agora tenho uma noção. Não tenho problema algum com sarcasmo, adoro. Mas como eu disse, a importância da crítica ao conceito de capital fictício exige explicações rigorosas e sérias, indicações de caminhos etc. que apenas o autor tinha condições de dar. E foi um pouco do que tivemos. Agora talvez o ensaio “ampliado” não pareça tão indigesto e tenha colocado pulgas atrás de algumas orelhas.
Pablo, faça assim: pegue os programas e as palavras de ordem de todas as correntes do PT e do PSOL, do PSTU, do PCB, da UP e do PCO; pegue também os programas e palavras de ordem das centrais sindicais, dos movimentos de luta pela reforma agrária e urbana; leia tudo, e veja se lá falam dos fatos (dívida pública, lucros de bancos, taxas de juros, etc.) ou da teoria construída sobre eles (capital fictício). Fatos se pode usar para construir outras teorias, e podem mesmo levar a outras conclusões depois de novo entendimento teórico; já as teorias não se prestam à mesma operação sem muito contorcionismo e desvirtuação. Não adianta esse estrategema retórico, aliás falacioso, de tentar fazer uma coisa passar pela outra, porque fatos são fatos e teorias são teorias.