Por Leo Vinicius Liberato*

Gestão por medo

É importante destacar que a gestão por medo passou a fazer parte também da Fundacentro. Forma de gestão frequente em situações de assédio organizacional.

A ameaça de corte de salário – um instrumento de gestão por medo – passou a ser usada com frequência com a implantação do Programa de Gestão e Desempenho (PGD). Já na Portaria 864/2022 que estabelece o PGD na Fundacentro, o desconto em folha aparece como resultado de atribuição de nota baixa ao trabalho pela chefia [1]. Algo que não aparece em Portarias que estabelecem o PGD em outros órgãos federais, como o Instituto Federal de São Paulo [2]. Além disso, servidores da Fundacentro relatam que em diferentes reuniões, Diego Fernando Ferreira de Oliveira mencionou que o servidor poderia ter seu salário descontado em situações relacionadas ao PGD, construindo um ambiente de medo.

A racionalização do trabalho sujo de assédio organizacional

Degradação das condições de trabalho, realocações físicas e no organograma que ferem a identidade e desvalorizam servidores, retirada e não reposição de instrumentos de trabalho, mecanismos de gestão por medo, procedimentos e normas abusivas que não reconhecem a natureza da atividade e que impedem o trabalho e o desenvolvimento profissional. Há todo um conjunto de ações e práticas que demonstram o assédio de natureza organizacional que os servidores da Fundacentro, e ainda mais profundamente os das Unidades Descentralizadas (UDs) da Fundacentro, tem vivenciado com sofrimento, estresse, angústia, prejuízos à saúde e ideações de violência. A consequência é sabida: além de adoecimentos, ocorre a desmotivação e o desengajamento do trabalho, impactando na qualidade da produção da instituição:

Quando não é possível uma recolocação dentro da própria organização, o trabalho pode tornar-se, então, meramente instrumental, sem sentido, afetando o envolvimento e o desempenho, como uma forma de afastamento simbólico e de retirada dos investimentos psíquicos. O trabalho com envolvimento é substituído pelo “tarefismo”, também descrito por Dejours como um mecanismo defensivo. Esse posicionamento do trabalhador está associado à falta de esperança de ser reconhecido [3].

Se o assédio organizacional é impulsionado inicialmente por objetivos financeiros ou por uma visão financeira, a partir de determinado ponto o reforço de uma estrutura de poder e abuso pode acabar se tornando um fim em si mesmo. No caso, dobrar os servidores, diminuí-los, reduzi-los à pequenez das pessoas que estão nos cargos de poder. Em casos como o do assédio organizacional na Fundacentro, seria certamente muito rico para entender seus impactos e o próprio processo de assédio em si, se fosse possível acessar os sonhos (e pesadelos) dos trabalhadores submetidos ao assédio. Além de sonhos/pesadelos que reportam claramente o sofrimento no trabalho, ideações de violência no trabalho com armas de fogo e armas brancas passaram a ser parte do cenário numa instituição de segurança e saúde no trabalho, como pude testemunhar através de relatos de colegas. Algo que dá uma ideia da dimensão de violência psíquica imposta pela gestão da Fundacentro a partir de 2019.

A questão de como uma instituição de Segurança e Saúde no Trabalho chega ao ponto de seus servidores ficarem submetidos a condições e situações extremamente degradantes e nocivas à saúde, é em si um fenômeno que deveria ser desconcertante. Anteriormente quando tratamos a situação na Fundacentro a partir do conceito de assédio institucional [4], nos questionamos como seria possível a realização de tal trabalho sujo. Trabalho sujo como o trabalho que implica fazer o mal a outro. Quais seriam as defesas psíquicas, as racionalizações para que esse trabalho sujo de assédio organizacional fosse executado.

Evidentemente só seria possível qualquer afirmação conclusiva sobre possíveis racionalizações, a partir de uma metodologia que comportasse conversas e entrevistas com esses agentes. Contudo, em meio a discursos ouvidos em situações no trabalho podemos apontar algumas possíveis racionalizações.

A partir de discursos de agentes que participavam ativamente do trabalho sujo através de uma adesão ao poder, pude verificar os seguintes discursos, que possivelmente serviam como racionalização:

  • os servidores não trabalhariam. A sensação frequentemente é de que os servidores da Fundacentro são tratados como bandidos pela direção, por isso regras draconianas de suposto controle do trabalhador, mas que de fato impedem o trabalho. Esse argumento ou racionalização de que os servidores da Fundacentro não trabalham é análogo à política desumanizadora da população das favelas, que justifica ou racionaliza a polícia entrar para ‘matar bandidos’;
  • os críticos e resistentes introduziriam política e sindicalismo. Com esse discurso buscam também deslegitimar as críticas e os críticos, como se as críticas não partissem da realidade do trabalho, mas sim de posições facciosas;
  • tratar-se-ia de mudança necessária pois de outra forma a Fundacentro seria fechada, e quem reclama é porque teria resistência à mudança. A racionalização da inevitabilidade, do mal menor e o discurso da resistência à mudança, que chegam a ser um lugar-comum em situações como as descritas.

Considerações finais

Para além da caracterização da situação de assédio organizacional na Fundacentro com base principalmente na literatura existente, podemos apontar alguns fenômenos que talvez contribuam para a compreensão da dinâmica desse tipo de assédio, ao menos em determinados contextos.

As arbitrariedades e abusos que inicialmente seriam um meio para atingir objetivos financeiros – de enxugamento ou reestruturação – da organização, tendem a partir de um ponto se tornarem um fim em si mesmo para agentes ao longo da hierarquia. O exercício de poder, o gozo desse poder e a manutenção desse poder, podem se tornar um fim em si mesmo no contexto de assédio organizacional.

A precarização da profissão, que nessa gestão passou a atingir também a área fim da Fundacentro, possui o aspecto de uma política de domínio sobre os trabalhadores. A contratação como “estagiários” de profissionais com graduação concluída para realizar pesquisas, com salários de 1.500 reais com jornada de 30 horas semanais, além de desvalorizar a profissão, estabelece uma categoria de trabalhadores mais vulneráveis. O trabalhador com vínculos e remuneração precária serve, além de tudo, ao melhor exercício de poder e subjugação, como apontamos anteriormente com o desconforto que a direção da Fundacentro e o chefe do RH/CGGC demonstram diante de servidores que questionam as ações e práticas da gestão [5].

Por fim, podemos destacar que no caso de assédio organizacional na Fundacentro a chefia do setor de Recursos Humanos teve um papel bastante ativo e importante. No caso paradigmático da France Télécom esse papel ficou claro o suficiente de modo que o chefe do RH acabou sendo um dos três condenados judicialmente. Portanto, trabalhadores ou pesquisadores do tema devem estar atentos ao papel que desempenha o RH em processos de assédio organizacional relacionados a enxugamentos e reestruturações.

Processos de assédio organizacional como esse que estão submetidos os servidores da Fundacentro, tendem a deixar marcas negativas no tempo. A Comissão Interna de Saúde do Servidor Público (CISSP) já havia reportado no primeiro semestre de 2019 à presidência da Fundacentro, diante do que acontecia, que o processo de enxugamento, principalmente da forma como estava sendo realizado, deixaria um passivo de desmotivação, redução da capacidade de inovação e até mesmo de adoecimentos. Isso foi reportado tendo como base literatura do próprio campo de administração [6].

Os efeitos de uma gestão nociva como a reportada acima, se estendem no tempo. Fragilizam a própria instituição, levando os servidores à insegurança e incerteza sobre como serão tratados ou respeitados no futuro. Levam à desmotivação e ao desengajamento como estratégias de sobrevivência. Tudo isso não é tão simples recuperar. Em suma, políticas de assédio organizacional no serviço público não são apenas nocivas à saúde dos servidores, mas minam a própria qualidade e futuro do serviço público.

* Tecnologista da Fundacentro, doutor em Sociologia Política.

Notas

[1] Ver Anexo 22.

[2] Ver Anexo 23.

[3] SOBOLL, Lis A. P. Assédio Moral/Organizacional: uma análise da organização do trabalho. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008, p. 204.

[4] LIBERATO, LEO V. M. O Assédio Institucional na Fundacentro. Afipea, Nota Técnica 26, 2022. Disponível em: https://afipeasindical.org.br/content/uploads/2022/06/NT_26_Assedio_Institucional_na_Fundacentro.pdf

[5] Como apontado nas partes anteriores deste artigo, o setor de Recursos Humanos recebeu maiores poderes durante a gestão da Fundacentro iniciada em 2019 e passou a ser denominado em certa altura de Coordenação-geral de Gestão Corporativa (CGGC).

[6] Ver Anexo 3.

Ilustram o texto obras de Jean-Hippolyte Flandrin (1809-1864)

Anexos disponíveis aqui.

Leia as partes: 1, 2, 3 e 4.

1 COMENTÁRIO

  1. Uma vez que o texto está dividido em 5 partes, é bom esclarecer aqui que Diego Fernando Ferreira de Oliveira, mencionado também nesta parte, é o chefe do RH da Fundacentro, que ganhou um status de diretoria nessa gestão.

    Também é bom acrescentar que a Portaria da Fundacentro que fala em desconto em folha para quem está no Programa de Gestão e Desempenho, é totalmente ilegal. Não existe previsão para desconto em folha nem no Decreto do Bolsonaro que estabelece a possibilidade de PGD nos órgão federais.

    Por fim, os abusos continuam mesmo após eu ter terminado de escrever esse texto dividido em cinco partes, em dezembro de 2022. Entre eles a perseguição que comento na parte 4, práticas de gestão que deixam os servidores em total insegurança em relação ao PGD e continuidade dos projetos de pesquisa. Isso e o papel da Corregedoria no estabelecimento desse assédio, quem sabe serão tema de um post-scriptum.

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