Neno Vasco por Neno Vasco

Por Vitor Ahagon

 

Confesso que quando li, pela primeira vez, o trabalho do historiador, pesquisador – e, sobretudo, amigo – Thiago Lemos, fui tomado por muitos sentimentos. Antes de tudo, fiquei orgulhoso de ter próximo a mim um amigo e companheiro talentoso, pois me impressionou como Thiago conseguiu unir rigor metodológico, sensibilidade narrativa e reflexão crítica, virtudes tão raras em tempos de produções acadêmicas que visam apenas preencher e encher o Currículo Lattes. Mas também, logo em seguida, senti uma vontade tremenda de falar sobre essa obra e da sua importância, tanto no que tange à pesquisa, quanto à militância. Apesar dos desejos, essa não foi uma tarefa fácil, acreditem, só o começo desse texto foi escrito umas quatro ou cinco vezes. Acho que senti um receio que adveio, justamente, de saber o tamanho da importância do livro de Thiago.

Envolto nessa atmosfera, enfim, comecei a refletir a respeito do que iria escrever. Usualmente, as resenhas de livros são elaborados para ressaltar o valor da obra que estão apresentando, mas logo nas primeiras páginas, o leitor percebe que a escrita ágil e arguta de Thiago Lemos já realiza tal tarefa de forma brilhante, por isso, julguei que seria mais interessante pincelar um ou dois aspectos que mais me marcaram do livro.

 

* * *

 

Evidentemente, um dos traços que mais me impressionou, e que continua me impressionando muito, é o rigor metodológico do trabalho do pesquisador. Seguindo a tradição de outros pesquisadores anarquistas, como Elisée Reclus e Piotr Kropotkin, Thiago Lemos tem o mesmo cuidado em nos apresentar os principais debates historiográficos para a construção de biografias e trajetórias individuais. Assim, mobilizando todo um arcabouço teórico-metodológico, nos apresenta Neno Vasco em sua complexidade. Sem a pretensão de abarcar todos os aspectos de sua vida enquanto um indivíduo indivisível ou monolítico, o historiador, utilizando a metáfora do mosaico, nos expõe fragmentos da vida e a trajetória militante de Vasco em sua singularidade, ao mesmo tempo em que nos revela o vínculo intrínseco com os aspectos estruturais da sociedade capitalista da aurora do século XX.

Assim como Kropotkin, ao dissertar sobre a ciência de seu tempo, Thiago entende que o conhecimento histórico sofreu uma transformação que obrigou o historiador a se debruçar sobre seu objeto de estudo a partir de uma nova perspectiva, na qual cada um dos aspectos singulares dos “infinitamente pequenos”, em tensão e diálogo com a totalidade que está integrado, nos revela a potência e as fragilidades que cada um de nós construímos em nosso percurso enquanto seres singulares.

 

Neno Vasco por Neno Vasco

Se outrora a ciência dedicava-se a estudar os grandes resultados e as grandes somas (as integrais, diria o matemático), hoje ela dedica-se, sobretudo, a estudar os infinitamente pequenos, os indivíduos de que se compõem essas somas, e das quais se acabou por reconhecer a independência e a individualidade, ao mesmo tempo que a sua íntima agregação [1]

Para analisar essa relação tensa e complexa entre singularidade e totalidade, Thiago utilizou uma variedade enorme de fontes, como cartas, jornais e outros, porém acabou privilegiando as crônicas que Neno Vasco escrevia para a imprensa operária e anarquista daqui e de lá do Atlântico. Escolha certeira, pois foi através delas que conseguiu ressaltar como Vasco foi se construindo ao longo de sua militância, quais foram as ponderações que avaliou e como enfrentou os problemas que atingiam toda classe trabalhadora.

A crônica, sendo um gênero literário que registra os acontecimentos corriqueiros do cotidiano, ganhou, nos escritos de Vasco, a dimensão do fazer-se da militância anarquista nas suas mais variadas facetas, como a educativa, a anticlerical, a sindical e muitas outras. Podemos dizer que, na medida em que produzia a crônica do cotidiano militante, construía também um diagnóstico do que é crônico no próprio capitalismo, ou seja, o que se repete de forma ininterrupta e que faz adoecer tantas pessoas, levando muitas delas ao óbito, como até mesmo ele próprio, vitimado pela tuberculose em decorrência da pobreza que lhe sugava, de forma vampiresca, a saúde.

Foi a partir dessa perspectiva, que Lemos discorreu sobre o desenraizamento da classe trabalhadora na mundialização do capitalismo e o consequente recrudescimento do nacionalismo e da xenofobia; falou sobre as questões de gênero e o patriarcado, a exploração da força de trabalho e a luta de classes; a promiscuidade entre religião e política, a violência dos opressores e a reação dos oprimidos; os significados da Guerra e da Revolução… Todos esses foram os sintomas que Vasco analisou e que Thiago conseguiu, com um olhar sensível e escrita afiada, perceber como se repetem até os dias de hoje. As suas manifestações podem ser diferentes, mas estão sempre presentes, latentes, no corpo social até o dia em que Capital e Estado deixarem de existir. Thiago, quando traz os textos de Neno Vasco, faz ecoar a forma como o anarquista buscou lidar com esses sintomas, quais foram as suas propostas para tal ou mesmo acabar com esses sofrimentos e talvez essa seja uma das lições mais importantes deste livro.

 

* * *

 

Espero que com essas singelas palavras, eu tenha conseguido transmitir para os leitores a emoção que foi ler o trabalho desse incansável pesquisador, militante e valoroso amigo. Que este livro possa mobilizar em você esses e outros afetos, mas que também inspire, assim como fez comigo, a lutar pela construção de novas relações radicalmente igualitárias e igualmente libertárias.

Neno Vasco por Neno Vasco

 

Notas:

[1] KROPOTKIN, Piotr. Anarquia, sua filosofia, seu ideal. Editora Imaginário, São Paulo, 2000, p. 28.

 

As artes que ilustram o texto são da autoria de Julio Pomar (1926-2018).

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here