Imagem por: Khashayar Kouchpeydeh
Imagem por: Khashayar Kouchpeydeh

Por Alan Fernandes

Chegou ao meu conhecimento por acaso que o clássico Arte da Guerra, de Sun Tzu, goza agora de mais uma edição com o prefácio de um autor um tanto curioso, que não se destaca pela sua relevância acadêmica e sequer pelo seu prestígio nas ciências humanas. Tomo a liberdade de dizer que o caso é o extremo oposto. Quem introduz a obra é ninguém menos do que Flávio Bolsonaro, o segundo filho do ex-presidente da república.

Se a obra que se iguala ao Príncipe de Maquiavel no âmbito dos clássicos da literatura tem algum pedigree, o mesmo não pode ser dito da escolha editorial em quem abre o texto clássico. Apesar de cômico, não deixa de ser interessante e talvez oportuno, o lançamento desta edição específica no contexto atual. A capa acompanha o título com um fundo diferente do habitual, em que comumente se mostravam cenários de guerra, espadas samurai ou outros recursos que remetem à estratégia. Não. O fundo é verde e amarelo. Precisamente as cores da bandeira nacional. Constatar o ridículo não pode, porém, inibir o debate. Como se a constatação de que os adversários políticos são “despreparados” levasse diretamente ao combate a estas tendências.

Em um âmbito esclarecedor, nos aparece um filme de fortes pretensões e bom enredo acerca de como municiar-se da Arte da Guerra para objetivos políticos. Redes de Ódio (2020) acompanha dramaticamente as circunstâncias em que o jovem de origem humilde Tomasz passa a trabalhar para uma agência que publiciza matérias difamatórias de um prefeito em plena campanha eleitoral do partido progressista, pró-imigração e em favor dos direitos civis. Entre suas atribuições, não há limites na propagação de material, podem ser memes, vídeos cortados, todo o tipo de material depreciativo que põe em cheque a campanha de Rudnicki Pawel. Antes de inserir-se nessa agência, Tomasz cursou a faculdade de Direito em uma universidade polonesa, até que é expulso em decorrência de um plágio identificado em um de seus trabalhos. Os estudos do rapaz eram pagos por uma família abastada que ostentava sua filantropia e que se descobre no enredo que apoia politicamente Pawel.

Antes de obter recursos para conquistar uma casa própria, vivia em um alojamento estudantil e tinha como colega de quarto um ativista de extrema-direita que mantinha relações com clubes de tiro e com os manifestantes nacionalistas que ocupavam as ruas contra o que chamavam de elites globais. Antes de se familiarizar com este meio, as circunstâncias oportunistas com as quais Tomasz toma a iniciativa de trabalhar na agência de notícias fake são seus desejos ocultos de se aproximar de uma jovem que compunha a família Krasucki que o sustentou. Para quem o plágio não foi suficiente, rendendo-lhe a demissão de seu antigo estágio em moderação de conteúdo, que custaria, em busca de seus desejos, utilizar sua habilidade em marketing digital para ascender socialmente? A agência cujo proprietário é desconhecido dos funcionários de baixo escalão aposta nos talentos mostrados por Tomasz em sua investida contra uma influencer de culinária e saúde. Na alçada, Tomasz abre uma campanha aberta em que afirma que os produtos sugeridos pela influencer causam amarelamento nas mãos, indicando um charlatanismo de sua parte. As coisas vão avançando e o jovem recebe estrutura para seguir de perto suas vítimas, agora o candidato à prefeito em ascensão Pawel.

Ressentido com a família que o abandonou após descobrir o plágio, Tomasz tenta a todo custo retomar o contato em função de sua paixonite e da obtenção de informações privilegiadas da campanha de Pawel. Acaba se encontrando, com o passar do tempo, no próprio comitê de campanha e vira íntimo do candidato no intento de fragiliza-lo expondo suas intimidades para as redes sociais. Tomasz é implacável. Foi responsável pela página “parem a islamização [da Polônia]”, além da criação de centenas de perfis falsos pró e anti Pawel e, de ambos os lados, vem alcançando seu lugar ao sol sem passar como criminoso pela opinião pública. Para todos os efeitos, ele é um jovem cético para os progressistas com quem ele mantém relações, um funcionário sem escrúpulos para a agência que o contratou, e um instigador das bolhas da extrema-direita.

Sua amizade com seu antigo colega de quarto lhe rende uma aproximação com um clube de tiro no qual toma conhecimento de um jovem idealista que crê com veemência na decadência da Europa, da família e da cristandade como a conhecemos. Para o gamer e extremista, Pawel promove uma abertura da Europa ao islamismo e às elites globalistas que ameaçam o conservadorismo polonês. Para efetivar sua atuação neste triunvirato ideológico, Tomasz cria um perfil no jogo virtual de RPG que o terrorista atua para se aproximar dele e induzi-lo a cometer atentado à campanha de Pawel.

Fica difícil separar esse fenômeno cultural do que ocorre com frequência nos EUA há um tempo e o que apareceu nos noticiários brasileiros nos últimos meses. Como se organizam as almas solitárias que arriscam a vida, a carreira e a liberdade em nome de atos terroristas? Isto ocorreu em escolas municipais e creches nos últimos meses e muito antes os “300 de Brasília” liderados por Sarah Winter já ameaçavam atacar os Três Poderes. Qual o ímpeto que da fala se desdobra na ação? O atentado bem-sucedido ao leilão beneficente em que Pawel estava consuma-se como uma investida implacável contra aqueles valores que ameaçam o ultranacionalismo polonês. Mas de onde parte este ímpeto? Brecht conta em um de seus poemas que a linguagem existe para condenar as ações. Mas como funciona essa passagem da consciência para a prática? Em que passo a propaganda se converte em ação, ou, invertendo a pergunta, será que não é precisamente a organização que antecede a propaganda?

Que a outra maneira de relacionarmos o tema se não pensando no contexto de proliferação de notícias falsas no Brasil? De um lado, ocorrem inúmeras suspeitas de uso abusivo das redes sociais na campanha política de Jair Bolsonaro e na promoção dos ideais bolsonaristas na vida social. De outro lado, o janonismo cultural apela para uma disputa da circulação anárquica de informações em proveito dos progressistas. Em um ato estético de profundo hedonismo, os agentes sociais filmam-se a si mesmos em selfies retratando e recortando a verdade que lhes apetece para cunhar verdades relativas, além de memes depreciativos que influenciam a política eleitoral em todo o mundo. Que paralelo incrível é ver como funcionários podem multiplicar este intento ao misturar composição orgânica com artificial e produzir movimentos sociais sob pautas irracionalistas. Tal questão põe em causa se estas ações são de fato espontâneas.

Manolo definiu bem esse protagonismo vil ao dizer que os então acampados em Brasília e os invasores dos 3 poderes misturavam fanatismo religioso com obscurantismo político, como foi no Capitólio. Na Europa, onde os expedientes fascistas são mais expressivos, o que não esperar?

Imagem por: Khashayar Kouchpeydeh
Imagem por: Khashayar Kouchpeydeh

Tomasz compreendia bem os mecanismos virtuais de disseminação de conteúdo, bem como dominava os ditos ritos neutros de SEO de nosso moderno marketing digital. Para os vendedores de cursos de marketing digital e SEO existe a ideia de que os mecanismos de busca e as redes sociais são tábulas rasas, e que basta saber usá-las. A realidade mostra que, para viralizar, é preciso estar disposto a “sair das quatro linhas” e imitar as tendências, descurando na veracidade do conteúdo. O filme é de 2020 e é também neste período que o debate sobre o uso abusivo das redes ganha força no Brasil. A discussão sobre o PL 2630 (das fake News) no Brasil torna a coisa mais complexa, e me reservo ao direito de não me alargar neste tema em particular.

Mas as habilidades de Tomasz são inócuas se não orientadas por um capitão – minto – um general: o próprio Sun Tzu. Beata Santorska orienta que a melhor maneira de seu funcionário atingir os seus objetivos, os da agência, é saber posicionar-se em meio a uma guerra, no caso, a de narrativas. Tomasz não é abertamente um fascista, mas quando é este o cenário em que lhe é atribuído, é aí que ele “mexe os pauzinhos” para fomentar o discurso e a prática radical dos extremistas que têm consigo um inimigo comum, Pawel, enquanto frequenta o círculo político de homens e mulheres que veem oposição na rua, nas bandeiras e nos gritos, mas descuram onde os círculos internos do neofascismo se alimentam.

A Arte da Guerra — ou melhor, como aplicar sentido estético aos elementos convencionais de guerra moderna — é uma bandeira hoje do bolsonarismo, que saiu derrotado na eleição presidencial e vitorioso no parlamento, onde hoje se assiste a uma desestabilização da Comissão Parlamentar de Inquérito que apura os ataques no 8 de Janeiro e onde se forma outra comissão para investigar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Chama a atenção que, no mesmo dia em que Bolsonaro divulga seu prefácio ao livro consagrado à esquerda e à direita, anuncia também o lançamento de outro livro que conta a trajetória do pai. O todo do vídeo forma uma hipótese curiosa, que aguarda confirmação na leitura do prefácio. Venceu, o bolsonarismo, nos ensinamentos de Sun Tzu? Manipulou a seu favor a geografia do espectro político? Conheceu melhor que ninguém seus adversários? A Arte da Guerra, escrita por um general, alçou à grandeza o capitão? Estará a esquerda habilitada a refletir sobre esse cenário?

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