Por Lucas “Legume” Monteiro
A convite dos autores da peça Um memorial para Antígona, revisitei o tema da anistia, ao qual dediquei alguns anos de pesquisa. Com algum atraso, lanço na forma de texto algumas das questões que coloquei no ciclo de debates que acompanhou a temporada da peça no TUSP, em maio de 2023.
Para melhor compreender a discussão sobre o assunto é importante situá-la na história do Brasil. Foram muitas as anistias que ocorreram no país, em geral assumiram caráter pontual e voltadas para grupos e eventos específicos. Entretanto, na memória social brasileira a palavra anistia está associada à Lei 6.683/1979, que foi um marco importante em relação à ditadura militar. Inserida em uma política de mudanças pontuais e aprovada no mesmo ano que a lei de partidos políticos, a lei de anistia permitiu o retorno de milhares de exilados ao país, libertou presos políticos e impede, até hoje, o julgamento dos torturadores. Refletir sobre o sentido dessa lei, sobre as disputas políticas em torno dela, sobre a construção da memória, e portanto do esquecimento, foi o que procurei fazer em minha dissertação de mestrado. Dessa experiência trago algumas referências para pensar o estado atual de coisas.
Primeiramente, é importante esclarecer que a pauta de anistia esteve presente no discurso da oposição à ditadura desde o início da repressão política, como parte da demanda pela libertação de presos e recuperação de direitos políticos. Entretanto, a luta pela anistia só ganhou corpo a partir de 1975, quando foi criado o Movimento Feminino pela Anistia, e alcançou um grau amplo de popularização quando se formou o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). Naquele momento, a pauta da anistia serviu como unidade entre os mais diversos grupos da oposição — presos políticos, familiares de desaparecidos, setores da Igreja ligados à teologia da libertação, ex-guerrilheiros, parlamentares de oposição, sindicatos, familiares de militares cassados, associações de profissionais liberais, estudantes, exilados — como forma de mobilizar-se abertamente contra a ditadura. Essa mobilização se inseriu em um ciclo mais amplo de conflitos, com a eclosão de diversas greves e criação de movimentos sociais. Sem dúvida, esse colossal levante dos trabalhadores merece um destaque maior nos processos que marcaram o fim da ditadura, mas este desenvolvimento escaparia do escopo deste artigo.
Naquele contexto, a anistia tinha, ao menos, três sentidos atribuídos pelos que se movimentavam por ela. O primeiro era o esquecimento: seria uma medida que permitiria a cura das feridas na sociedade brasileira, permitindo — com o fim das prisões políticas — a reconciliação da família nacional. O segundo era o de rememoração: a luta pela anistia seria uma forma de lutar contra o aparato repressivo, trazendo a memória daqueles que foram presos, mortos, torturados e seguiam (e seguem) desaparecidos. O terceiro era o de retorno para casa e para atividade política: este sentido foi marcado para os milhares de exilados que enxergavam na anistia a possibilidade concreta de retornar ao país e voltar a participar da vida política da qual estavam alijados há mais de uma década.
Foi a partir dessa mobilização que houve a movimentação da ditadura e o envio ao Congresso de um projeto de lei que atingiu diferentes objetivos. Determinava-se ali quais os rumos que a transição teria. Impossível ignorar que estava em curso o maior ciclo de mobilizações dos trabalhadores da história do Brasil, o que colocou como necessidade que as estruturas se transformassem. Ainda assim, a ditadura aprovou uma anistia que não era ampla, geral e irrestrita — uma vez que excluia crimes de sangue — mas que permitiu o retorno de milhares de exilados e a volta da organização em partidos políticos. Ao mesmo tempo, por incorporar crimes conexos, permitiu, em uma interpretação juridicamente extravagante, mas politicamente coerente, que não se julgasse torturadores e perpetradores de violações de direitos humanos. Gerou-se uma situação paradoxal na qual nenhum dos violadores figura como anistiado reconhecido pelo Estado, mas na prática são considerados assim tanto socialmente, quanto pelo Supremo Tribunal Federal. Como a peça Um memorial para Antígona se propôs a refletir, essa conciliação foi feita por militares e contou com a adesão de amplos setores da sociedade.
Esse sentido de esquecimento, atribuído socialmente à Anistia, é o que parece ganhar força em novas palavras de ordem, adesivos, publicações em redes sociais, pichações, artigos de jornal e pronunciamentos parlamentares que declaram “Sem anistia” ou ainda “anistia nunca mais”. Cabe pensarmos nas implicações políticas dessas palavras de ordem. Para isso, levantei algumas hipóteses sobre o que motiva parte da esquerda e da extrema-esquerda a assumir essa bandeira. A primeira hipótese é o que poderia chamar de otimista. Nos sentimos à vontade para gritar “anistia nunca mais”, pois acreditamos que a próxima vez que a classe trabalhadora se insurgir seremos vitoriosos, logo não precisaremos nos mobilizar para libertar ninguém. Não imagino que ninguém considere seriamente esse cenário.
Em outro polo, a demanda “anistia nunca mais” poderia se motivar pelas tendências apocalípticas da esquerda. O pensamento base seria que a derrota das nossas mobilizações futuras será tão completa e acachapante que sequer teremos forças para lutar pela libertação dos camaradas. Também não me parece ser bem essa a motivação dos atuais gritos.
Vou então para uma hipótese talvez mais próxima às vontades dos que gritam “sem anistia”. Talvez os camaradas pretendam afirmar que não se deve conciliar. O grito implicaria, então, uma rememoração ao acordo que marcou o fim da ditadura e sua negação. Soa estranho aos meus ouvidos negar a conciliação quando foi eleito o governo mais conciliador da História; espera-se que, dessa vez, a tão esperada guinada à esquerda venha? O retorno da palavra de ordem contra a anistia após o fim do governo Bolsonaro, parece advir da interpretação de que Bolsonaro foi eleito por associar sua imagem à ditadura, seria um fruto da incompletude democrática — ao não julgarmos os violadores e não construirmos uma memória sobre os crimes dos militares permitimos que eles voltassem ao poder. Por mais concordância que possua com a necessidade de resgatar a memória da ditadura, e também considere fundamental o esclarecimento dos desaparecimentos, o exemplo de Kast no Chile parece demonstrar que isso não é um impeditivo do retorno da popularidade da extrema-direita. Para além disso, ao apostar no julgamento e na prisão — seja dos que tentaram dar o golpe no dia 8 de janeiro, seja de Bolsonaro por ter atuado para matar pessoas durante a pandemia — como forma de dissuasão da ação política, se reforça a ideia que o medo da punição é o que evitaria o poder da direita. Me parece que as transformações sociais se dão em outro nível.
Por fim, levanto uma última hipótese, que acredito ser a mais sintomática de nosso tempo. O grito “anistia nunca mais” revela que nunca mais seremos ameaçadores, portanto aceitamos a conciliação, a gestão e a organização da sociedade como ela está colocada. Como já recordei neste texto, aqueles e aquelas que lutaram pela anistia eram os que tinham se disposto a correr riscos de ser presos, mortos e torturados durante a ditadura. Há poucos meses terminou o governo Bolsonaro, contra o qual não faltavam motivos para se insurgir; como sabemos, nada de relevante foi feito neste sentido, a esquerda se mostrou completamente incapaz de criar qualquer mobilização preocupante para as forças estabelecidas. Por isso, o grito “sem anistia”, embora pretensamente se apresente como um impulso de radicalização, se mostra revelador da impotência política da extrema-esquerda que, durante um governo fascistizante, não conseguiu produzir nada de ameaçador, e agora não precisa sequer se preocupar em libertar ninguém.
As imagens que ilustram esse artigo são reproduções de cartazes da campanha pela anistia. Eles estão compilados no livro Cartazes dessa história.
Lido? Ignorado? Silêncio nos comentários… A esquerda grita: “Não me venha com os indigestos, eu quero mais do mesmo. Eu só quero mais do mesmo!”.
Muito bom o texto Legume. Acho que a ultima hipótese é bem interessante. A sensacao de que “nunca mais seremos ameacadores” expressa bem o momento em que estamos.
Obrigado aos camaradas que elogiaram o texto.
Em maio, quando pensei o texto, os julgamentos do 8 de janeiro ainda estavam distantes. Agora com eles acontecendo, fica mais claro ainda a catarse das esquerdas de ver as bases fascistas sendo punidas pela aparato estatal. As comemorações são constrangedoras, tanto pelo grito de impotência que significam, quanto pela crença de que essas prisões são uma possibilidade de solucionar o problema.