Por Jan Cenek
Leia aqui a parte 5.
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“De tudo fica um pouco” – escreveu Drummond. Da empregada doméstica ficou uma pergunta: “pra onde vai a merda que essa gente caga?” Da menina de 14 anos ficou a mancha de sangue no lençol. Do morador de rua morto na praça central ficou a cara de frio. Do jovem linchado na rua de comércio ficou o último pensamento: para a mãe. Da florista ficou o cesto de flores. Da prostituta enforcada ficou o sorriso. Do suicida que se achava um peso para a família ficou o peso do corpo pendurado na memória dos familiares. Da arquiteta ficou o corpo sem rosto, nos sonhos do engenheiro. Do velho italiano ficaram os palavrões: “vaffanculo”, “ma che cazzo”. Da jovem que não pulou do viaduto ficou a vontade de pular. Da administradora de empresas que gostava de costurar ficaram as roupas e os enfeites confeccionados para o cão. Da órfã que cresceu no convento ficou a fama de santa. Do menino sem pernas ficou o sonho de ser lixeiro. Do bancário que virou caminhoneiro ficou o pintocóptero. Da gerente de recursos humanos ficou a arte do equilibrismo. Do homem que morreu abraçado com o vento ficaram os documentos pessoais jogados na lixeira. Da grávida que pulou do prédio ficou o espanto. De cada amor fica uma canção. De Homerinho ficaram poemas escritos em guardanapos.
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voltar ao pó
não é difícil
difícil
é tirar o pó de casa
diariamente
(Poema encontrado na gaveta de Homerinho. Imagino esses versos gravados na lápide empoeirada do poeta.)
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Quando estava concluindo estas histórias, sonhei com Homerinho. Estávamos no topo de um edifício no centro de São Paulo. Havia urubus no céu. O edifício balançava, como se fosse desabar. Homerinho estava sereno, como se fosse saltar. O sol ofuscava minha visão. Eu protegia meus olhos com a mão, quase não via o poeta, procurava seu riso leve, mas não enxergava. Segurava-me como podia. Homerinho dizia palavras delicadas que eu não compreendia. As roupas dele balançavam. Ventava. O chiado do vento cobria a voz do poeta. Eu queria falar sobre as histórias que estava escrevendo. Tinha a sensação de que Homerinho me chamava, que me convidava para saltar: tranquilamente, sorrindo.
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Às vezes penso na grávida suicida. Apesar do trauma e da gravidade do acontecido, não consigo condená-la pelo salto mortal que tirou a vida dela e do bebê. Nem isso é o que mais me intriga. Penso, sobretudo, na evolução do tema fundamental dela, que, em vinte e poucos anos, foi do bebê brincando na barriga da mãe para o bebê descendo com a enxurrada: como se ela tivesse dado à luz a uma tempestade, como se a grávida tivesse sido levada pelas águas canalizadas de São Paulo.
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O enterro do jovem linchado na rua de comércio, no centro de São Paulo, foi realizado num cemitério humilde, na periferia da cidade. Havia muito mato e muitas covas. O pai não foi, os amigos não apareceram, a família não compareceu: tinham vergonha do jovem. Apenas a mãe e os coveiros estiveram presentes. Para se despedir do filho, a mãe perdeu o dia de trabalho como doméstica, mas velou e enterrou o corpo de cabeça erguida.
Se pudesse escolher, o jovem optaria por uma despedida exatamente como a que teve, preferia ficar sozinho com a mãe.
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A arquiteta pegou o ônibus e foi para o centro de São Paulo. Ao descer percebeu que era observada por dezenas de indigentes. Teve medo. Estava sozinha. Acelerou o passo sem olhar para trás. Achou que era seguida. Não entendia o que os homens diziam. Pediam comida? Fogo? Dinheiro? Ameaçavam? – ela não compreendia. A arquiteta ouvia o som de golpes ritmados, como se fosse seguida por alguém de muletas. Quando sentiu os perseguidores próximos, correu sem olhar para trás. Dobrou a esquina, entrou num edifício, passou pelo porteiro. Subiu as escadas, tocou a campainha e se abrigou no primeiro apartamento que encontrou. Havia fumaça, música e entorpecentes. Homens e mulheres se drogavam e rolavam no chão.
Quando contava essa história, a arquiteta não sabia dizer se o fato realmente ocorreu, se foi um sonho ou se era apenas um retrato da cidade: nas ruas, centenas de indigentes; nos apartamentos, dezenas de drogados.
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Quando São Paulo completou 450 anos, uma enquete perguntou a migrantes o que mais os chocou ao chegarem à cidade: a maioria respondeu que o número de cidadãos morando nas ruas era o que mais os havia chocado. Para viver em São Paulo é necessário naturalizar de alguma maneira o fato de existirem milhares de moradores de rua. Lição que os migrantes precisam aprender rápido.
É possível culpar as próprias pessoas pela miséria em que vivem, como se fossem vagabundos felizes com suas condições de vida. É possível atribuir a miséria a Deus, como se fosse uma vontade irrevogável do criador. É possível distribuir esmolas como método de apaziguamento da consciência.
Desde o início, os migrantes consideram chocante ver milhares de homens e mulheres morando nas ruas. Posteriormente, sem emprego e sem escapatória, não poucos ficam sem nada e experimentam, na pele e na prática, a realidade das ruas. A lição que precisam aprender rapidamente passa a ser como sobreviver a assassinatos, estupros, agressões, jatos d’água e expropriações de objetos pessoais.
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O sabiá é um pássaro simpático que dorme nas árvores e corre pela grama. Ele se alimenta de insetos, aranhas e frutas. Porque pode ser encontrado na cidade e no campo e pelo canto refinado, o sabiá se tornou a ave símbolo da nação. Foi celebrado por poetas e compositores: “minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá”.
Mas o sabiá não canta nem para as palmeiras nem para os poetas, seu canto é questão de sobrevivência, é uma mensagem, um convite ao amor e, consequentemente, à continuidade da espécie.
No começo do século XXI, ocorreu um fato curioso em São Paulo. Os sabiás passaram a cantar no meio da madrugada, perturbando o sono difícil dos cidadãos. Especialistas decifraram o enigma: como a cidade estava mais barulhenta, para serem ouvidos e por uma questão de sobrevivência, os sabiás foram forçados a cantar mais cedo, evitando, assim, o barulho do tráfego, das fábricas, dos escritórios, das construções, dos restaurantes, das padarias, das feiras.
O canto silenciado dos sabiás é o hino de São Paulo.
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O Riacho do Ipiranga (Riacho Vermelho) nasce na zona sul de São Paulo, percorre alguns quilômetros até o Rio Tamanduateí (Rio do Tamanduá Verdadeiro), que deságua no Rio Tietê (Rio da Água Verdadeira), curso subversivo que se afasta do mar. As águas vermelhas saltam de rio em rio, percorrem quilômetros e quilômetros até encontrar o mar no sul do continente.
Em 9 de janeiro de 1822, o príncipe recebeu uma carta exigindo seu retorno à pátria, mas se recusou a voltar: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, diga ao povo que fico.” Foi o Dia do Fico. Em 7 de setembro de 1822, o príncipe viajava quando recebeu cartas exigindo sua volta e dando outras ordens. Ele ergueu a espada e gritou: “Independência ou morte!” Foi o Grito do Riacho Vermelho (ele estava nas margens plácidas do Riacho do Ipiranga). As águas levaram o grito. O príncipe foi aclamado imperador. Estava garantida a independência. Mas façamos um acréscimo importante. Naquele 7 de setembro de 1822 o príncipe recebeu algumas cartas, destaco duas: uma exigia seu retorno, como foi dito; outra vinha da esposa e dizia “O pomo está maduro, colhe-o já, senão apodrece.” Começava a história da nação independente.
Passados dois séculos, há quem grite “a nossa bandeira jamais será vermelha” e agrida pessoas que vestem camisetas vermelhas. É estranho que o príncipe não tenha sido acusado de comunismo, afinal, a independência foi proclamada nas margens plácidas do Riacho Vermelho. “Quem garante que o imperador não era amigo do Marx? E se a independência foi proclamada na margem esquerda do Riacho do Ipiranga?” – poderiam questionar os que gritam “a nossa bandeira jamais será vermelha” (se por acaso estas linhas forem lidas no futuro, se soar exagerada a possibilidade de alguém ser tão idiota a ponto de associar o imperador – o homem do Grito do Riacho Vermelho – a Karl Marx – o pensador revolucionário, que à época estava com 4 anos de idade –, é importante lembrar que uma cidadã chegou a associar a bandeira do Japão a um símbolo comunista devido à bola vermelha).
Assim como a maioria dos rios de São Paulo, também o Riacho do Ipiranga foi canalizado, suas margens plácidas foram concretadas, mas não foram totalmente cobertas devido ao grito do príncipe que virou imperador. Como todos os rios de São Paulo, o Riacho do Ipiranga recebe toneladas de merda. As águas ganharam cor indefinível e cheiro insuportável, como o grito do príncipe que virou imperador e os gritos dos que dizem “a nossa bandeira jamais será vermelha”.
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O Córrego das Almas deságua no Rio Tamanduateí poucos quilômetros depois do Riacho do Ipiranga.
A empregada doméstica começou a perguntar “pra onde vai a merda que essa gente caga?” Tempos depois, saltou do viaduto. Quando estava estendida no concreto, choveu forte. O sangue que escorria do corpo dela foi levado pela chuva, desceu pela rede de esgoto, caiu nas águas do Córrego das Almas, foi para o Rio Tamanduateí e deste para o Rio Tietê. O sangue dela seguiu com as águas, batendo nas paredes dos rios canalizados, passando por barragens. Foi uma resposta para a pergunta da empregada doméstica. Uma parte dela foi enterrada, outra parte viajou com a merda.
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Homerinho saltou pelo silêncio e no silêncio. Homerinho saltou em silêncio. Silêncio dos rios e dos bichos. Silêncio da chuva na mata. Silêncio dos roedores nos cemitérios. Silêncio das baratas nas gavetas. Silêncio das formigas na cozinha. Silêncio da aranha no banheiro. Silêncio das traças nas bibliotecas. Silêncio das pedras e das madrugadas. Silêncio do vento nas grutas. Silêncio dos pássaros nas árvores.
Depois do som flácido do corpo batendo no concreto, o silêncio. O poeta deitado de barriga para baixo, com a cabeça apoiada nos braços, como se descansasse, em silêncio. Tinha um sorriso leve. Depois do fim, o silêncio: finalmente!
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Homerinho não conhecia a história do viaduto que passa por cima do leito canalizado e enterrado do Córrego das Almas. A jovem que não saltou conhecia a história do lugar.
Além dos batedores de carteiras, das ciganas, dos turistas e demais cidadãos, há homens e mulheres que dormem embaixo do viaduto. Eles conhecem a história do lugar. Todos presenciaram saltos, ouviram o som flácido dos corpos batendo no concreto, alguns até engrossaram as estatísticas de suicídios. Os homens e as mulheres que dormem embaixo do viaduto temem atravessá-lo, fazem o sinal da cruz para atravessar o viaduto. Evitam chegar perto do parapeito. Dizem que o chamado para o salto é irresistível.
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Acordou bem disposto para o suicídio. Abriu os olhos. Esticou os braços. Espreguiçou. Coçou a careca. Relaxou.
Empurrou o lençol e levantou da cama. Abriu a janela (o sol iluminou o quarto). Respirou fundo. Espiou a manhã. Havia nuvens baixas no céu. Ventos sopravam para oeste, empurrando as nuvens para o interior.
Folheou livros, procurou versos que havia grifado. Às vezes parava para grifar e fazer anotações. A leitura fluía como as nuvens, como aquela manhã.
O poeta tinha uma estante de livros que visitava diariamente. Gostava de ler, reler e anotar. Às vezes encontrava anotações de terceiros e tentava imaginar quem havia percorrido as mesmas páginas. Avaliava a precisão da letra e das palavras. Às vezes encontrava anotações próprias e se espantava. Reconhecia a letra íngreme, mas nem sempre se reconhecia nas anotações. Divergia de si próprio, não se entendia. Pensava com espanto nas marcas e impressões que inevitavelmente deixaria no mundo, marcas e impressões em que não necessariamente se reconheceria: como se uma parte de si não se encaixasse na outra. Um homem não se banha duas vezes no mesmo rio, nem lê duas o mesmo livro, nem salta duas vezes do mesmo viaduto.
Passou a manhã lendo. Depois passou café. Apreciou o cheiro aveludado do café. Bebeu e saiu para caminhar.
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Homerinho, assim como Manoel de Barros, gostava de ilogismos. Folheava livros e se deliciava: “sono rancoroso dos minérios”, “cartografia do desencontro”, “música dos intestinos”, “canção das sombras”, “poeira florindo”, “não há guarda-chuva contra o amor”, “uma palavra abriu o roupão pra mim”, “idioma dos pássaros”, “poesia cadela dialética” … Às vezes recriava e adaptava versos consagrados: “minha terra tem palmeiras/ onde canta a motosserra”. Homerinho passou sua última manhã lendo, escrevendo e se lambuzando de poesia.
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Nos primeiros tempos, a velha ladeira era a entrada de São Paulo. Por ali passou a garota de programa a caminho da forca (a que sorriu). Por ali passavam os escravos que eram açoitados. Por ali entravam mercadorias trazidas pelo Rio Tamanduateí.
Homerinho subiu a velha ladeira e parou no bar, como fazia sempre. Pediu cerveja e cachaça, como costumava fazer. Misturou cerveja com cachaça. Comeu salgados e pôs música na máquina. Escreveu versos num guardanapo que guardou no bolso. Pagou a despesa e partiu.
O poeta passou pelas igrejas barrocas e pela catedral neogótica. Na praça central, moradores de rua se protegiam do sol ou lavavam roupa no chafariz. Cães latiam amarados em carroças. Homerinho atravessou a rua de comércio (a mesma em que foi linchado o filho da empregada doméstica). Havia fachadas e muros pichados: era o grito dos que não tinham o que dizer, eram as vergonhas da cidade reexpostas.
O poeta passou por homens de terno e gravata, que passavam apressados (São Paulo não pode parar). Perto do viaduto um batedor de carteiras roubou-lhe o guardanapo com versos e correu (São Paulo não pode parar). Homerinho pensou com carinho nos homens de terno e gravata e no batedor de carteiras que lhe roubou os versos. Os homens de terno e gravata erravam pela vida. O batedor de carteiras errou o bolso, levou um guardanapo e deixou a carteira.
Homerinho caminhou até o viaduto que liga o centro velho ao centro novo. Foi quando sentiu o chamado para o salto, o irresistível chamado para o salto. Queria cair como folha de ipê. Faltavam-lhe apenas os cabelos. Queria ter cabelos que balançassem com os ventos da queda.
Havia jornalistas e equipamentos eletrônicos no viaduto. A arquiteta concedia entrevista e respondia perguntas dos cidadãos e dos jornalistas. Homerinho não viu a arquiteta, que não o viu. Ele estava ocupado com o salto, ela com as perguntas (São Paulo não pode parar). Teriam se reconhecido se a cidade tivesse parado?
A arquiteta, o poeta e o engenheiro estavam no centro da cidade. Ela falava sobre mobilidade urbana. O engenheiro acompanhava a entrevista pelo rádio, parado no trânsito. Homerinho pensava no salto. Os três estavam no centro da cidade, mas não se encontraram (São Paulo não pode parar).
O poeta encostou no parapeito, coçou a careca, acendeu um cigarro e fumou (Homerinho segurava o cigarro na horizontal, com o indicador e o médio apontados cima. A arquiteta segurava o cigarro na vertical, com o indicador e o médio apontados para trás).
O poeta resolveu esperar a conclusão da entrevista, para não atrapalhar. Foi tomar a última cerveja e a última cachaça. Atravessou o viaduto. Entrou no primeiro bar que encontrou. Bebeu. Pensou em escrever, mas desistiu.
Quando voltou ao viaduto, a arquiteta saía. Ela seguiu para o metrô. Ele fumou tranquilamente, depois apagou o cigarro, jogou a bituca na lixeira e subiu no parapeito. Espiou. Viu que não cairia em cima das pessoas que passavam por baixo do viaduto. Saltou. Faltaram-lhe os cabelos.
As obras que ilustram o texto são da autoria de Robert Rauschenberg (1925-2008).
Homerinho vive!
Homerinho se foi como os versos num guardanapo. Parece que sua vida foi um poema, versos num guardanapo. O viaduto e a cidade agora me lembrarão o poeta e estas histórias de amor. De tudo fica um pouco.