101 histórias de amor (5)

Por Jan Cenek

Leia aqui a parte 4.

71

Eram almas trigêmeas: o anarcristão, o bancário que virou caminhoneiro e a esposa deste. Dizem que há coisas que não devem ser ditas. O marido não sabia que era o cateto menor do triângulo retângulo amoroso em que a esposa era a hipotenusa, enquanto o melhor amigo era o cateto maior.

Mas no dia em que o anarcristão soube que o amigo estava indo visitá-lo com a noiva: estranhou e teve medo. O anarcristão não imaginava que o casal lhe trazia um convite de casamento. Era amigo, tornou-se padrinho, continuou amante.

72

vai ser só a cabecinha
– disse ela –
com a faca na mão

(Variação sobre um haikai de Simão Pessoa. Versos que Homerinho gostava de declamar em bares. Quem ouvia pela primeira vez costumava responder com um “ai”.)

73

No pátio da escola, ao pé da bandeira, era obrigada a cantar o hino nacional. No banco da igreja, ao pé dos santos, era obrigada a cantar hinos religiosos. Pegou raiva. Para a arquiteta, o pior tipo de amor é o que precisa ser ensinado à força.

74

Nevava em São Paulo! Na primeira metade do século XX, quando ocorreu um dos muitos golpes de Estado da história do país, Carlos Drummond de Andrade era chefe de gabinete do Ministério da Educação e Saúde. Foi a época em que escreveu seus poemas mais engajados. Devido ao cargo que ocupava e à censura vigente, os poemas eram datilografados e circulavam de mão em mão. A leitura dava “a poucos uma esperança mínima”.

A ditadura instaurada em nome do perigo comunista tinha entre seus quadros um notório simpatizante do comunismo. Foi quando um jovem resolveu escrever ao poeta, solicitando apoio para uma revista de estudantes que ajudava a editar. Drummond, que não hesitava em se corresponder com leitores desconhecidos, enviou palavras de apoio e poemas inéditos.

A revista dos jovens estudantes durou pouco, mas publicou em primeira mão poemas que, posteriormente, integrariam A rosa do povo, livro máximo da poesia engajada brasileira, quiçá de toda poesia do país. Entre os poemas publicados originalmente na revista dos estudantes estava Procura da poesia, espécie de programa poético em versos. Entre os jovens estudantes que editavam a revista estava Antonio Candido, que depois se tornaria crítico literário, e foi quem solicitou apoio ao poeta.

Em 09 de novembro de 1943, estudantes protestaram contra a ditadura da vez. A polícia reprimiu a manifestação e matou um jovem. Para furar o bloqueio midiático, o estudante que viraria crítico literário escreveu a amigos, entre eles o poeta que era chefe de gabinete. Explicou que em São Paulo “o dia estava frio, cinzento, com vento e uma chuvinha leve”: e a polícia havia matado um jovem. Tempos depois o poeta escreveu o poema O medo, com epígrafe extraída de um texto do crítico e versos talvez relacionados ao assassinato do jovem manifestante. O crítico desconfiou que os versos fossem uma referência à carta que havia enviado, mas nunca tirou a dúvida com o amigo:

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo…
Nevava.

Como não cai neve em São Paulo, esse “nevava” sempre me causou estranhamento. Não imaginava que pudesse a ter a ver com uma carta de Antonio Candido e com o assassinato de um estudante.

101 histórias de amor (5)

75

Drummond – o poeta maior – e Souzalopes – o poeta do fogo – têm algo em comum: escolheram o forno crematório. Mas, no final do século XX, no Rio de Janeiro, a indústria dos enterros travava um combate de vida e morte contra a indústria das cremações, a primeira tentava barrar a entrada da segunda no mercado dos passamentos. Para ser cremado, o cadáver do poeta maior precisaria ser transportado para outra cidade junto com documentos e duas testemunhas. Drummond, que não hesitava em se corresponder com leitores anônimos, resolveu não dar trabalho para ninguém e, porque sabia se tratar de uma questão menor, encerrou sua caminhada pela vida como não podia deixar de ser: enterrado. Para Drummond, uma carta enviada a um leitor era mais importante do que o destino de seus restos mortais. Falecido no começo do século XXI e podendo acessar os serviços da indústria das cremações, Souzalopes encerrou sua caminhada pela vida como não poderia deixar de ser: cremado. Para o poeta do fogo, uma palavra valia mais do que destino final de seus restos mortais, o forno crematório foi-lhe apenas um delicado posfácio.

76

A poesia é imprevisível. Souzalopes bateu na mesa e declamou versos. Os presentes se agruparam em volta, se embriagaram de poesia e declamaram também. Foram ouvidos poemas de Roberto Piva, Carlos Drummond, Manoel de Barros, Manuel Bandeira, Cora Coralina, Cecília Meireles, Ferreira Gullar, Mario Quintana, Pablo Neruda, Vladimir Maiakovski, João Cabral, Fernando Pessoa e anônimos.

Tomei coragem. Declamei e esclareci que eram versos presentes num romance que estava escrevendo.

– Bom. Mas é melhor que Dostoievski? – perguntou Souzalopes, que repetia a mesma pergunta sempre que alguém dizia estar escrevendo um romance. Como sabia o que o poeta diria depois da minha resposta, resolvi inovar:

– Tá no mesmo nível, no mínimo – disse e ri.

Souzalopes olhou para baixo e balançou levemente a cabeça encostando o queixo no peito, empunhou o copo de cerveja e não respondeu. Sempre que alguém dizia estar escrevendo um romance, o poeta perguntava se era melhor que Dostoievski. Como as respostas eram negativas, o poeta afirmava que então era melhor parar de escrever. O que poderia parecer uma provocação era, em verdade, um programa estético: escrever apenas o que precisa ser escrito. Coerente, Souzalopes escreveu pouco.

Um acadêmico aproveitou para comentar sobre a inorganicidade na obra de João Cabral, que ele teria tido a honra de descobrir.

– Seu prefacista! – gritou Souzalopes – Vai declamá ou vai fazê prefácio?

– Vai si fudê! – respondeu o acadêmico, e partiu para cima do poeta, que jogou cerveja no outro, que foi contido pelo dono do bar. O que poderia parecer uma provocação era realmente uma provocação. Souzalopes não suportava a superficialidade e o pedantismo acadêmico.

Homerinho aproveitou a confusão, puxou um guardanapo do bolso e emendou:

dispenso as rimas
prefiro as primas

– Seu posfacista – gritou Souzalopes.

Os poetas se olharam fixamente e, aos poucos, começaram a rir. Não conseguiram conter o riso. Ergueram os copos, brindaram rindo.

77

Errava pouco porque trabalhava pouco. Era gerente de recursos humanos de um banco, tinha especialização em equilibrismo. Equilibrava-se entre superiores e subordinados. Para aqueles: tudo. Para estes: festinhas de aniversário e de final de ano (comemorações em que todos compareciam a contragosto e por obrigação, além de serem forçados a rir de gracinhas e piadinhas chatíssimas). A arte do equilibrismo consistia em obedecer incondicionalmente aos de cima tentando não desagradar os de baixo, o que só fazia em último caso. Quando precisava cobrar um subordinado, esclarecia que eram ordens superiores com as quais não concordava, mas não podia fazer nada. Para justificar erros do setor, discretamente entregava o culpado. No íntimo, pensava: “antes um boi do que a boiada”. Considerava-se defensora dos seus “colaboradores”, que formavam, segundo ela, uma “grande família”. Defendia os subordinados com unhas e dentes, defendia o próprio emprego com facas e armas de fogo, como aconteceu no caso do “pintocóptero”, quando demitiu o funcionário que depois se tornaria caminhoneiro. Dizia que o departamento de recursos humanos era tão unido que fazia até “festinhas” para comemorar aniversários e datas importantes. Depois de anos de equilibrismo, aposentou-se, mas não lhe dedicaram nem uma festinha de despedida.

78

Sintonizava e ouvia rádio até perder o sinal. Conheceu cada canto do país: subiu e desceu serras, rodou por planaltos e planícies. Experimentou os perfumes e os sabores da estrada. Contemplou o nascer e o pôr do sol. Mergulhou em águas doces e salgadas. Da cabine do caminhão observava as transformações da paisagem: o sertão se impondo, as pedras brotando, o verde renascendo, o brilho do mar, os tons de azul do horizonte.

Não desconfiava que sua transformação de bancário em caminhoneiro – após o pintocóptero que fez na agência – e as longas viagens, haviam consolidado definitivamente sua posição como cateto menor no triângulo retângulo amoroso que formava com a esposa e o melhor amigo, hipotenusa e cateto maior, respectivamente (o quadrado da hipotenusa era igual à soma dos quadrados dos catetos, pitagoricamente).

Para o amante, a esposa esclarecia que a culpa era do marido, que resolveu fazer o pintocóptero no lugar errado. Para o marido, ela não dizia nada (há coisas que não devem ser ditas). Nos rincões do país, ele pensava na família.

101 histórias de amor (5)

79

Virava-se na cama procurando o sono, duas noites que não dormia. Pensou em sair, mas estava com preguiça. Ligou a TV. Pastores pregavam para os desesperados. Aos gritos e com raiva, falavam da bondade de Deus. Quis atirar o controle remoto na tela da televisão. Foi até a janela, espiou a rua. Só viu ratos, que corriam sem governo entre os sacos de lixo. Homerinho pensou que, se tivesse que escolher entre pastores e ratos, escolheria estes.

Quando o dia clareou, embriagou-se de café, entorpeceu-se de café. Abriu e fechou a janela. Ligou e desligou a TV. Pensou em se matar, mas não sabia como. Não tinha nem revólver nem veneno. Então, saiu para caminhar. O céu estava limpo: sem nuvens e azul. Pensou em deitar na avenida para ser atropelado pelos automóveis, como havia lido num romance, mas não queria nem atrapalhar as pessoas nem causar acidentes. Caminhou para baixo de um ipê, gostava dos ipês. Contemplou admirado o contraste entre as cores do ipê e o azul do céu. Observou a dança das folhas que caíam. Homerinho queria cair como folha de ipê.

80

Aos sessenta e dois anos, enviuvou. Vestiu a casa e a si própria de preto, cumpriu luto pelo resto da vida. Tinha uma filha e um filho na capital e quase nada para fazer naquela cidade pequena. Foi convidada a morar com o filho, mas recusou. Visitava semanalmente o túmulo do marido. Levava flores, varria o chão, passava pano nos azulejos. Cuidava de tudo. Tempos depois, começou a frequentar a igreja evangélica. Durante os cultos, lembrava-se do seu homem. É que aquela igreja havia sido o cinema da cidade, onde conheceu o marido. Ela não se lembrava do filme que passou naquela noite distante, mas não esquecia o primeiro beijo. Não esquecia, também, as noites em que o amor pegava no tranco: no fundo da madrugada.

81

doce pecado
mão boba
sexo molhado

(Versos encontrados na gaveta do poeta Homerinho. Estavam escritos numa notícia de jornal. A matéria informava sobre casais que se conheceram em salas de cinema.)

82

A primeira vez que encontrou o envelope com a carta foi quando casou. Ao organizar os livros dele, o envelope caiu. Teve raiva. Não sabia o que fazer. Tremia. Ler ou não? Eis a questão! Era uma carta de amor, imaginava, mas ler aquelas folhas violaria a intimidade do marido. Teria ele esquecido o envelope no meio do livro velho? Ou teria escondido ali um naco de passado? Entregar a carta? Rasgá-la? O que fazer? Corajosamente, dobrou o ciúme, venceu a insegurança, refletiu e decidiu: colocaria o envelope em um livro mais frequentado pelo marido, que encontraria e decidiria o que faria com a carta. Assim foi.

A segunda vez que encontrou a carta foi quando mudaram. Ao empacotar os livros, reencontrou o envelope, que estava no mesmo lugar. Teria o marido relido e mantido a carta entre as mesmas páginas? Ou teria perdido aquele naco de passado? Teve raiva, mas menos. Quis entregar o envelope ao marido, mas resolveu recolocá-lo no livro em que o encontrou pela primeira vez. Assim foi.

Na terceira vez que encontrou a carta, já era viúva, estava arrumando as coisas do marido. Pegou o envelope e guardou junto com as fotos dele.

101 histórias de amor (5)

83

Começou esquecendo nomes. Passava o tempo tentando lembrar. Tentava pela primeira letra, por associação, por exclusão e nada. Depois passou a esquecer datas, compromissos, rostos e acontecimentos. A barreira da língua dificultava as coisas, precisava encontrar palavras em dois idiomas. Buscava num idioma, tropeçava no outro. Procurava palavras na memória como quem procura o amor em baile de carnaval. As palavras, mascaradas, sorriam e fugiam. Olhava para o passado e via tudo branco: brancura do vazio, cegueira do branco (quando sentia a brancura do vazio e a cegueira do branco, quando percebia que as lembranças lhe escapavam, recorria a palavras e expressões salva-vidas, que nunca esqueceu: “vaffanculo”, “ma che cazzo”). Até que um dia esqueceu que estava se esquecendo, esqueceu de tentar lembrar e sentiu a doçura da leveza. A leveza é azul.

84

Na gaveta de documentos, entre a certidão de nascimento e a escritura do apartamento, encontrou um bilhete: “Li as crônicas que estão marcadas. Algumas me fazem lembrar de você. Me sinto tão bem contigo. Acho que preciso de você do meu lado.” Estranhou. Que crônicas? De quem era aquela letra? Por que o bilhete não estava assinado? Por que havia guardado aquele papel naquele lugar. Enfrentou o esquecimento, não conseguiu se lembrar, mas sentiu-se bem. O mistério atraía a arquiteta.

85

Manuel Bandeira canta sua canção triste para uma andorinha: “passei a vida à toa, à toa.” Mario Quintana comparou seu amor a um fio telegráfico, onde pousam as andorinhas, sendo que uma delas se limitou fazer cocô sobre o pobre fio de vida do poeta. As andorinhas são aves migratórias, voam milhares de quilômetros, mas há as que ficam para trás – como a de Quintana – e à toa – como na canção de Bandeira. Homerinho foi uma andorinha que ficou para trás e à toa, à toa e para trás.

86

eles passaram
você passarinho

eles choraram
você chorinho

(Versos encontrados na gaveta do poeta Homerinho. Embaixo do poema estava registrado “Para Mario Quintana, 06 de maio de 1994.”)

101 histórias de amor (5)

Leia aqui a última parte.

As artes que ilustram o texto são da autoria de Marc Chagall (1887-1985).

1 COMENTÁRIO

  1. Versos comoventes os de Homerinho para Mário Quintana um dia após a morte deste poeta. Homerinho, o fracasso homérico que ficou entre Drummond, Souzalopes e Quintana.

    A atitude da mulher com a carta do marido é uma dessas que restitui à noção de fidelidade seu sentido mais elevado. Salvo se o marido tivesse desejado testar sua perspicácia.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here