Por Thiago Canettieri

No dia 23 de abril, domingo, a passagem do transporte público de Belo Horizonte subiu para R$6,00, um aumento de R$1,50.

Em Belo Horizonte, por uma condição específica, o ex-prefeito Alexandre Kalil, com uma tentativa de editar uma espécie de populismo municipal, afirmou em campanha que iria abrir a caixa preta do transporte público. Na virada de 2017 para 2018 não teve aumento: Kalil argumentou que iria esperar realização da auditoria prevista no contrato – que, na verdade, foi mais uma verificação independente pouco conclusiva (como foi a primeira, em 2014). A empresa contratada usou dados entregues pelas próprias empresas e, com base nesses dados, sugeriram que a passagem deveria aumentar. E assim, foi: a passagem que era R$ 4,05 passou para R$ 4,50. No mesmo período, o movimento Tarifa Zero BH realizou um estudo que chegou a uma conclusão diversa: a passagem deveria ser R$ 3,45.

Segundo o contrato firmado entre as empresas de ônibus e a Prefeitura de BH, os cálculos para o aumento, já conhecidos na esfera pública desde as Jornadas de Junho, devem ser definidos por uma fórmula paramétrica que considera variáveis como as despesas com combustível, veículos, equipamentos, mão de obra. Os cálculos são realizados pelo Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte (SetraBH), ou seja, os principais interessados com o aumento.

Hoje, a passagem a R$ 6,00 reais coloca a capital mineira no topo das passagens de ônibus mais caras do Brasil.

Segundo dados do Ministério da Cidadania, Belo Horizonte possui quase 200 mil famílias cadastradas no CADúnico que recebem até meio salário-mínimo, isto é, em valores atualizados, R$660,00. São famílias que vivem, na sua enorme maioria, sem empregos formais por longos períodos, afinal, já não são estruturalmente incorporáveis ao mercado de trabalho. Como cunhou nosso presidente-sociólogo, trata-se de “inempregáveis”. Vivem de bicos, favores e programas de assistência do governo em situações extremamente precárias. Os locais de moradia são, geralmente, os mais afastados da área central – nas bordas com os outros municípios, em lugares que são estruturalmente precários. Os últimos anos, pela combinação entre o desmonte da assistência e a explosão da inflação, agravou essa situação. A fome cresceu na cidade: em uma década, Belo Horizonte registrou aumento de 682,35% de casos de internação por desnutrição em crianças menores de 1 ano. Enquanto em 2013 foram apenas 17 internações nessa faixa etária, em 2022 foram registradas 133.

Talvez, agora, se possa ter um quadro mais completo dos efeitos deste aumento, tão naturalizado. O impacto do aumento da passagem de ônibus na vida de milhares de pessoas é real. Reforçam o imobilismo que as pessoas que vivem na periferia estão sujeitas porque o preço da tarifa é calculado por uma “fórmula matemática técnica e neutra” cujo objetivo é preservar a margem de lucro das empresas de transporte. No contexto da precarização generalizada do trabalho, da expansão do desemprego e da disseminação da fome, um aumento desse tamanho é uma imposição de imobilidade para a parcela da população que vive nas periferias distantes e em condições mais precárias. Situação muito concreta para aquilo que o geógrafo Milton Santos chamou de “exílio na periferia”.

Tudo isso ocorre num cenário de sucessivos sucateamentos do serviço de transporte na capital mineira. Na primeira segunda-feira depois do aumento, rodou as redes sociais a imagem de um ônibus da frota do transporte público de Belo Horizonte que estragou nas primeiras horas do dia. Ainda que transformada em meme nas redes, a realidade se mostra clara. Ano passado, moradores de alguns bairros de Belo Horizonte se articularam numa manifestação contra a precarização dos ônibus. As reclamações dos usuários acumulam os canais de atendimento ao público sem que nada esteja perto de ser solucionado.

Uma das maiores expressões dessa precariedade é sentida pelos próprios motoristas.  Desde 2018, as empresas estão retirando os cobradores dos ônibus – chegaram a retirar mais de 80% dos agentes. O próprio ex-presidente da Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte (BHTrans), Célio Bouzada, em depoimento durante à CPI da BHTrans, afirmou que essa retirada foi uma “retaliação” das empresas de ônibus à falta de reajuste da tarifa. Ainda que tal medida descumpra o contrato, elas continuam a operar até hoje desse modo.

Isso tem provocado, como é de se esperar, uma sobrecarga do trabalho do motorista. Além de dirigir, o motorista controla a entrada e o pagamento da tarifa e apoia a entrada de pessoas cadeirantes ou com mobilidade reduzida. Mesmo que o uso do cartão de recarga de passagens que automatiza esse processo de embarque tenha crescido nos últimos anos, eventualmente é o motorista que deve receber o dinheiro e dar o troco. O sindicato dos trabalhadores rodoviários de Belo Horizonte e Região (STTRBH) relata que a dupla função está provocando piora nas condições de trabalho e levando os motoristas à exaustão. No dia 07 de novembro de 2021, um motorista de uma linha de ônibus de Belo Horizonte abandonou o ônibus. Alguns canais de notícias cravam o diagnóstico: “motorista surta”. Segundo relatório produzido pelo Tarifa Zero BH, “as empresas de ônibus deixaram de gastar, de maneira ilegal, com o sistema de transporte coletivo de Belo Horizonte mais de 200 milhões de reais” em 2018 e 2019.

Durante a CPI, um representante do SETRA disse que a presença dos cobradores nos ônibus poderia causar um impacto de até R$ 0,20 na tarifa e que esta é “uma decisão que a cidade vai ter que tomar”.

Outra faceta da precarização: a redução da oferta de viagens, o que gera ônibus lotados e longos períodos de espera para a população. Segundo dados da BHTrans, a circulação dos ônibus nos primeiros meses de 2022 estava com o horário de domingo em dias úteis. Mais de 90% das linhas de ônibus de BH operavam com horários irregulares. Mesmo assim, no final de abril de 2022, o consórcio de empresas ameaçou a cidade: por conta do “total e completo exaurimento das forças financeiras das empresas” a circulação de ônibus reduziria.

Qualquer imagem e semelhança com outros grupos de exploram, ameaçam e retaliam não é mera coincidência.

Dessa maneira, a vida urbana vai se degradando cada vez mais. A destruição do sistema de transporte público municipal é a condição paradoxal para atender os interesses econômicos dos empresários do setor. Como escreveu Letícia Birchal Domingues:

A fórmula é conhecida: quanto mais aumenta a passagem, menos passageiros conseguem usar o ônibus, fazendo com que seja necessário reduzir a qualidade do serviço e aumentar novamente a passagem para que o lucro dos empresários seja garantido. Isso exclui a população mais pobre do ônibus, o que significa excluí-la do usufruto do direito à cidade.

Dois dias depois do aumento para R$ 6,00, na terça-feira, ocorreu um ato. Puxado por vários movimentos e ativistas, a manifestação pautava a derrubada imediata do aumento e a ampliação do subsídio municipal para redução até a tarifa zero. Uma agenda de lutas foi criada para manter a mobilização contra o aumento: entidades estudantis, torcidas organizadas, movimentos sociais estão juntos para tentar barrar o aumento e lutar por uma tarifa zero.

Essa luta é uma necessidade. Afinal, o inferno da mobilidade neoliberal nas cidades contemporâneas é a completa erosão de forma de formas de solidariedade, produzindo um tremendo mal-estar, tanto no trabalhador do sistema, quanto no usuário. Imobilidade, precarização do serviço, ônibus com excesso de passageiros, exploração do trabalhador do sistema compõem os círculos desse inferno que destrói nossas cidades.

A pressão da sociedade, contrária à pressão das empresas, deve ser pela desmercantilização do transporte público.

[1] Não é objetivo deste texto construir uma retrospectiva da luta por um transporte público de qualidade e gratuito em Belo Horizonte. Para isso, sugiro conferir a coluna “Busão nosso de cada dia”, mantida pelo coletivo Tarifa Zero BH no jornal Brasil de Fato.

[2] A CPI da BHTrans, realizada dentro da Câmara Municipal de Belo Horizonte, começou no início de 2021, no contexto da pandemia de COVID-19 a partir da documentação das várias ilegalidades acumuladas pelas empresas de ônibus. Contudo, mesmo assim, as empresas conseguiram se blindar suficientemente.

[3] Vale lembrar do acontecimento tragicômico: empresários do transporte público de Belo Horizonte, em 2021, contrataram uma mulher que se passava de enfermeira para aplicar vacinas de COVID-19 para seus familiares de forma privativa, numa garagem da empresa. A vacina era falsa.

2 COMENTÁRIOS

  1. O incrível aqui em BH é o silêncio peremptório da esquerda partidária sobre a questão.

  2. E a tudo isso ainda se soma a privatização do metrô, que tinha uma tarifa bem menor e acabava, de alguma forma, pressionando o preço da tarifa de ônibus para baixo também.

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